Se Belchior estivesse na plateia do Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, na noite de sexta-feira (15), desfrutaria uma interpretação vibrante, sensual e moderna de suas músicas apresentada pela cantora Ana Cañas. Fazendo jus à estrofe de Velha Roupa Colorida, em que Belchior profetiza que "precisamos todos rejuvenescer", Ana, à sua maneira, deu um toque jovial e único à lista de sucessos de Belchior, ainda tão atuais e que, como ela mesma definiu, continuam a tocar os corações brasileiros.
Ainda que não estivesse lotado, o clima do teatro ficou quente no instante em que Ana pisou no palco para cantar a primeira música do espetáculo: Na Hora do Almoço. Era impossível não se deixar contagiar com a presença de palco da cantora que, vestindo uma peça colorida e óculos escuros, trouxe uma atmosfera de 'rockstar' universal àquele ambiente intimista no coração do Parque Redenção. "Cada palavra dela tem um poder". É o que foi possível ouvir do público ao fim da primeira música.
Na sequência, para a completa entrega do público, ela tocou Apenas Um Rapaz Latino-Americano e Velha Roupa Colorida. Numa breve pausa entre canções, Ana explicou que a ideia da turnê e do álbum homenageando Antonio Carlos Belchior surgiu durante a pandemia de coronavírus, quando ela começou a tocar na sala de casa para ajudar alguns amigos. "Essa turnê busca humildemente homenagear esse gênio", disse, ressaltando que esta foi a última vez que o show, realizado mais de cem vezes pelo Brasil inteiro, aconteceu em Porto Alegre. Com a turnê “Ana Cañas Canta Belchior”, ela afirmou ter o verdadeiro impacto do que significa Belchior para a cultura do País.
Um Rolê No Céu
A partir da vontade e decisão de homenagear o gênio da música brasileira, Ana construiu amizade com os filhos dele, Camila Belchior e Mikael Henman Belchior, que a presentearam, conforme contou durante o espetáculo, com uma música inédita do cearense chamada Um Rolê No Céu, escrita por ele em parceria com o compositor Gracco Braz Peixoto em 1987. "A Camila e o Mikael disseram 'talvez o pai tivesse escrito pra você cantar'. É que eu falo rolê para tudo que vou fazer", brincou Ana. "Me parece uma mensagem dele pra nós agora, do alto das estrelas", complementou antes de cantar os versos que ela também gravou: "Alô amor, alô amor, mando-lhe esse recado do terminal do computador de plantão".
Inclusive, foi assim, 'dando rolês', que Ana morou em Porto Alegre por um mês no ano passado e criou uma conexão importante com a cidade. "Eu acho que cada região do país é uma estrela. Essa cidade me deu um grande presente, de andar sozinha na rua, uma liberdade que nem sempre mulheres têm, de colocar meu boné e ir até o Guaíba beber de noite, conversar com as pessoas. Queria agradecer", falou. Em seguida, ela apresentou Fotografia 3x4. "A minha história é, talvez, igual a tua, jovem que desceu do norte, que no sul viveu na rua", entoou.
Nesse momento, a cantora paulista resgatou a história de Belchior, que, tendo desistido de ser padre e médico no Ceará, chegou ao sudeste em busca do seu sonho de artista, sem dinheiro nem para comprar o violão. "Às vezes, o público não sabe o que o artista passou para chegar onde chegou". A jornada de vida do nordestino, narrada em Fotografia 3x4, guarda algumas semelhanças com a trajetória de Ana. "Eu demorei para entender o que ele queria dizer com eu sou como você que me ouve agora (verso da mesma música)", começou, virando para plateia um espelho, depois de tocar.
"Eu briguei com a minha mãe aos 17 anos e fiquei 10 anos sem falar com ela. Fui morar com a minha avó e com o meu pai, em uma casa com uma janela cravejada de balas. Nesse período, internei meu pai, dependente químico, nove vezes. Quando ele se foi, eu fui morar num pensionato, num quarto que não tinha janela. Distribui panfleto, fiz coxinha e café para vender e me sustentar. Nesse lugar aprendi a amar mulheres, profissionais do sexo, que dividiam comigo o prato de comida e o sabão em pó. Um dia, um amigo perguntou se eu sabia cantar, me passou uma lista de músicas para decorar e fazer um teste no bar. Na minha situação, eu pensei que se eu cantasse eu não ia passar fome. Eu decorei as músicas. Eu era a última da fila para fazer o teste. Quando eu peguei o microfone e cantei, soube que era o que queria fazer até o fim da minha vida. Estou dizendo isso porque, se tiver alguém aqui, hoje, que esteja passando por alguma dificuldade, digo para não esmorecer. Num quarto escuro, basta um fósforo para que se ilumine. Às vezes, a vida nos leva não pelos caminhos que queremos, mas que precisamos", narrou, protagonizando um momento emocionante do show em que, com o espelho ainda virado para o público na altura de seu coração, enfatizou o verso "eu sou como você que me ouve agora".
Belchior, Elis Regina e Ana Canãs
Ainda estiveram no setlist da apresentação outros grandes sucessos, como Medo de Avião, Sujeito de Sorte, Antes do Fim, Divina Comédia Humana, Coração Selvagem e Paralelas. O cantor gaúcho Humberto Gessinger foi o convidado especial da cantora. Querido pelo público, ao lado de Ana, ele interpretou Palo Seco e Alucinação. "Quero que vocês cantem bem alto para o Belchior e para a Ana agora" disse Gessinger, ex- Engenheiros do Hawaii e Pouca Vogal. A plateia obedeceu e cantou o verso "amar e mudar as coisas me interessa mais" enquanto Ana levantava uma bandeira com a mesma frase.
Como não poderia deixar de ser, a música que encerrou o espetáculo no templo da música brasileira em Porto Alegre foi Como Nossos Pais. "Cantem para Belchior, cantem para Elis Regina", disse. Colocando tudo de si e da sua alma em cada palavra, Ana exigiu da plateia o mesmo vigor. "É a nossa última nota. Vamos lá", empolgou-se. E o público, inebriado pela energia dela, cantou mais uma vez: "Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais".
Se Belchior estivesse na plateia do Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, na noite de sexta-feira (15), desfrutaria uma interpretação vibrante, sensual e moderna de suas músicas apresentada pela cantora Ana Cañas. Veria, também, que o povo que ele enalteceu com tanta empatia em suas letras, registros do que há de mais verdadeiro e único na cultura brasileira, segue cantando, amando e sonhando com "mudar as coisas". Ana cumpriu, assim, seu objetivo.