“Sou a bombacha de santo/ sou o churrasco de Ogum/ entre os filhos desta terra/ naturalmente sou um./ Sou o trabalho e a luta/ suor e sangue de quem/ nas entranhas desta terra/ nutre raízes também”. O trecho do poema Sou, escrito pelo intelectual e militante do movimento negro Oliveira Silveira, mostra bem sua importância para o reconhecimento do dia 20 de novembro no Rio Grande do Sul. E agora o poeta ganhará um monumento a altura de sua relevância na Capital gaúcha, mais especificamente na Praça da Alfândega.
Professor e um dos principais articuladores da criação do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra no Brasil, Silveira terá um espaço de memória com uma obra pública no coração de Porto Alegre. A iniciativa é da Associação dos Escultores do Estado do Rio Grande do Sul (AEERS) e representa uma conquista do movimento negro e da família do intelectual, que há anos reivindicavam esse reconhecimento.
Segundo Naiara Silveira, filha do poeta e presidente do Instituto Oliveira Silveira, ter um espaço de memória como este valida tudo que o intelectual fez pelo movimento negro no Brasil. “É um reconhecimento da pessoa que ele foi. Uma pessoa muito simples, mas que sempre batalhou pelas causas da cultura e da história do povo negro no Rio Grande do Sul”, declara.
Oliveira Silveira foi um dos principais articuladores da criação do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra no Brasil
Tânia Meinerz/DIVULGAÇÃO/JC
A escolha do projeto está sendo feita por meio de um concurso público, organizado pela Associação e aberto a artistas de todo o Brasil. Segundo Vinícius Vieira, presidente da AEERS, esse modelo de seleção é o mais democrático e transparente. “É uma forma de garantir que qualquer artista ou coletivo artístico, de qualquer região do país, possa participar. Todos trabalham dentro do mesmo orçamento previsto e vence a proposta que melhor representar o legado do homenageado”, afirma.
A escolha do local foi uma sugestão da filha do poeta e a história é mais que especial. “A Praça da Alfândega era um dos locais que eu fazia passeios com meu pai, aos sábados à tarde. Além de ser o nosso local preferido em função da Feira do Livro”, explica Naiara, que também é secretária-geral da Associação Negra de Cultura.
O concurso será dividido em duas etapas. Na primeira, os artistas interessados devem enviar seus projetos para o e-mail escultoresrs@gmail.com até o dia 1º de setembro. Os trabalhos com maior pontuação serão selecionados para a segunda fase, na qual os participantes vão produzir maquetes das obras. Essas maquetes serão exibidas ao público em uma exposição aberta, ocasião em que também será anunciado o vencedor do certame.
A comissão julgadora é composta por representantes da Prefeitura de Porto Alegre, da Associação dos Escultores e da própria família de Oliveira Silveira. O objetivo é garantir uma avaliação criteriosa, que leve em conta não apenas a estética da obra, mas também sua coerência com a trajetória, os valores e a simbologia do homenageado.
Embora o concurso defina o projeto artístico, a execução do monumento dependerá de uma etapa posterior. “Nosso papel é entregar esse resultado. Depois, o artista vencedor e a Prefeitura vão buscar juntos as melhores formas de viabilizar a obra”, diz o presidente da AEERS. Entre as possibilidades estão recursos oriundos de emendas parlamentares, leis de incentivo à cultura ou financiamento direto via fundos públicos ou privados.
Ainda não há uma previsão de data para a instalação do memorial, mas, para Vieira, a Praça da Alfândega é um dos espaços mais emblemáticos na memória da cidade. “É o ponto onde a Capital começou, onde o imaginário coletivo está mais presente. Ter uma escultura do Oliveira ali é reforçar o que já está gravado na história imaterial do nosso povo com uma presença física, material, que vai permanecer viva e visível para todos”, afirma Vieira.
Nas memórias de Naiara, a escolha do local não tem só a ver com a Feira do Livro e os passeios de infância. Era nos caminhos da antiga Praça da Quitanda que seu pai conversava com o amigo e também poeta Mario Quintana. “Muitas vezes vínhamos passear e encontrávamos o Quintana. Eles eram muito amigos. Paravam e ficavam conversando por horas, falando de um poema, um livro, um escrito ou algo da semana. Eu ficava inquieta, querendo que aquela conversa terminasse logo. Apesar de saber quem era Mário Quintana, naquele momento não me interessava, eu queria o meu pai comigo. Só eu e ele”, relata, emocionada.
Além do reconhecimento simbólico, o ponto de memória como este contribui na perpetuação do legado de Silveira e na formação de uma consciência negra na cidade, no Estado e no País. “A memória do 20 de novembro, da luta por esse feriado, da afirmação da identidade negra no Brasil. Tudo isso estará representado ali. Não é só uma estátua, é um gesto político, pedagógico e cultural”, conclui Vieira.