Uma mulher se levanta, espreguiça-se. Tem pernas finas e roupas largas. Está desnutrida. Sua casa é sextavada e tem como divisória uma barraca de acampar, onde se imagina o quarto. Deve haver também uma sala, talvez com um daqueles sofás encontrados na calçada, umas panelas amontoadas. Mas, acima de tudo, a mulher tem uma espécie de teto. E porque privacidade é algo indispensável — todo ser humano sabe disso —, há papelões que servem como parede e porta, para que ninguém olhe a sua vida. Uma vida que, ironicamente, está em cima de um palco, exposta em 360 graus, para um público até bem jovem, que passa desanimado em frente a uma das escolas estaduais mais tradicionais do Rio Grande do Sul.
Essa cena se repetiu por alguns dias no início de novembro. Um mês depois, o local estava desocupado daquela senhora e da sua tentativa de lar. No lugar, havia apenas um colchão num canto. Passam os dias, saem pessoas e chegam outras em situação semelhante. Não há dignidade, não há segurança, muito menos constância. Só o que segue igual é um cenário degradante com novos rostos.
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Por ali transitam estudantes, trabalhadores, usuários de ônibus. Todos numa correria tentando se livrar de um lugar que é pouco agradável. É até difícil imaginar outra utilidade para aquele coreto fincado em frente à escola e à praça Piratini. Há mais de uma década, matérias de jornais denunciam a situação, mas as cobranças estão rareando. A estrutura foi gradualmente reivindicada pelos sintomas de uma cidade que não cuida de suas mazelas, que não se preocupa com as desigualdades e insiste em não enxergá-las. Mais alguns anos assim e talvez não haja mais o que fazer. Qual era mesmo a função de um coreto?
Ainda na memória de alguns, o local já foi palco de manifestações políticas importantes no passado e de eventos artísticos. É verdade que os protestos estão em desuso e que a arte está cada vez mais restrita a espaços de consumo, à publicidade e às marcas. Mas, pela definição, um coreto é um pavilhão erigido em praças ou jardins públicos, pensado para concertos musicais. Deveria ser um espaço que atraísse talentos locais — quem sabe até da própria escola? Um lugar para oficinas, shows, danças, encenações, um ponto de encontro e expressão, de queixas sobre o que não anda bem. Não consta em lugar algum que fosse apropriado para se viver.
Ainda na memória de alguns, o local já foi palco de manifestações políticas importantes no passado e de eventos artísticos. É verdade que os protestos estão em desuso e que a arte está cada vez mais restrita a espaços de consumo, à publicidade e às marcas. Mas, pela definição, um coreto é um pavilhão erigido em praças ou jardins públicos, pensado para concertos musicais. Deveria ser um espaço que atraísse talentos locais — quem sabe até da própria escola? Um lugar para oficinas, shows, danças, encenações, um ponto de encontro e expressão, de queixas sobre o que não anda bem. Não consta em lugar algum que fosse apropriado para se viver.
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Não vou dizer que se destrua tudo. Nem que se tire as pessoas à força. Seria mais uma forma de conformação e brutalidade: “Já que não funciona, que se derrube.” Também não digo que haja ali pocket shows patrocinados por alguma marca que adote a praça. Digo, isso sim, que se assista. De verdade. Que se veja o que está acontecendo, porque até isso parece difícil. A situação do Coreto do Julinho é, de certo modo, semelhante ao que ocorre no Anfiteatro Pôr do Sol ou no auditório do Jardim Botânico: um “deixa pra lá”, um sufocamento dos espaços públicos, de arte livre e popular. No lugar, fica uma ferida exposta, uma materialização das nossas falhas como sociedade. Falha no cuidado com o outro. Uma ferida que também é ignorada.
Que, ao menos, possamos vê-la como algo que existe e sangra, e não como mais uma cena cotidiana. Talvez seja um primeiro pequeno passo de retomada. Para uma cidade mais justa, mais humana, mais arejada.
Vejamos, então, esse doloroso espetáculo, essa irônica denúncia em cima do palco, aquilo que não está bem. Todos os dias, no Coreto do Julinho, na Avenida João Pessoa, por volta das 14h. Sem o baixar das cortinas.
Não vou dizer que se destrua tudo. Nem que se tire as pessoas à força. Seria mais uma forma de conformação e brutalidade: “Já que não funciona, que se derrube.” Também não digo que haja ali pocket shows patrocinados por alguma marca que adote a praça. Digo, isso sim, que se assista. De verdade. Que se veja o que está acontecendo, porque até isso parece difícil. A situação do Coreto do Julinho é, de certo modo, semelhante ao que ocorre no Anfiteatro Pôr do Sol ou no auditório do Jardim Botânico: um “deixa pra lá”, um sufocamento dos espaços públicos, de arte livre e popular. No lugar, fica uma ferida exposta, uma materialização das nossas falhas como sociedade. Falha no cuidado com o outro. Uma ferida que também é ignorada.
Que, ao menos, possamos vê-la como algo que existe e sangra, e não como mais uma cena cotidiana. Talvez seja um primeiro pequeno passo de retomada. Para uma cidade mais justa, mais humana, mais arejada.
Vejamos, então, esse doloroso espetáculo, essa irônica denúncia em cima do palco, aquilo que não está bem. Todos os dias, no Coreto do Julinho, na Avenida João Pessoa, por volta das 14h. Sem o baixar das cortinas.