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Publicada em 20 de Maio de 2024 às 17:21

Avanço dos cultivos sobre mata nativa acelera desequilíbrio ambiental

Área rosada no Alto Jacuí mostra onde a soja ocupou amplo espaço da vegetação nativa

Área rosada no Alto Jacuí mostra onde a soja ocupou amplo espaço da vegetação nativa

MAPBIOMAS/JC
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Claudio Medaglia
Claudio Medaglia
As cheias que devastaram cidades inteiras e afetaram mais de 90% dos municípios gaúchos mostraram seu potencial destrutivo e são alertas para eventos futuros. E as ações de enfrentamento precisam ser implantadas como soluções integradas.
As cheias que devastaram cidades inteiras e afetaram mais de 90% dos municípios gaúchos mostraram seu potencial destrutivo e são alertas para eventos futuros. E as ações de enfrentamento precisam ser implantadas como soluções integradas.
Afinal, as águas que inundaram os vales do Taquari-Antas, do Rio Pardo, do Caí, do Gravataí e do Sinos, até fazerem o Guaíba transbordar, também começaram a cair ainda mais acima. E, com poucos obstáculos, desceram pelos cursos d’água do Estado com força e velocidade. Especialistas afirmam que medidas para reduzir os impactos passam por um olhar sobre infraestrutura e também sobre o ambiente. Barragens robustas, projetadas para situações ainda mais extremas do que as enfrentadas agora e recomposição da vegetação nativa, drasticamente reduzida no Rio Grande do Sul, poderiam caminhar lado a lado nesse processo.

Leia mais: Nível do Guaíba deve ficar abaixo dos 4 metros ainda nesta semana, indica IPH

Conforme o biólogo Eduardo Vélez, o desequilíbrio entre agricultura e áreas de vegetação nativa é um dos principais fatores associados à catástrofe climática que arrasou parte do Rio Grande do Sul. E, para robustecer o enfrentamento a novos eventos extremos, é preciso retroceder, especialmente no cultivo de soja, afirma o pesquisador do MapBiomas para a região do Pampa. A iniciativa é do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima, produzida por uma rede colaborativa formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia organizadas por biomas e temas transversais. Suas ações abrangem todo o território brasileiro, além da Argentina e o Uruguai.
Estudo do MapBiomas mostra que o Rio Grande do Sul perdeu cerca de 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa entre 1985 e 2022. A área corresponde a 22% da cobertura vegetal formada por campos e florestas, entre outras. E, nesse período, mais de 1 milhão de hectares de matas foram transformados em lavouras de soja no Pampa, aponta Vélez.
O Estado também perdeu 3,3 milhões (ou 32%) de hectares em formações campestres - adaptadas ao clima subtropical do Rio Grande do Sul e formada, preferencialmente, por gramíneas e pequenos arbustos. Essas formações - historicamente utilizadas para pecuária extensiva, atividade menos agressiva ao solo e que preserva características originais biológicas e funções ambientais - deram lugar às lavouras de soja, cultura que cresceu 366%. Eram 1,3 milhão de hectares da olerícola há 38 anos. Já em 2022, foram 6,3 milhões, avançando também sobre pastagens.
Segundo ele, o cultivo da oleaginosa sobre áreas originalmente ocupadas por campos nativos e formações campestres impacta as condições do solo. A vegetação nativa reduz a velocidade da chegada da água ao leito dos rios, facilita a infiltração no solo e diminui o assoreamento. A absorção de água e a capacidade de retenção do solo pelas plantas de soja é menor que a da vegetação nativa, por conta das diferenças entre os sistemas radiculares.
A remoção dessa vegetação não é a culpada pelo que está acontecendo, mas é parte do problema. Então, olhando para o futuro, precisamos retroceder. E reequilibrar essa relação entre produção agrícola e a proporção de mata nativa”, afirma.
O pesquisador revela que a perda dessa vegetação ocorreu em todo o Rio Grande do Sul. Mas de forma mais acentuada na região hidrográfica do Guaíba, onde 1,3 milhão de hectares foram removidos.
Nascedouro da enxurrada, a região do Alto Jacuí, por onde desceu toda a chuva acumulada, extravasando cursos d’água adjacentes e inundando diversos municípios na bacia hidrográfica do Guaíba - de 2,9 mil quilômetros quadrados -, é um modelo que reforça a argumentação do biólogo. Ali, apenas 19% da superfície é composta por mata nativa.
Mapa de cobertura e uso da terra produzido pelo MapBiomas em 2022 mostra a má distribuição da vegetação por toda a bacia do Guaíba. E reflete o avanço da olericultura a ponto de reduzir demasiadamente as matas.
Os modelos climáticos – que há décadas vêm apontando a transformação e o aquecimento global - indicam que o volume de chuva sobre o Rio Grande do Sul será grande nos próximos 50 anos. O responsável é o aumento da emissão de gases formadores do efeito estufa, que afeta a circulação atmosférica, armazenando a umidade e impedindo o avanço das frentes frias.
“Temos de pensar como preparar a terra para que as chuvas que virão não liquidarem com tudo, inclusive o solo. É preciso reter água nas cabeceiras dos rios”, adverte.
Ele sugere a recomposição da vegetação nativa para pelo menos 30% da área em toda a bacia do Guaíba, a partir da região de Cruz Alta e Passo Fundo. “Para termos equilíbrio com a agricultura e distribuição homogênea.
A silvicultura também gera impacto, ainda que menor, sobre o ambiente. A atividade é menos danosa, já que não deixa o solo tão exposto. Mas implica remoção de vegetação nativa.
De acordo com o MapBiomas, a área destinada à atividade no Estado cresceu 1.399%, passando de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares. No ano passado, a alteração do Zoneamento Agrícola de Risco Climático no Rio Grande do Sul passou a permitir o adensamento da produção de florestas para extração de madeira na mesma bacia, conclui Vélez.

Geólogo sugere barragens robustas para controlar vazão das águas

Barragem Itaipu, com 196 metros de altura, suporta grandes altas do Rio Paraná

Barragem Itaipu, com 196 metros de altura, suporta grandes altas do Rio Paraná

Alexandre Marchetti/Itaipu Binacional/DIVULGAÇÃO/JC
Para o geólogo Pedro Côrtes, professor da Faculdade de Energias e Ambiente da Universidade de São Paulo, controlar a vazão dos principais rios que contribuem para as enchentes é missão obrigatória. Assim como a reposição da mata nativa no entorno dos corpos d’água, ferramenta eficaz para evitar a subida das águas em alta velocidade.
“Falo de obras de barragens capazes de atuar como usinas hidrelétricas. Não apenas uma, mas barragens em sequência, rio abaixo. Há muitos exemplos de hidrelétricas com grande altura e estruturas estáveis há décadas. Itaipu, com 196 metros de altura, talvez seja o melhor deles. O Rio Paraná tem grandes subidas, e a estrutura segue firme. Não adiantará construir para os níveis que já temos. E, quando os lagos chegarem ao máximo, podemos controlar o fluxo com a abertura das comportas. Há conhecimento e tecnologia para isso”, propõe.
Côrtes reconhece o impacto ambiental das construções e a necessidade, em determinadas circunstâncias, de realocar municípios. Mas argumenta que, diante do cenário ao qual já chegamos e dos prognósticos, medidas drásticas precisarão ser adotadas o quanto antes.
“A reconstrução das áreas afetadas será longa. Será preciso buscar um nível de capacidade de resiliência superior ao que havia até agora. Barragens para geração de energia, irrigação e abastecimento urbano. Mas com critérios ambientais rígidos, ou a solução se tornará problema logo adiante”, insiste o geólogo, apontando necessidade de reintrodução de mata ciliar no entorno dessas áreas, para evitar o assoreamento.
O problema é que grandes barragens não se constroem em curto prazo. Seriam necessários pelo menos sete a 10 anos, desde o projeto à inauguração. O que significa dizer que essas estruturas não estariam prontas antes da próxima crise.
Então, antes disso, o Estado precisará definir e adotar um plano de contingência. Pedro Côrtes cogita a abertura de um novo canal de escoamento da água da Lagoa dos Patos para o oceano Atlântico como uma alternativa mais rápida. Mas lembra da necessidade de reforçar a contenção nas laterais, para evitar o alargamento pela força das águas. E também ressalta que essa seria uma medida a ser usada somente em casos de necessidade, para não comprometer a navegabilidade pelo estuário.

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