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Publicada em 26 de Maio de 2025 às 00:50

Projeto leva trabalho, renda e esperança para encarceradas do Madre Pelletier

Um grupo selecionado de detentas trabalham com a descaracterização de objetos advindos do Programa Sustentare

Um grupo selecionado de detentas trabalham com a descaracterização de objetos advindos do Programa Sustentare

BRENO BAUER/JC
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Amanda Flora
Amanda Flora
Porto Alegre, dia 12 de maio de 2025, 14 horas. Uma equipe de reportagem do Jornal do Comércio se desloca até a penitenciária feminina Madre Pelletier, na Zona Sul da Capital. Até pode parecer, mas essa não é uma história triste como aquela contada na música Diário de Um Detento do grupo de rap Racionais MC’s, mas sim uma iniciativa de reparação social, oportunidade e sustentabilidade ambiental.
Porto Alegre, dia 12 de maio de 2025, 14 horas. Uma equipe de reportagem do Jornal do Comércio se desloca até a penitenciária feminina Madre Pelletier, na Zona Sul da Capital. Até pode parecer, mas essa não é uma história triste como aquela contada na música Diário de Um Detento do grupo de rap Racionais MC’s, mas sim uma iniciativa de reparação social, oportunidade e sustentabilidade ambiental.
Trata-se do Programa Sustentare, que existe desde 2016 e tem como objetivo tratar da destinação e do descarte regular de eletroeletrônicos de órgãos e entidades do estado do Rio Grande do Sul. Além do objetivo principal, o programa atua na facilitação de novas alternativas de trabalho ligadas a reciclagem e descaracterização de artigos eletroeletrônicos, a partir de parcerias público-privadas e termos de cooperação com empresas da área.

Suelen Teixeira, diretora do Madre Pelletier, Joelson Gonsalves, sócio da JG Reciclagem, e Sabrina Varoni, diretora adjunta da penitenciária | BRENO BAUER/JC
Suelen Teixeira, diretora do Madre Pelletier, Joelson Gonsalves, sócio da JG Reciclagem, e Sabrina Varoni, diretora adjunta da penitenciária BRENO BAUER/JC
E no presídio Madre Pelletier, por exemplo, existe um espaço onde um grupo selecionado de detentas lida, diariamente, com a desmontagem de computadores, impressoras, monitores e demais objetos eletrônicos já obsoletos, vindos de pontos de coleta do projeto. A responsável pela administração do lugar e da rotina de trabalho das encarceradas do Madre é a empresa JG Reciclagem.
“Para mim, esse espaço que estamos não é mais um presídio, e sim uma empresa. Elas (as detentas) trabalham, recebem exatamente no mesmo dia que os meus demais funcionários, usam o mesmo uniforme e os mesmos EPIs, sem distinção”, afirma Joelson Gonsalves, sócio da JG Reciclagem.
O espaço é um galpão localizado no térreo do Madre, cheio de materiais eletrônicos já separados e aqueles que serão descaracterizados. Lá tem uma sala para lanche, todas as trabalhadoras são uniformizadas, utilizam equipamentos de proteção individual (EPIs) e trabalham seis horas por dia, de segunda a sexta-feira.
Segundo a diretora da penitenciária, Suelen Teixeira, existe uma série de requisitos para a detenta trabalhar no projeto, como comportamento e tipo de condenação. As contempladas da lista de espera, começam a trabalhar e recebem o equivalente a 85% do salário mínimo, a remissão da pena, onde a cada três dias trabalhados, o tempo na prisão diminui um dia, e um valor pago em pecúlio para quando as apenadas saírem da prisão.
“As que trabalham nesse termo de cooperação são alojadas numa galeria de trabalhadoras e elas gostam. O Sustentare não é só para o meio ambiente, hoje ele é trabalho, tratamento penal, remuneração e, principalmente, ressocialização. Para que elas possam se reintegrar na sociedade quando saírem daqui”, afirma a diretora.
O último levantamento sobre encarceramento de mulheres no Brasil, mostrou que o País é o terceiro com a maior população feminina carceraria do mundo, com 43 mil mulheres apenadas, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Os dados são do Instituto de Pesquisa de Políticas de Crime e Justiça (da sigla ICPR, em inglês) da Universidade de Londres, e foi publicado no final de 2022.
Sem fazer juízo de valor, o Racionais MC’s canta: “Cada detento, uma mãe, uma crença. Cada crime, uma sentença”. E as mães não estão apenas do lado de fora das prisões, um número considerável de aprisionadas acompanham e auxiliam seus filhos a distância, cumprindo pena. Esse é o caso da Rose (nome fictício), uma das detentas trabalhadoras do projeto no Madre Pelletier.
“Aqui eu faço reciclagem. Eu divido materiais, vidro, ferro, alumínio, plástico, cobre. Tudo praticamente”, afirma a trabalhadora. Para ela, a atividade com a desmontagem dos objetos “é sair totalmente de dentro do presídio e estar literalmente numa firma, trabalhando”.
Com o salário que recebe todo mês, Rose consegue ajudar na criação de seu filho adolescente. “É muito gratificante, porque além de eu remir meu tempo na cadeia, eu sou remunerada, consigo ajudar a minha família. Ajudei o meu filho a fazer uma cirurgia que ele precisava, e venho guardando dinheiro para recomeçar a minha vida na sociedade quando eu sair”, desabafa.

Além da ressocialização, iniciativa foi destaque em Fórum Mundial

Case do RS ganhou projeção internacional no Fórum Mundial da Economia Circular, realizado entre os dias 13 a 16 de maio deste ano, em São Paulo

Case do RS ganhou projeção internacional no Fórum Mundial da Economia Circular, realizado entre os dias 13 a 16 de maio deste ano, em São Paulo

BRENO BAUER/JC
O futuro sustentável pode estar dentro dos muros de uma penitenciária. Pilhas, baterias, placas- -mãe, cabos, telas, monitores, celulares e componentes que antes se acumulavam em depósitos irregulares ou acabavam descartados de forma inadequada, hoje têm destino certo — e ecologicamente responsável. O impacto ambiental positivo do projeto Sustentare e suas parcerias, ultrapassou os muros do presídio e ganhou projeção internacional no Fórum Mundial da Economia Circular, realizado entre os dias 13 a 16 de maio deste ano, em São Paulo.
A Circular Brain, empresa parceira do programa, levou o case do Madre como exemplo de como a economia circular pode ser aplicada com sucesso em diferentes contextos, inclusive o prisional. E a iniciativa chamou atenção pela maneira como conecta descarte correto de resíduos eletrônicos, rastreabilidade e impacto social no processo. “Foi interessante ver o quanto esse projeto chama atenção quando você mostra um impacto ambiental real e conectado com políticas públicas”, afirmou Lívia Santarelli, gerente de marketing da Circular Brain. Segundo ela, o case do Estado foi reconhecido pela capacidade de articular diversos setores e pela possibilidade de replicação.
“É uma forma de mostrar que a economia circular no Brasil não está só no discurso, ela está acontecendo e pode ser escalada. O que está sendo feito no Madre Pelletier é uma referência de como a tecnologia e a logística reversa podem gerar transformação de verdade”, completou. “Hoje temos mais de 1.300 ecopontos cadastrados pela Circular Brain, uma parceira essencial para que esses resíduos cheguem até nós. É um trabalho que começa lá fora, com o descarte consciente da população, e termina aqui dentro, com o processamento seguro desse material”, explica Joelson Gonsalves, sócio da JG Reciclagem. Cada componente retirado tem destino próprio. Cabos de cobre, plásticos, carcaças metálicas, placas e vidros são separados manualmente e vendidos para a indústria.
As placas mais complexas, como as de computadores, as chamadas “placa-mãe”, seguem para países como o Japão, onde há tecnologia para extrair metais nobres com segurança, evitando que substâncias tóxicas como chumbo e o mercúrio acabem contaminando o solo e outras superfícies. “Conseguimos mostrar, na prática, que meio ambiente também se cuida com logística, organização e responsabilidade social. A cadeia produtiva da sustentabilidade começa com a consciência de quem descarta e se completa com o trabalho técnico”, finaliza Livia.

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