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TESTEMUNHOS DA DITADURA

- Publicada em 28 de Março de 2013 às 00:00

Carta de uma mãe que pede justiça


JONATHAN HECKLER/JC
Jornal do Comércio
Todas as vítimas da repressão brasileira sabem que o País caminha para a busca da verdade, mas que deixa para trás, por ora ao menos, as penalizações contra os responsáveis por crimes que marcaram famílias inteiras. Nesta edição da série Testemunhos da Ditadura, o Jornal do Comércio reproduz “Um triste depoimento”, a carta de Zilda Azevedo Cardoso sobre as sequelas que relegaram à filha Nilce Azevedo Cardoso – personagem desta edição – uma longa busca pela recuperação. Trata-se de uma carta que relata o amparo que a família e os amigos deram à militante e que expressa a confiança que “uma mãe sofrida” deposita na justiça.
Todas as vítimas da repressão brasileira sabem que o País caminha para a busca da verdade, mas que deixa para trás, por ora ao menos, as penalizações contra os responsáveis por crimes que marcaram famílias inteiras. Nesta edição da série Testemunhos da Ditadura, o Jornal do Comércio reproduz “Um triste depoimento”, a carta de Zilda Azevedo Cardoso sobre as sequelas que relegaram à filha Nilce Azevedo Cardoso – personagem desta edição – uma longa busca pela recuperação. Trata-se de uma carta que relata o amparo que a família e os amigos deram à militante e que expressa a confiança que “uma mãe sofrida” deposita na justiça.

As quedas da resistência em 1970

“Cheguei à universidade junto com os tanques, em pleno golpe de 1964”, lembra Nilce, na época uma jovem estudante, repleta de expectativas que a juventude alimenta. “Tinha 17 anos, queria ser bailarina e sonhava com outras coisas.” Nilce estudava Física na Universidade de São Paulo (USP), onde começou a ter contato com a luta popular. “Aprendi o que é lutar por liberdades no dia a dia. Participei das passeatas, das pichações, dos comícios-relâmpagos e, quando o primeiro cavalo aparecia, a gente saia correndo.”
Nascida em Orlândia, interior de São Paulo, e criada em Ribeirão Preto, ela vivia intensamente a vida como universitária e militante, na capital paulista, naquele período. “Eu morava no Conjunto Residencial da USP (Crusp). Fazíamos discussões políticas, programações das atividades todos os dias, mas também fazíamos bailes, namorávamos. Tínhamos a vida normal e a vida revolucionária junto.”
Depois de formada, já dando aula, o nome de Nilce foi listado entre os alunos do Crusp, em uma ação que prendeu todos os que moravam no local e relacionou os que não faziam mais parte do grupo. Foi aí que começou o período da clandestinidade. Nilce, que integrava a Ação Popular, voltou-se para o departamento operário do grupo e, em 1968, foi viver e trabalhar em Santo André, cidade do ABC paulista, região de forte atuação sindical. “Essa foi a verdadeira universidade da qual eu participei, de tanto que aprendi com as meninas nas fábricas. É disso que eu sou mestre, que eu sou doutora”.
Quando as quedas de militantes da resistência de Porto Alegre começaram a ser mais frequentes, Nilce veio com o marido para a Capital e continuou integrando o grupo do movimento operário. “Fui presa em 11 de abril de 1972, e o Estado estava sobre uma intensa repressão, muitos dos nossos já tinham caído.”

As marcas deixadas pela tortura

A primeira marca da tortura ocorreu no exato momento da prisão, logo após ela ter sido retirada de um ponto de ônibus na avenida Carlos Barbosa, próximo à rua Niterói, e conduzida para um fusca. “Eu perguntei o que estava acontecendo e, na hora, Pedro Seelig (delegado do Departamento de Ordem e Política Social – Dops) já me virou um soco e veio aquele sangue, como a gente vê nos filmes.”
No Palácio da Polícia, onde funcionava o Dops, começaram as sessões pesadas de pavor, iniciadas nas palavras grosseiras, mas que logo passavam para os maus tratos físicos e, depois, psicológicos. “A cada momento que me perguntavam meu nome, e eu só dizia a verdade, eu fui esbofeteada e surrada. Depois da tortura, eu passei um tempo sem conseguir dizer o meu nome”, relata Nilce. “Tenho ainda muitos lapsos de memória. Gostaria de não tê-los para poder lembrar de todos os torturadores, de todas as caras que andei vendo e poder contribuir mais para a Justiça desse País”, assume. Nilce lembra, além de Seelig, do inspetor Nilo Hervelha, e das palavras agressivas, da humilhação e dos choques que não pouparam nenhuma parte de seu corpo, além dos coniventes, que acompanhavam esses momentos.
“Meu sangue escorria (quando estava no pau-de-arara) e eles colocavam uma bacia embaixo para não sujar muito a sala”. Nilce era avaliada por um médico, que dizia se as sessões podiam continuar, se ela aguentaria. Houve um momento em que não aguentou e ela entrou em coma, ficando oito dias internada no Hospital da Brigada Militar. De lá, Nilce foi transferida para Operação Oban, em São Paulo, quando foram sofisticadas as torturas psicológicas.
O relato da mãe transcreve as dificuldades que a filha enfrentou para recuperar-se. Depois da tortura, a família e a tranquilidade do ex-marido, Antônio Norival Soave, que segurava as pontas quando ela já não conseguia conter o abalo, deram-lhe a estrutura e o amparo. Ela começava a recuperar a vida, mas as marcas ficariam para sempre.
Nilce guarda o diálogo, mantido durante a tortura, quando a esmurraram até quebrarem o esterno (osso localizado no tórax). “Alguém perguntou: ‘Como você vai provar que foi torturada?’. Mas nós não temos o ônus da prova, eles é que têm. Em todo caso, a hora em que tirassem um raio-x do meu corpo, teríamos o roteiro de tudo que fizeram, de tudo que foi quebrado, e que venho consertando ao longo dos anos.”

Para nunca mais acontecer

Quem frequenta as mobilizações pela memória, verdade e justiça logo se familiariza com uma das falas recorrentes: “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”. A frase é um dos lemas dos que reivindicam o comprometimento da sociedade e do governo com a sua história.
“O Brasil precisa aprender a virar a página (da ditadura). Não se termina um livro sem virar suas páginas. Mas não a lemos porque ainda faltam pedaços. Muitas lágrimas já foram derramadas e nos atrapalharam na leitura, mas precisaremos delas e, talvez, de mais ousadia, porque  precisaremos de justiça”, diz Nilce. No ano passado, ela recebeu um documento oficial que reverbera essa reivindicação. Esse trecho da história Nilce lê, cuidadosamente, para que todos saibam que o País reconhece sua luta: “Certificamos que Nilce Azevedo Cardoso é anistiada política do Brasil, nos termos da Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002. O Estado brasileiro reconhece o seu direito de resistência contra um regime autoritário em prol da luta pelo restabelecimento das liberdades públicas e da democracia. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça – 26 de outubro de 2012, quando fui anistiada”.

Um triste depoimento

Zilda Azevedo Cardoso
Primeiro o choque: minha filha está presa. Fui com Nelson para Porto Alegre para vê-la, dar-lhe nossa força e dizer-lhe que estamos juntos. Segundo choque: depois de muita demora, me deixaram vê-la. Fiquei aniquilada, estarrecida, quase não a reconheci. Entrou na sala arrastando os pés, roxa, estranha, tão maltratada, martirizada mesmo. Pensei não aguentar ver tanto sofrimento. Até hoje meu coração está sangrando. Não quero nem pensar nesses homens, animais ferozes, desalmados.
Depois, ela teve amnésia e o medo constante, pois sentia-se vigiada, assim como a família. Custou dominar o pavor e eu ia a todos os lugares com ela. A recuperação foi lenta. Foi preciso muito amor e dedicação dos irmãos e amigos para ela não se sentir só, graças a Deus. Com a ajuda da psiquiatra retornou à vida. Ela sempre foi e é uma pessoa boa, sempre pensando em como ajudar os outros.
Confio na justiça que lhe será feita.
Uma mãe sofrida,
S. Paulo, 31 de março de 1998
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