Manter uma banda viva no underground, longe das cifras milionárias geralmente associadas aos grandes astros de rock, pode não ser uma tarefa das mais fáceis. Ainda assim, a mesma estrada que traz desgaste e perrengues também pode ser rica em recompensas - e é justo dizer que poucas bandas brasileiras têm a mesma autoridade do Ratos de Porão para tocar no assunto. Formada no distante 1981 por iniciativa do guitarrista Jão, o grupo vem transitando as trilhas do punk e do crossover thrash com igual desenvoltura desde então - adquirindo algumas cicatrizes pelo caminho, é claro, mas colecionando momentos de pioneirismo e angariando um respeito profundo de todos que se movem no cenário do som extremo, no Brasil e no exterior.
Responsável por álbuns lendários do som pesado como Crucificados Pelo Sistema (1984), Brasil (1989) e Anarkophobia (1991), o Ratos de Porão estará no Opinião (rua José do Patrocínio, 834) neste sábado, a partir das 21h, em mais um show da turnê que celebra os 40 anos de estrada do conjunto. A casa abre as portas às 19h, e a abertura da noite fica a cargo do grupo Código Penal. Ingressos (entre R$ 80,00 e R$ 160,00) seguem disponíveis via Sympla.
De perseverança, o underground entende. E acaba sendo adequado que caiba ao Ratos fazer um dos primeiros shows de som extremo na Capital, depois das desastrosas enchentes do último mês de maio. Onde muitos se viram forçados a cancelar, ou simplesmente acharam que o esforço não valia a pena, o quarteto paulistano formado por Jão (guitarra), João Gordo (voz), Boka (bateria) e Juninho (baixo) decidiu que faria de tudo para vir para cá - e vai encarar uma logística puxada para estar em Porto Alegre, incluindo viagens de ida e volta para Florianópolis para ter acesso mais fácil ao aeroporto.
"A gente acompanhou tudo o que estava acontecendo com bastante preocupação. Além de sempre sermos bem recebidos, formamos vários amigos por aí no decorrer dos anos: produtores, distribuidores, caras de outras bandas", afirma o baixista Juninho, em papo com o Jornal do Comércio. "Quando chegou a hora de decidir (se o show seria mantido), todos nós achamos que seria importante (fazer a apresentação), inclusive como forma de ajudar o pessoal, porque a gente sabe que uma situação dessas prejudica muita gente (ligada à cultura), que depende dos lances acontecendo para trabalhar", acrescenta.
Além de ajudar a roda do rock underground gaúcho voltar a girar - e de celebrar as quatro décadas de uma carreira vitoriosa - o show em Porto Alegre é mais uma chance de reforçar, junto ao público, as faixas de Necropolítica (2022), mais recente trabalho do quarteto. Concebido durante o auge da pandemia, o trabalho é quase monotemático, versando sobre a situação política e social do Brasil nesse começo de década - tudo dito e tocado com uma fúria que transborda sem controle de cada faixa do álbum.
"Quando a gente percebeu que o negócio da pandemia ia longe, que ia ficar bastante tempo sem show, parado, sem fazer nada, a gente falou: cara, agora é a hora da gente juntar todas as nossas ideias e fazer um disco à distância, que é uma coisa que a gente nunca fez antes", explica Juninho. "Naquela época, estava muito difícil pensar em qualquer outra coisa, a não ser todos os problemas envolvidos com a pandemia e o lance do (ex-presidente Jair) Bolsonaro ter vencido as eleições. A gente estava muito indignado com isso tudo e o disco acabou ficando meio monotemático, mas acho que, mesmo assim, ele não ficou maçante. Ele é como um marco, ele vai fazer parte da nossa história como uma representação daquele momento, de todas as histórias que a gente viveu (naquela época)."
Manter-se na estrada durante mais de quatro décadas exige bastante do físico de qualquer um, ainda mais tocando um som veloz e ríspido como o do Ratos de Porão. Recentemente, o vocalista João Gordo (uma figura, digamos, que nunca se destacou por ter um estilo de vida recomendável) vem revelando publicamente seus esforços para criar hábitos mais saudáveis - parte, conforme explica Juninho, de uma mudança até certo ponto natural de postura dentro da banda. "Eu sou bastante exceção, porque eu sou straight edge, não consumo qualquer tipo de droga, de álcool, nada. E as pessoas diziam (quando entrei na banda, em 2001) 'cara, o Ratos é uma banda de gente muito doida' e tal", relembra o baixista. "Eu acho que, desde 2023, a gente está em uma fase muito legal, porque o Gordo está evitando o álcool e isso faz muita diferença, porque o show fica melhor, o ânimo fica melhor. O Ratos exige um vigor físico pesado, porque é uma hora de show sempre num ritmo muito acelerado, tudo muito veloz. Tem que ficar esperto", admite.
Há mais de duas décadas sem mudanças de formação, o Ratos de Porão segue relevante e feroz, e ainda conta com uma legião de apreciadores atentos ao que o grupo tem a dizer, em cima do palco e fora dele. "O Ratos nunca foi uma banda de fazer muita grana, de ter cachê alto, de vender milhões de discos. A gente sempre foi uma banda média, que vive no underground, então nunca tivemos esse lance de ter muita grana envolvida, de o dinheiro subir à cabeça", explica Juninho. "A banda gosta muito de se encontrar para fazer os rolês: ensaiar, tocar ao vivo, gravar, viajar... A gente é muito amigo e troca muita ideia, e eu acho que isso ajuda muito."