No show que encerra as celebrações de seus 50 anos de carreira, Alcione provou, na noite fria deste sábado (23), que continua sendo uma das intérpretes mais imponentes da música brasileira. Diante de uma plateia calorosa, a Marrom costurou clássicos de sua trajetória num repertório de 23 canções e, durante as 2h30min de show, reafirmou o porquê da sua potência vocal e domínio absoluto de palco a terem tornado um dos maiores nomes da música brasileira.
A apresentação iniciou perto das 21h30min — registrando um atraso de cerca de meia hora —, com o hit Pra Que Chorar, mostrando que nada poderia estragar o que viria a partir dali. Alcione surgiu no palco do Auditório Araújo Vianna caminhando e sambando com segurança e domínio, trajada de um vestido azul inteiramente trabalhado em brilho, o que a transformou em uma safira. Uma verdadeira joia rara. “Cês estavam com saudade de mim, né?”, perguntou a carioca. Sim, Alcione, estávamos.
Peço licença ao leitor para confessar que a presente repórter achava que seria exagero colocar uma roupa formal para assistir mais uma apresentação musical. Entretanto, quando a vi, percebi que meu conjunto de joias simples em dourado era o mínimo que eu poderia oferecer àquela noite de gala.
Mas foi com a apaixonada Além da Cama que o público começou a se soltar, cantando em coro a declaração de amor para além das quatro paredes. Na sequência, clássicos como Estranha Loucura, Faz Uma Loucura por Mim e um medley de canções inesquecíveis nas rodas de samba, como Sufoco, colocaram o auditório lotado em transe coletivo. Todo mundo sabe cantar Alcione, mesmo que não lembre de quando aprendeu, e o show na Capital foi mais uma prova disso.
Numa noite de auditório lotado e em transe coletivo, a Marrom dominou um show de 2h30min do inicio ao fim
Douglas Fischer/Divulgação/JC
Em diversos momentos ao longo da noite, ela parou para ouvir seus admiradores mais apaixonados, tirar fotos com seus fãs mais vidrados e se declarar ao público gaúcho. “Eu me pergunto: ‘O que esses gaúchos querem comigo, gente?’ Daqui a pouco eu fico falando ‘Bah, tchê!’, estou gaúcha já. Eu gosto muito desse lugar, gosto muito de cantar para vocês”, declarou a cantora.
A artista fez questão de revisitar sambas que dialogam com resistência e superação, como Juízo Final, Volta por Cima e Retalhos de Cetim. Canções tradicionais de compositores memoráveis da história do samba e da MPB, como Nelson Cavaquinho, Paulo Vanzolini e Benito di Paula.
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A verve romântica retornou em Mulher Ideal, onde Alcione afirma categoricamente que não adianta mudar aquela mulher pela qual se apaixonou, porque foi aquele jeito ‘ideal’ que encantou. No início dramático de A Loba, hino da afirmação de poder e insubmissão feminina (“Sou doce, dengosa, polida. Fiel como um cão, sou capaz de te dar minha vida”), Alcione não somente cantou, ela interpretou cada palavra com a ferocidade de uma loba, com a sinceridade de quem fez da vida matéria para a arte, para a música.
Numa de suas faixas mais famoras, Alcione não somente cantou, mas interpretou cada palavra com a ferocidade de uma loba
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A faixa A Loba caiu no gosto da nova geração, rendendo memes provocativos nas redes sociais - alguns deles retratando momentos de autoestima para aqueles que terminaram relacionamentos conturbados ou passaram por alguma desilusão amorosa. E quando a loba da música brasileira canta “Eu não como na mão de quem brinca com a minha emoção”, até quem vive o amor mais tranquilo sente a dor de uma traição.
Um dos momentos mais aguardados foi a ousada versão da clássica de karaokês Evidências, da dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó, recebida com aplausos e risos cúmplices. Risos, pois a própria cantora fez questão de lembrar do episódio ocorrido num programa de televisão, onde não soube cantar a canção na íntegra e entoou com improvisação. Entre o inesperado e o inevitável, a regravação revelou a capacidade da cantora de transitar entre gêneros sem perder identidade. E dessa vez, ela cantou a letra com maestria e uma potência vocal admirável.
Na sequência, vieram explosões de catarse coletiva. Em Você Me Vira a Cabeça, ela cantou para aqueles que viveram um amor bandido, dependente e desequilibrado. Na tradicional Meu Ébano, onde ela faz uma declaração de amor à própria raça, um admirador pôde subir ao palco para dançar ao lado da cantora, que fez questão de explicar o porquê de não ficar o show inteiro de pé. “Eu sou uma mulher biônica, tenho pinos e parafusos na coluna”, afirmou.
E na terra de Lupicínio Rodrigues ela não poderia perder a oportunidade de cantar uma de suas composições. A escolha de Nunca não poderia ser mais perfeita. A potência vocal e a simbologia da letra, que canta o fim de um amor magoado, casaram perfeitamente com o estilo da Marrom.
Ainda com as homenagens, Explode Coração de Gonzaguinha foi cantada em uníssono pela plateia. Do samba dolente de Gostoso Veneno ao encerramento com o hino imortal Não Deixe o Samba Morrer, o espetáculo reafirmou a ligação visceral de Alcione com o gênero que ajudou a popularizar. O bis foi com o Canto Alegretense, e funcionou como aceno afetuoso ao público gaúcho, encerrando a noite em tom de festa.
No alto dos seus quase 78 anos completos, Alcione proporcionou mais do que uma retrospectiva, não se limitando a celebrar o passado. Sua voz, ainda intacta ao tempo, e carregada de potência e emoção, segue apontando para o futuro, amparada pelo novo e embasada no atemporal.
No bis, ela entoou o Canto Alegretense para homenagear o público gaúcho
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