“A vida humana é cuidada pelo médico. E o médico só pode exercer essa atividade se tiver formação para isso. Se é assim, então a vida dos animais também deveria ser cuidada somente por quem tem formação”, afirma o ex-deputado federal Guilherme Campos (PSD-SP).
Foi pensando nisso, que o político propôs, em março de 2014, o Projeto de Lei (PL) 7323/2014. A medida tipifica o exercício ilegal da profissão de médico veterinário como crime no Código Penal. E, após mais de uma década na fila de espera, foi aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 9 de setembro. Agora, o texto segue para apreciação do Senado.
Se for sancionada, essa nova legislação, não alterará os requisitos para exercer a profissão. Desde 23 de outubro de 1968, a lei n°5.517 já determina que, para atuar como médico veterinário, não basta apenas possuir diploma. Também é preciso estar registrado no Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) ou nos respectivos Conselhos Regionais.
“Hoje há pelo menos 215 mil médicos veterinários aptos a exercer a profissão no Brasil. Às vezes pode não ter numa cidade específica, mas na cidade vizinha ou na região certamente existe. A proibição de exercer a medicina veterinária, mesmo nos lugares mais remotos, já existe. Então, a lei não muda em nada nesse aspecto", explica o médico veterinário Fernando Zacchi, que é gerente técnico do CFMV.
A grande mudança, portanto, estará na penalização. Por enquanto, o seu exercício ilegal, seja por profissionais não inscritos ou profissionais não formados em medicina veterinária, consiste em uma contravenção penal.
“Contravenções penais são delitos de menor potencial ofensivo. Nesses casos, as penas incluem prisão simples, de 15 dias a 3 meses, ou multas”, explica o advogado Renan Cristian Pavi, que é presidente da Comissão de Proteção e Defesa dos Direitos dos Animais (CPDDA) da OAB Rio Grande do Sul.
Com a implementação da lei, inclui-se a profissão de médico veterinário no artigo 282 do Código Penal, que já criminaliza o exercício ilegal da profissão de médico, dentista e farmacêutico. Ou seja, a prática se torna crime, e as punições, por sua vez, passam a ser mais rígidas, com detenção de seis meses a dois anos. Se a prática for realizada com a intenção de lucro, também haverá multa.
O projeto de lei ainda determina que, se o exercício ilegal da profissão resultar em lesão ou morte de animais, o agente também deverá responder pelo crime de maus tratos, previsto na Lei de Crimes Ambientais, de 1998. Neste caso, a pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa. Mas pode ser ainda mais rígida quando se tratam de cães e gatos.
Embora represente um avanço significativo, para o advogado, ainda há lacunas na nova legislação. Segundo o artigo 89 da Lei n° 9.099, "nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos".
Em outras palavras, isso significa que há possibilidade de propor uma transação penal. "Essa proposta de transação penal inclui aquele famoso oferecimento de cesta básica ou serviço comunitário", afirma Pavi. E continua sendo uma alternativa, mesmo se o exercício ilegal da medicina veterinária se tornar crime.
"A pena mínima segue abaixo de um ano. Então, na prática, quem exerce ilegalmente a profissão de médico veterinário, ainda vai ter os benefícios da lei 9.099. Se for a primeira vez que a pessoa praticou esse delito, vai ter a chance de fazer uma transação penal", afirma o advogado. Ou seja, a mudança torna a punição mais rigorosa, mas ainda deixa margem para reincidências.
Para o advogado, portanto, há casos em que vale mais a pena denunciar a prática ilegal de medicina veterinária pelo crime de maus tratos. "Não são raras as vezes em que a gente consegue abordar e fazer que responda pelo crime de maus tratos de animais, que tem reclusão maior", completa.
Em busca de condições dignas de existência
Anualmente, o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul (CRMV/RS) recebe ao menos 700 denúncias de irregularidades. Cerca de 20% desse total está atrelado ao exercício ilegal da profissão, segundo o médico veterinário Mateus Lange, que é coordenador-técnico da entidade.
E engana-se quem pensa que os riscos dessa infração se restringem aos animais. Lange destaca que o exercício ilegal da medicina veterinária também representa um perigo enorme para os seres humanos. Afinal, seu campo de atuação vai desde a clínica de pequenos e grandes animais até o controle de zoonoses e a inspeção de produtos de origem animal.
“Uma pessoa que não está legalmente habilitada, por consequência, não está qualificada para prestar um atendimento clínico para um animal. Isso pode trazer prejuízos, desde agravar a doença até ocasionar maus tratos e uma série de outros problemas para o animal e para a pessoa que convive com ele”, afirma Fernando Zacchi.
Se o animal, portanto, está com uma zoonose, doença infecciosa que pode ser transmitida para os seres humanos, e a pessoa que atendeu esse animal não está apta a identificar essa situação, a tendência é que a contaminação se espalhe.
“Se a gente extrapola isso para animais de produção, o problema deixa de afetar só aquela família que convive com o animal. E pode afetar qualquer pessoa que consumir um produto de origem animal”, completa Zacchi. Eis aí a importância dessa mudança de legislação.
Para o gerente técnico do CFMV, a aprovação do projeto na Câmara de Deputados representa um grande avanço, ainda mais, considerando que há pelo menos 900 PLs relacionados direta ou indiretamente à medicina veterinária em tramitação.
“A gente espera que haja uma coibição desse exercício ilegal, e que, assim, possamos proteger não só os animais, mas também a sociedade que está no entorno”, afirma Zacchi.
Para Lange, por sua vez, a nova legislação deve garantir que os animais tenham condições dignas de existência. “Isso vai dar uma maior garantia para a sociedade, porque quem for exercer ilegalmente a profissão vai ter a ciência de que isso é um crime e poderá ser punido”, completa o coordenador técnico do CRMV/RS.