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Publicada em 29 de Agosto de 2025 às 17:38

Há 25 anos a rua tem 'Boca' para falar

"Repórteres" do Jornal Boca de Rua mostram que ali também tem muita história

"Repórteres" do Jornal Boca de Rua mostram que ali também tem muita história

TÂNIA MEINERZ/JC
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Amanda Flora
Amanda Flora
É numa casa simples, cheia de cadeiras ocupadas por um grupo de pessoas com vontade de falar os anseios da rua, que um jornal é produzido há 25 anos. Pode até parecer uma cena comum de qualquer redação espalhada por aí, mas não é. Trata-se de um jornal construído por aqueles que, normalmente, são ignorados e marginalizados, mas que, devido a uma iniciativa única no mundo, têm boca para falar. Como eles mesmos se declaram: “somos o povo da rua!”, os que fazem e vendem o jornal Boca de Rua.
É numa casa simples, cheia de cadeiras ocupadas por um grupo de pessoas com vontade de falar os anseios da rua, que um jornal é produzido há 25 anos. Pode até parecer uma cena comum de qualquer redação espalhada por aí, mas não é. Trata-se de um jornal construído por aqueles que, normalmente, são ignorados e marginalizados, mas que, devido a uma iniciativa única no mundo, têm boca para falar. Como eles mesmos se declaram: “somos o povo da rua!”, os que fazem e vendem o jornal Boca de Rua.
A Casa Alice é o espaço que acolhe as dezenas de colaboradores, os chamados 'repórteres da rua', que participam de todas as etapas da produção: da discussão de pauta à edição final, passando por entrevistas, textos, fotos e vídeos para as redes sociais. Foi em uma dessas reuniões, marcadas por falas diretas e ideias de pauta geniais, que nossa reportagem pôde testemunhar o funcionamento vivo do jornal sem hierarquias. Não existe chefia, existe parceria e horizontalidade.
Criado em 2000, na Porto Alegre efervescente do Fórum Social Mundial, e vinculado à ONG Alice, Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação, o jornal Boca de Rua nasceu de um encontro entre jornalistas recém-formados e pessoas em situação de rua da Capital. “A Alice surgiu um ano antes com o propósito de trabalhar com grupos que não tinham visibilidade na mídia nem registro histórico de suas vidas. O Boca é o primogênito”, explica a editora e idealizadora do Boca, a jornalista Rosina Duarte - carinhosamente chamada de mãe por alguns dos participantes. 
"O grupo se autocoordena, eu apenas organizo as ideias", explica a editora do Boca, Rosina Duarte | TÂNIA MEINERZ/JC
"O grupo se autocoordena, eu apenas organizo as ideias", explica a editora do Boca, Rosina Duarte TÂNIA MEINERZ/JC
A iniciativa, que começou na Praça do Cachorrinho, logo mostrou que não se tratava de “ajudar alguém”, mas de aprender com aquela realidade. “Nós precisávamos nos alfabetizar nesse universo. O Boca nasceu dessa descoberta conjunta de linguagem e franqueza, muitas vezes brutal”, lembra. “Ele não é um projeto social, como muitos pensam, e sim uma comunidade de trabalho e renda. De redução de danos do silêncio e da solidão que as pessoas da rua passam”, explica Rosina.
Cada edição leva cerca de três meses para ficar pronta. O grupo se reúne semanalmente, discute pautas e relatos, escreve coletivamente e revisa cada texto até a versão final. Nada é publicado sem que todos leiam e aprovem. A diagramação é feita por Cristina, designer que acompanha o projeto desde o primeiro número, enquanto Rosina organiza e edita os conteúdos.
O funcionamento do Boca também desafia a lógica das redações tradicionais. Não há uma hierarquia rígida nem uma figura central de comando: as reuniões acontecem em assembleia, onde cada voz disputa espaço, às vezes em meio a discussões acaloradas e falas atravessadas. É nesse ambiente vivo e visceral que o jornal se constrói, com uma espécie de autorregulação coletiva que garante tanto a liberdade de expressão quanto a responsabilidade pelo que será publicado. Como resume Rosina, “o grupo se auto-coordena, eu apenas organizo as ideias”, afirma.
 O grupo se reúne semanalmente, discute pautas e relatos, escreve coletivamente e revisa cada texto até a versão final. Nada é publicado sem que todos leiam e aprovem | TÂNIA MEINERZ/JC
O grupo se reúne semanalmente, discute pautas e relatos, escreve coletivamente e revisa cada texto até a versão final. Nada é publicado sem que todos leiam e aprovem TÂNIA MEINERZ/JC
O financiamento continua sendo um dos maiores desafios. Para garantir a independência editorial, o Boca não aceita verbas de políticos nem de empresas privadas. A impressão é custeada por assinaturas virtuais, doações de apoiadores e eventos promovidos na Casa Alice, como saraus e feiras. Foi também graças a doações que a ONG conseguiu, há cerca de três anos, ter uma sede própria no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, após mais de duas décadas sem endereço fixo.
A impressão é custeada por assinaturas virtuais, doações de apoiadores e eventos promovidos na Casa Alice | TÂNIA MEINERZ/JC
A impressão é custeada por assinaturas virtuais, doações de apoiadores e eventos promovidos na Casa Alice TÂNIA MEINERZ/JC
Se para Rosina o Boca é “uma pequena revolução”, para os repórteres que fazem ele diariamente, é também transformação pessoal. Michelle Marques dos Santos, que participa como repórter desde a primeira edição, descobriu o projeto quando vivia nas ruas. “O Boca me ajudou em muitas coisas. Primeiro, para eu poder entender que no meio das pessoas eu também sou gente. Poder conversar, mostrar o meu trabalho, isso me deu muito orgulho”, conta.
Ao longo dos anos, Michelle viu sua trajetória se misturar com a do jornal. Esteve em capas, assinou títulos escolhidos coletivamente, participou de entrevistas e debates públicos. Para ela, cada edição é motivo de pertencimento. “Quando a gente vê o jornal pronto, sabe que deixou uma marca. Eu lembro quando minha foto saiu na capa, em 2007. Foi emocionante. Pensei: a rua também pode aparecer de outro jeito, não só nas notícias ruins”, diz.
Hoje, Michelle reconhece que o Boca a ajudou a encontrar dignidade e identidade. “Eu já vivi muitas dificuldades, mas o Boca me mostrou que a gente pode falar, pode denunciar, pode ser ouvido. Eu sou repórter de rua e tenho orgulho disso. Eu ajudo a contar histórias que ninguém mais contaria”, relata.
 "O Boca é isso: uma boca aberta para gritar o que não é dito", afirma Rosina. | TÂNIA MEINERZ/JC
"O Boca é isso: uma boca aberta para gritar o que não é dito", afirma Rosina. TÂNIA MEINERZ/JC
Segundo Rosina, esse é o maior legado do jornal nestes 25 anos: mostrar que a vida não é uma folha plana, mas um caleidoscópio de experiências e vozes. “Absolutamente ninguém deve ser subestimado. A sociedade não sabe o que está perdendo quando prescinde dessas pessoas que sobreviveram a coisas que nós não sobreviveríamos. O Boca é isso: uma boca aberta para gritar o que não é dito. E uma vez que você entra aqui, nunca mais é a mesma pessoa”.
Ao completar 25 anos, o Boca de Rua segue como um espaço de cidadania, resistência e humanidade. É comum andar pelas ruas da Capital e ver algum de seus repórteres vendendo mais uma edição desse produto que quem carrega nas mãos, carrega a história de um povo invisibilizado, mas nunca vítima. 
Confira as demais fotografias feitas pela fotojornalista Tânia Meinerz durante a reunião de pauta do Jornal Boca de Rua:
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação).  Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social. | TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação). Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social. TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação).  Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social. | TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação). Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social. TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para decidir as pautas é feita com apoio da Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação | TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para decidir as pautas é feita com apoio da Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação).  Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social. | TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação). Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social. TÂNIA MEINERZ/JC
Exemplares são vendidos por pessoas em situação de rua em Porto Alegre | TÂNIA MEINERZ/JC
Exemplares são vendidos por pessoas em situação de rua em Porto Alegre TÂNIA MEINERZ/JC
 
 

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