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Publicada em 15 de Agosto de 2025 às 17:39

Justiça Restaurativa é aposta para um futuro mais humano

Prevenir a violência, fortalecer vínculos saudáveis e promover o bem-estar socioemocional são alguns dos objetivos da chamada Central do Pão

Prevenir a violência, fortalecer vínculos saudáveis e promover o bem-estar socioemocional são alguns dos objetivos da chamada Central do Pão

TÂNIA MEINERZ/JC
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Luana Pazutti
Luana Pazutti
Há quem diga que trata-se de uma filosofia de relacionamentos. Ou melhor, de uma filosofia de vida. Para alguns autores, é um movimento social em desenvolvimento. A Justiça Restaurativa recebe vários apelidos. Mas, para a Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e a Fundação O Pão dos Pobres, o nome é a parte menos importante dessa história, que resultou na criação da Central Escola de Práticas Restaurativas. 
Há quem diga que trata-se de uma filosofia de relacionamentos. Ou melhor, de uma filosofia de vida. Para alguns autores, é um movimento social em desenvolvimento. A Justiça Restaurativa recebe vários apelidos. Mas, para a Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e a Fundação O Pão dos Pobres, o nome é a parte menos importante dessa história, que resultou na criação da Central Escola de Práticas Restaurativas
Prevenir a violência, fortalecer vínculos saudáveis e promover o bem-estar socioemocional são alguns dos objetivos da chamada Central do Pão. Oficialmente lançada no dia 3 de julho de 2025, essa iniciativa conjunta surge como experiência inédita no Brasil, que propõe a integração de práticas restaurativas ao cotidiano de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade.  
Aprender a conviver
A justiça restaurativa é uma nova abordagem para a resolução de crimes e conflitos, que tem o diálogo como principal pilar. "Trata-se de uma alternativa à justiça tradicional", destaca o desembargador Leoberto Brancher, que é coordenador do Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa na Escola da Ajuris. Para ele, o conceito propõe uma inversão à clássica lógica punitiva e autoritária do sistema penal brasileiro, que costuma se centrar nas noções de hostilidade, culpa e castigo. 
Pioneiro em Justiça Restaurativa no Brasil, Brancher afirma que a aplicação desse conceito depende de uma série de metodologias, que, por sua vez, são chamadas de "práticas restaurativas". Essas técnicas, contudo, não têm sido úteis apenas no cenário criminal. Pelo contrário, elas têm se mostrado bastante eficazes para o aprimoramento de relacionamentos interpessoais. Até porque, para o desembargador, a noção de "culpa" não se limita ao ambiente prisional, mas se enraíza nas mais diversas esferas da cultura brasileira.
"Estamos sempre procurando um culpado. De quem é a culpa da violência nas escolas? De quem é a culpa do governo estar indo mal? Estamos sempre dizendo quem está certo e quem está errado. Isso acontece no dia-a-dia, na educação dos filhos e na convivência em geral", explica. 
Para o professor Afonso Armando Konzen, que integra a equipe docente da Justiça Restaurativa na Escola da Ajuris, a premissa dessas metodologias é "incidir nas relações humanas", tornando a convivência mais harmoniosa e fraterna. Tudo isso, a partir da criação de vínculos, e com um objetivo em mente: a construção da paz
De semente em semente
Em 2024, a Fundação O Pão dos Pobres, que completa 130 anos em 2025, atendeu 1,4 mil crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social e risco de alta complexidade. Somente no Programa de Aprendizagem Profissional, que já vem implementando metodologias restaurativas, foram 949 pessoas atendidas em 15 cursos diferentes no último ano.
"Muitas das crianças vêm para o acolhimento institucional por decisão judicial. A justiça já está na base do Pão dos Pobres e isso faz com que tenhamos essa proximidade com a Ajuris. Mas, é claro que a gente procura sempre evoluir e inovar", explica Rocha. E foi, em meio a essa busca, que surgiu a ideia de unir as duas instituições em prol da justiça restaurativa.
Tanto para o presidente da Ajuris, Cristiano Vilhalba Flores, quanto para o gerente da Fundação O Pão dos Pobres, João Rocha, a Central de Práticas Restaurativas nasce como mais um resultado positivo de uma parceria de longa data. Mas, acima disso, como uma oportunidade para expandir saberes e ampliar impactos.
"No momento em que a gente consegue levar isso para crianças e adolescentes, que serão os nossos adultos do futuro, conseguimos colocar sementes para uma sociedade com mais diálogo", afirma Flores. 
Um ajuste de perspectiva
Como construir um futuro mais humano? Para o professor Afonso Konzen, esse é um dos questionamentos norteadores quando se trata de justiça restaurativa. Responder essa pergunta pode não ser fácil. Mas, para as jovens Jamylle dos Santos Woicjiekowski e Isadora Azevedo Monteiro, a resposta parece estar na ponta da língua e, certamente, começa na sala de aula
"Se a gente sempre se coloca como 'o principal', acabamos ficando cegos. A partir desse tal altruísmo, percebemos que não podemos existir como se fôssemos os únicos no mundo", afirma Isadora, de 15 anos.
O tal altruísmo é um dos princípios balizadores dos "círculos de paz", uma prática restaurativa realizada periodicamente na turma das duas meninas, que participam do curso de Auxiliar de Cabeleireiro da Fundação O Pão dos Pobres. Para Jamylle, também de 15 anos, essa dinâmica tem sido importante porque permite "olhar para o outro". 
Além do altruísmo, essas rodas de conversa funcionam a partir do sigilo e do respeito. Esses "combinados", como são chamados pelos educadores, são pensados coletivamente em cada grupo e favorecem a construção de um ambiente seguro, onde todos se sintam confortáveis para compartilhar seus anseios.
A educadora Raísa Storniolo Garcez, que é coordenadora da Central de Práticas Restaurativas, explica que as dinâmicas têm diferentes finalidades. "A gente pode focar na resolução ou na prevenção de conflitos. Assim como, trabalhar o bullying e a autoestima. Podemos até tentar definir conceitos. Conforme os aprendizes descobrem, por exemplo, o que significa respeito para a turma, eles entendem também as características do seu colega", detalha.
Para Isadora, essas metodologias favorecem a construção de uma rede de apoio. "Às vezes, a pessoa só quer falar mesmo, quer contar os problemas e se sentir ouvida. Isso nos trouxe a capacidade de entender que, para além de nós, existem outras pessoas que também têm problemas", explica.
E, não para por aí, Jamylle afirma que as metodologias restaurativas favorecem o desenvolvimento de uma competência essencial: a autoconfiança. "Esse círculo faz com que a gente tenha calma e leveza para se expressar. Isso não é tão difícil. É algo que a gente aprende e treina", destaca. 
Desde que a Central do Pão foi implementada, as duas estudantes se sentem mais preparadas para resolver conflitos e, especialmente, para encarar os desafios que o futuro reserva, seja na vida acadêmica, pessoal ou profissional. Para elas, a experiência tem promovido uma verdadeira transformação. 
No fim das contas, talvez a pergunta do professor Konzen não tenha uma única resposta. Mas, para os aprendizes da Fundação O Pão dos Pobres, isso não é um problema. Afinal, a grande chave para um futuro mais humano está justamente em abraçar as diferenças. Jamylle e Isadora não deixam margem para dúvidas, o segredo está em nada mais, nada menos do que em um ajuste de perspectiva. Está em trazer o diálogo bem para o centro do nosso grande círculo de vida. 

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