No ano passado, quando o Festival de Veneza foi realizado de modo presencial poucos meses depois de Cannes ser obrigado a cancelar sua edição por conta da pandemia, havia esperança de que 2021 seria diferente. Mas, a despeito das vacinas desenvolvidas em tempo recorde, a Covid-19 ainda assombra o mundo. O 78º Festival de Veneza, que começa nesta quarta-feira (1) e vai até o dia 11, é realizado novamente sob medidas rigorosas de segurança, com limitação do uso das salas, ingressos com lugares marcados, uso de máscara obrigatório, sem aproximação do público no tapete vermelho.
A verdade é que a cidade sabe como lidar com pandemias. Foi lá que o termo quarentena foi criado, com a obrigatoriedade de 40 dias de isolamento para os navios mercantes na Idade Média. Não muito longe do Lido, onde o festival acontece, um hospital já isolava pacientes da peste desde o século XV, e os médicos usavam máscaras com bico cheias de ervas aromáticas.
Mas a verdade é que, com boa parte do norte global vacinado, o 78º Festival de Veneza vai ter uma presença muito mais expressiva do que em 2020 dos astros e estrelas que são peça da engrenagem e de filmes de olho no Oscar - nos últimos anos, saíram dali vencedores das cobiçadas estatuetas como Nomadland (2020), Coringa (2019) e A Forma da Água (2017). Entre os candidatos ao Leão de Ouro deste ano e a uma vaga no Oscar 2022, estão Madres Paralelas, de Pedro Almodóvar; The Power of the Dog, de Jane Campion, e Spencer, de Pablo Larraín (lista completa abaixo). Outros filmes badalados - e cheios de atores e atrizes famosos - passam fora de competição, como Duna, de Denis Villeneuve, com Timothée Chalamet, Oscar Isaac, Zendaya e Javier Bardem; O Último Duelo, com Matt Damon, Ben Affleck e Jodie Comer; e Noite Passada em Soho, com Anya Taylor-Joy.
Apesar de todas as dificuldades, o Brasil também está presente na seleção, ainda que não na competição principal. O filme 7 Prisioneiros, de Alexandre Moratto, com Christian Malheiros e Rodrigo Santoro, passa na seção Horizontes Especial, que vai ter um prêmio dado pelo público. Bárbara Paz, premiada no festival com o documentário Babenco: Alguém Tem de Ouvir o Coração e Dizer: Parou, em 2019, volta com o curta Ato, fora de competição na mostra Horizontes.
Brasileiro radicado em Londres, Alex Carvalho apresenta Salamandra na paralela Semana da Crítica. E Aly Muritiba, que acabou de levar três Kikitos no Festival de Gramado com Jesus Kid, apresenta, na Jornada dos Autores, Deserto particular. "O cinema que me interessa é um cinema político. Ambos fazem comentários sobre o Brasil contemporâneo", disse o cineasta em entrevista ao Estadão. O que muda é o ritmo, como ele diz: enquanto Jesus Kid é uma comédia ácida baseada na obra de Lourenço Mutarelli, Deserto particular é um melodrama sobre afetos masculinos.
Muritiba começou a trabalhar no romance entre Daniel (Antonio Saboia, de Bacurau) e uma moça do interior da Bahia em 2016. "À medida que o tempo foi passando e o contexto brasileiro foi se transformando nessa coisa aguda e raivosa, o projeto foi ganhando mais sentido", disse o diretor. "Quando ele surgiu, vinha de um desejo de fazer um filme de encontros e de amor. E, em um tempo de ódio como este que a gente está vivendo, um filme de amor ganha mais relevância, importância e ressonância."
Para ele, a história de um sujeito criado em um ambiente bastante conservador e preconceituoso, como é o ambiente militar, policial, no Sul do Brasil, viajando até o Nordeste para travar encontros com pessoas de outro universo talvez em 2010 soasse quase banal. "Mas, como ele foi filmado em 2019 e ficou pronto em 2020, é um longa que trata não de como o mundo é, mas de como pode ser, de como na chave do afeto, do amor, da tolerância a gente pode construir um universo melhor."
A pandemia adiciona outra camada de necessidade de alento, de respiro e de beleza. "A gente passou o último ano e meio vivendo cotidianamente a presença da morte ou a perspectiva da morte, vivendo cotidianamente o isolamento e o enclausuramento", disse Muritiba. "Deserto particular é um filme de viagem, com um monte de paisagem, com planos gerais abertos. É um filme sobre um sujeito que vivia confinado, sufocado em um ambiente muito hostil, que vai aos poucos descobrindo como é respirar mais livremente."
O diretor acredita no poder do cinema e se define como um otimista inveterado. "Eu preciso acreditar que as coisas vão melhorar para continuar existindo. E preciso construir essa melhoria a cada dia com o modo como me relaciono com as pessoas. E tenho a convicção plena, total e completa de que as coisas estão melhorando no mundo e que o que estamos vivendo agora é apenas o soluço dos conservadores - não o último, mas um dos últimos - porque eles pressentem que seu poder está passando."
Estar em Veneza com outros filmes brasileiros, em um momento de dificuldade para a cultura nacional, é uma prova disso. "É um recado de que não conseguirão nos parar." Até o início da noite desta terça-feira (31), Aly Muritiba ainda não sabia se conseguiria ir a Veneza para acompanhar a sessão desta quarta-feira (1), já que brasileiros estão impedidos de entrar na Itália por conta da situação da pandemia no País.
COMPETIÇÃO OFICIAL
- Madres Paralelas, do espanhol Pedro Almodóvar
- Mona Lisa and the Blood Moon, da americana Ana Lily Amirpour
- Un Autre Monde, do francês Stéphane Brizé
- The Power of the Dog, da neozelandesa Jane Campion
- America Latina, dos italianos Fabio e Damiano D'Innocenzo
- L'Événement, da francesa Audrey Diwan
- Competencia Oficial, dos argentinos Gastón Duprat e Mariano Cohn
- Il Buco, do italiano Michelangelo Frammartino
- Sundown, do mexicano Michel Franco
- Illusions Perdues, do francês Xavier Giannoli
- The Lost Daughter, da americana Maggie Gyllenhaal
- Spencer, do chileno Pablo Larraín
- Freaks Out, do italiano Gabriele Mainetti
- Qui Rido Io, do italiano Mario Martone
- On the Job: The Missing 8, do filipino Erik Matti
- Zeby nie Bylo Sladow (Leave No Traces), do polonês Jan P. Matuszynski
- Kapitan Volkonogov Bezhal, dos russos Natasha Merkulova e Aleksey Chupov
- The Card Counter, do americano Paul Schrader
- E' Stata la Mano di Dio, do italiano Paolo Sorrentino
- Vidblysk, do ucraniano Valentyn Vasyanovych
- La Caja, do venezuelano Lorenzo Vigas