Você posta um vídeo nas redes sociais. Em seguida, recebe uma enxurrada de likes e comentários. Quanto mais você mostra, mais você ganha. Então posta outro vídeo. E, assim, recomeça-se um ciclo difícil de sair. Esse é um dos maiores riscos do uso inadequado de telas, especialmente, na infância e na adolescência.
No dia 6 de agosto de 2025, um vídeo do youtuber Felipe Bressanim, mais conhecido como Felca, trouxe à tona um problema que já não é de hoje: a adultização de crianças e adolescentes nas redes sociais digitais.
Embora o assunto tenha ganhado mais visibilidade nas últimas semanas, o uso da imagem de menores para finalidades comerciais, sensuais ou sexuais não é recente. E contraria o que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
“O estatuto prevê que a imagem do menor deve ser usada sempre de forma segura para preservar a saúde mental e física”, afirma o advogado Marco Antonio Araujo Jr., que é especialista em Direito das Novas Tecnologias pela Universidad Complutense de Madrid.
De acordo com Araújo, os pais ou representantes devem levar em consideração que crianças e adolescentes têm limites previstos na legislação. E esses princípios se aplicam tanto no âmbito analógico, quanto no digital.
“O ECA naturalmente não falava dessa exposição em rede social, por conta do tempo. Faz mais de 30 anos desde que a lei foi sancionada. Mas os princípios que constam no Estatuto também são aplicados de forma instantânea para aquilo que acontece nas redes sociais”, explica.
É aí que entra o Projeto de Lei (PL) nº 2.628/2022 ou ECA Digital, proposto pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE) em 2022. O documento cria regras para a proteção de crianças e adolescentes nos ambientes digitais, incluindo aplicativos, redes sociais e até jogos online.
Para o advogado Luis Fernando Plastino, que é especialista em Direito Digital, o projeto deve intensificar a fiscalização. “Muitas coisas devem mudar, desde a obrigação de que o desenvolvimento das plataformas seja dirigido ao melhor interesse da criança e do adolescente, até a responsabilização pelo uso das redes sociais por menores”, explica Plastino.
A proposta prevê novas obrigações para as plataformas, assim como maior controle de acesso por parte dos pais ou responsáveis. Entre as principais mudanças, está a exclusão imediata de conteúdos relacionados a abuso ou exploração infantil.
Para Platino, a legislação é positiva, mas conta com algumas lacunas. “Essa lei não aborda pontos importantes da denúncia do influenciador, que envolvem os próprios pais ou outros adultos utilizando a imagem das crianças”, explica.
Após sofrer alterações na Câmara dos Deputados, o projeto seguiu para o Senado e, com a popularização da problemática, foi aprovado no dia 27 de agosto. Agora, cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionar ou não a medida.
A CPI da Adultização
Em paralelo, no dia 20 de agosto, o Senado criou a CPI da Adultização para investigar crimes contra crianças e adolescentes, como pedofilia e abuso online. A comissão tem como objetivo apurar a atuação de influenciadores digitais e plataformas digitais na promoção de conteúdos que sexualizam menores de idade.
A CPI, que terá prazo de 180 dias e limite de despesa de R$400 mil, será composta por 11 membros titulares e 7 suplentes. Antes da aprovação, no dia 12 de agosto, 70 senadores assinaram um pedido de abertura da comissão, incluindo os três senadores gaúchos, Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Paulo Paim (PT-RS), assinaram o pedido.
Para Paim, a exploração de crianças e adolescentes é uma preocupação comum no Senado. “Essa é uma CPI que pode unir todos os segmentos do parlamento para que os responsáveis por esses crimes hediondos respondam pelos seus atos na dureza da lei”, afirma o petista.
Embora a aprovação seja recente, para o senador do Republicanos, o assunto não é novidade no Senado. Mas ainda tem um longo caminho pela frente. “Você não pode só colocar uma legislação, como nós colocamos. A gente tem que investigar. O grande objetivo da CPI é apontar um caminho para que o Estado brasileiro proteja suas crianças e adolescentes”, explica o senador.
Para Paim, o PL da Adultização, por sua vez, também é uma ferramenta essencial, pois propõe medidas práticas para o enfrentamento do problema. “Um crime, seja no ambiente digital ou fora dele, não pode se restringir somente à punição de criminosos. É necessário estruturar políticas públicas efetivas de prevenção”, completa.
O petista também é favorável à responsabilização das redes sociais pelos conteúdos publicados. “Você não pode entrar numa terra sem lei. Se tivermos que regulamentar as redes sociais para não permitir essa violência contra nossas crianças, que aconteça”, afirma.
Mourão, por outro lado, destaca que o PL da Adultização poderia ter melhoras, mas reconhece que se trata de um avanço em prol da proteção dos pequenos. Para o republicano, contudo, a responsabilização das plataformas é um assunto “delicado”, que pode “entrar no terreno da censura”.
Um ajuste de perspectiva
A psicóloga Sofia Sebben, que é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Famílias com Bebês e Crianças (Nufabe/Ufrgs), aponta que o uso irrestrito das redes sociais pode trazer problemas. E os riscos são ainda maiores para crianças e adolescentes que já estejam passando por alguma dificuldade ou vulnerabilidade.
Para ela, a longo prazo, uma criança superexposta ou submetida a comportamentos adultizados pode estar mais suscetível a problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade e baixa autoestima. Diante disso, alguns cuidados se tornam imprescindíveis.
Para além de monitorar o tempo nas telas, os pais devem incentivar o diálogo com seus filhos para entender a maneira como os pequenos estão utilizando as redes sociais. De acordo com Sofia, trata-se de cultivar conversas acolhedoras.
Até porque muitos pais desconhecem o ambiente digital e, por ignorarem como funciona, deixam os filhos livres. “Essa geração, que é nativa digital, acaba por conseguir burlar várias questões de segurança e acessar conteúdos que são altamente nocivos para alguém da idade deles”, explica o advogado especialista em Direito das Novas Tecnologias.
Em paralelo, a psicóloga destaca que é preciso “olhar para dentro”. “Nós estamos adoecidos ao ponto de aceitar que um adolescente se comporte como um adulto e, pior, que tenha uma indústria por trás que lucre com isso”, explica Sofia.
Para a psicóloga, a nova legislação é só um começo. O momento exige um ajuste de perspectiva. “É um convite para nós adultos percebermos como também estamos ultrapassando os limites e pulando etapas. Nós, enquanto usuários, nós também precisamos fazer a nossa parte, porque as redes sociais estão aí e não vão embora”, completa.