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Teatro

- Publicada em 08 de Novembro de 2023 às 17:50

Zé da Terreira foi alegrar outros espaços

Curioso, Zé da Terreira andava por todos os teatros da cidade e assistia a todos os espetáculos

Curioso, Zé da Terreira andava por todos os teatros da cidade e assistia a todos os espetáculos


ROGERIO DO AMARAL RIBEIRO/DIVULGAÇÃO/JC
A morte do ator e cantor José Carlos Gonçalves Peixoto da Silva, o chamado Zé da Terreira, deixou o teatro, em geral, mais pobre, e nossa cidade, certamente, mais triste.
A morte do ator e cantor José Carlos Gonçalves Peixoto da Silva, o chamado Zé da Terreira, deixou o teatro, em geral, mais pobre, e nossa cidade, certamente, mais triste.
Natural da cidade do Rio Grande, onde nasceu em 1945, Zé da Terreira adotou esse nome artístico exatamente por sua profunda vinculação com o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz, com quem participou de inúmeras montagens teatrais. Um espírito bastante individual, mas não individualista, Zé da Terreira chegou a fazer o curso de ator do Departamento de Arte Dramática da Ufrgs, por volta de 1969, seguindo depois para o Rio de Janeiro. Suas qualidades de cantor levaram-no ao elenco da primeira montagem de "Hair". Mas Zé da Terreira não tinha vocação para uma carreira comercial, de sorte que em 1984 retorna ao Rio Grande do Sul e passa a integrar elencos variados de espetáculos como "Jacobina, balada para um mito mulher", "A exceção e a regra", em 1987, "Cartagena", sobre os navegantes espanhóis que descobriram o continente, "Teon", um espetáculo também vinculado aos mitos mais tradicionais, "A história do homem que lutou sem conhecer seu grande inimigo", de 1988, e assim por diante.
Eu já o conheci assim: barbudo de barbas grisalhas, embora não tivesse 30 anos. Curioso, sempre simpático, atencioso, disponível para uma troca de opiniões, perambulava por todos os teatros da cidade e assistia a todos os espetáculos. No Theatro São Pedro, ele chegava sestroso, até João Antonio, que o recebia com simpatia, e perguntava se poderia assistir ao espetáculo.
Nunca vi Zé da Terreira ter algum dinheiro. Por isso morava, até sua morte, na Casa do Artista Riograndense. Sua riqueza era outra: romanticamente, ele era um cavaleiro audaz, não de triste figura, mas de uma espantosa lucidez, capaz de resumir, em uma só frase, tudo o que estava ocorrendo a seu redor.
Como cantor, realizou espetáculos e até um CD, "Quem tem boca é prá cantar", que teve financiamento do Fumproarte, em 2002, mas também encenou trabalhos como "Césio 137" e "Tiro ao Álvaro", este em homenagem a Adoniran Barbosa, outra figura excêntrica e extraordinária de nossa música popular, descendente de italianos que era, paulistano, mas sambista de primeira ordem, com atinado olhar social.
Quem conversasse no dia a dia com Zé da Terreira, não se dava conta da voz afinada e firme que o cantor exibia. Ele falava com certa timidez e humildade, quase que a pedir desculpas. Mas ao pisar no palco, se transformava: ganhava força e consistência.
Num programa do projeto "Arte como ciência", de 18 de maio de 2021, idealizado pela atriz e pesquisadora Viviane Juguero, Zé da Terreira teve espaço e tempo para falar sobre o que pensava, sua pessoa e suas ideias. Por exemplo, ele destaca a função "dramática" do olhar, e observa que "como se fossem pássaros", suas ideias atravessavam a realidade e o levavam à compreensão das coisas.
Andava vestido com simplicidade, cabelos compridos e barbas brancas, nos últimos anos, era uma espécie de profeta da arte, em especial do teatro. Sambista de primeira, muitas vezes o vi sentado nas cadeiras colocadas nas calçadas defronte ao Theatro São Pedro, bebericando um chope fornecido por algum dos food trucks ali estacionados.
Não era grandiloquente, mas se expressava com firmeza, embora jamais com agressividade. Falava como se perguntasse ao interlocutor e dele esperasse a confirmação de suas ideias. Aos 78 anos de idade, era forte, caminhava ereto, embora devagar – não por velhice, mas porque gostava de fruir a vida, que lhe dava prazer – e ia de ponto a ponto da cidade, escolhendo o que apreciava e depois comentando com os amigos. Grande artista, nunca lhe foi difícil expressar-se com admiração a respeito dos outros atores ou músicos.
Num contexto em que tantos de nós estamos em guerra com quase todos, Zé da Terreira era uma exceção: de boa paz, com um sorriso sempre disponível, vai fazer falta nas ruas da nossa cidade e, sobretudo, nos espaços de nossos teatros. José Carlos preferiu ser apenas o quase anônimo Zé – como aquele do poema de Carlos Drummond de Andrade – "E agora, José?", mas quem vai precisar responder à pergunta do poeta somos nós, porque Zé da Terreira viajou, foi cantar em outra freguesia, encontrou um outro conjunto de amigos e constitui agora uma outra terreira.