A reforma tributária que inicia sua fase de transição em 2026 deve desencadear uma das mudanças mais profundas já vivenciadas pela administração pública municipal, afetando planejamento orçamentário, receitas próprias, contratação de obras públicas e a governança fiscal. A avaliação é do consultor tributário da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) e consultor-chefe da Studio Lex, Luiz Fernando Rodrigues Junior, que há mais de quatro décadas acompanha a evolução da gestão pública. Para ele, o impacto será “brutal” e exigirá das prefeituras um salto tecnológico e administrativo sem precedentes.
Segundo Rodrigues Junior, a substituição gradual do ISSQN pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), somado à unificação dos sistemas de arrecadação, alterará de forma estrutural o papel fiscal dos municípios. A mudança reduz a autonomia direta sobre o ISS, mas pode beneficiar cidades com estruturas frágeis de fiscalização, ao criar um ambiente padronizado e compartilhado. “Os municípios perdem a capacidade plena que haviam estruturado para fiscalizar todo e qualquer serviço”, afirma. Em contrapartida, a padronização deve elevar a eficiência de municípios que hoje não dispõem de equipes tributárias robustas.
Para além do consumo, a reforma afeta também a lógica da arrecadação própria. O IPTU poderá ser atualizado por decreto, a contribuição de iluminação pública poderá financiar sistemas de monitoramento e a criação do Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB) unificará dados de imóveis para fins fiscais em todas as esferas da federação. Tributos como IPTU, ITBI, ITCMD e até o Imposto de Renda passarão a operar com base em um novo fluxo de informações, reforçando a necessidade de integração tecnológica.
No campo das obras públicas e contratações, o impacto será igualmente intenso. O fim da tributação “por dentro” e a exigência de neutralidade tributária devem alterar editais, concessões e contratos de longo prazo. “Os municípios ainda não internalizaram que toda mudança de receita altera também toda a despesa”, afirma Rodrigues Junior, apontando que o PPA, a LDO e a LOA terão de ser revistos com base em novas projeções de arrecadação durante a fase de transição.
Para Rodrigues Junior, o maior desafio será tecnológico. O sistema nacional que administrará IBS e CBS deverá ser “150 vezes maior que o PIX”, operando com cruzamentos massivos de dados e auditorias automatizadas. Nesse ambiente, prefeituras precisarão investir em inteligência artificial e automação fiscal. “Sem IA, não há como manter eficácia na fiscalização”, adverte. Mesmo a recomposição de quadros prevista na Constituição não será suficiente sem sistemas inteligentes capazes de interpretar dados em escala.
As avaliações do consultor são reforçadas por Antônio Ferreira, superintendente Administrativo e Financeiro da Famurs, advogado e contador, que destaca que o impacto inicial da reforma será menos financeiro e mais gerencial. “A mudança exige forte adaptação administrativa, de sistema e de planejamento”, afirma. Para ele, a principal transformação será a perda do modelo municipal baseado na origem e a transição para um sistema nacional centralizado e baseado no destino. “A maior mudança não é financeira; é administrativa e estratégica.”
Ferreira ressalta que municípios com forte produção e baixo consumo, especialmente industriais, exportadores, agropecuários e de pequeno porte tendem a perder participação relativa. Já cidades com maior circulação de comércio, serviços e turismo devem se beneficiar. “A reforma pode gerar desequilíbrio entre municípios, especialmente na fase inicial”, alerta, defendendo mecanismos robustos de compensação.
As obras públicas também sentirão reflexos indiretos, principalmente pela variação de receitas durante a transição. O financiamento e a previsibilidade de investimentos podem ser afetados caso os repasses do novo Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional não sejam suficientes. “A reforma não encarece diretamente as obras, mas afeta a capacidade de investimento e a segurança contratual”, explica.
Ferreira reforça que os municípios ainda não estão totalmente preparados, e que a qualificação das equipes será essencial. Nesse cenário, os contadores municipais assumem papel decisivo, conduzindo adaptações de sistemas, ajustes fiscais e garantindo segurança na transição. A Famurs, segundo ele, já está atuando em frentes técnicas, políticas e institucionais para apoiar os gestores.
Rodrigues Junior destaca também que as transformações trazidas pela Reforma Tributária, especialmente pela Lei Complementar (LC) 214/2025 e pelo Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, representam “uma verdadeira revolução na relação ética e responsável entre Fisco e contribuintes”. Segundo ele, essa mudança estrutural é fundamental para garantir que os municípios preservem seus níveis de receita, enquanto os contribuintes passam a pagar “o montante justo de tributo”.
Para ambos os especialistas, a reforma inaugura uma nova era. Tecnicamente mais exigente, administrativamente mais centralizada e tecnologicamente mais complexa, ela impõe desafios, mas também abre espaço para uma modernização inédita da gestão pública municipal.