Separar o Plano Diretor, que define as estratégias para o desenvolvimento da cidade, das regras para a construção dará "maior agilidade em atualizar essa lei ao longo do tempo, sem precisar de uma revisão completa, dado o caráter dinâmico de transformação da cidade". A avaliação é do urbanista Anthony Ling. Esse modelo, adotado em São Paulo e outras cidades brasileiras, estará na proposta de revisão do Plano Diretor de Porto Alegre que a prefeitura pretende enviar ao Legislativo no segundo semestre deste ano.
Editor do "Caos Planejado", plataforma digital sobre urbanismo e cidades, Ling é conhecido no meio empresarial e pela atual gestão municipal por seu posicionamento equilibrado nos debates sobre planejamento urbano. Conceitos defendidos por ele estão refletidos em algumas das propostas já conhecidas da revisão, como o poder público dedicar mais atenção às áreas públicas da cidade, conferindo maior liberdade para as áreas privadas.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Anthony Ling alerta para que a discussão do Plano Diretor não seja como "apertar um reset na cidade" e começar tudo de novo a cada 10 anos ou mais. E, para dar sentido à lei, defende traçar objetivos para o planejamento urbano e criar formas de mensurar se foram alcançados.
Jornal do Comércio – Qual é o papel do Plano Diretor para o desenvolvimento de uma cidade e qual o impacto dessa lei, como no caso de Porto Alegre, estar atrasada e defasada, tem para o desenvolvimento da cidade?
Anthony Ling – O Plano Diretor, da forma como ele vem sendo conceituado no Brasil nos últimos, talvez, 50 anos, é uma ferramenta de regulação de uso do solo em última instância. E em Porto Alegre compreende o Plano Diretor e o uso e ocupação do solo. Em São Paulo, por exemplo, são duas leis separadas. O Plano Diretor sozinho, pensando nesse conceito de separar as coisas, ele é praticamente inútil. Em termos práticos, porque é um documento cheio de desejos, cheio de objetivos e ambições que não tem absolutamente nenhuma métrica. Como é que a gente sabe se deu certo, se deu errado? Normalmente é uma carta de intenções. Tanto que o já falecido urbanista Flávio Villaça chamou esse documento de “ilusão”. Em Porto Alegre, juntamos o Plano Diretor à Lei de Uso e Ocupação do Solo (atualmente chamado de Plano Regulador, parte da mesma lei). Ele tem, de fato, um efeito prático na cidade, que é definir o que pode e não pode ser construído nas áreas privadas. Isso é o que a gente tem chamado de Plano Diretor, inclusive até confundindo esse documento com urbanismo: planejamento urbano é definir um Plano Diretor. Já de partida, eu discordo bastante dessa visão de olhar planejamento urbano, porque está olhando somente para as áreas privadas da cidade, que em teoria já possuem uma série de profissionais e agentes interessados para determinar o que é interessante ser feito em cada terreno. Ou seja, temos investidores, arquitetos, incorporadores, proprietários, pessoas que vão morar, clientes, comércios, empreendedores que, de alguma forma ou outra, interagem com essas áreas, comprando e vendendo, seja o imóvel em si ou serviços promovidos por aquele imóvel, que determinam – num processo de mercado – a alocação de uso desses espaços. Então existe um mecanismo que nos ajuda a entender o que deve existir ou não em cada terreno da cidade, mas não temos esse mecanismo para todas as outras áreas da cidade, que são as áreas públicas. Como é a expansão viária da cidade? Como estamos usando as vias? Qual é a largura que deveria ter a nossa calçada, a via, as ciclovias? Como estamos efetuando a execução do Plano Cicloviário de Porto Alegre? Como é o saneamento básico nas áreas de favela em Porto Alegre? Como é o sistema de proteção contra enchentes e como isso norteia o desenvolvimento urbano da cidade? Isso tudo é, inerentemente, papel do poder público, isso tudo é planejamento urbano. E praticamente nada disso entra numa discussão de Plano Diretor. Então, já de cara, a gente vê uma diferença de conceito e de prioridade em relação ao que a cidade está debatendo e o que a cidade está considerando planejamento urbano para o seu futuro. E quando vem para a realidade prática da cidade, esse Plano Diretor, como regulador de uso e ocupação do solo, basicamente influencia no mercado imobiliário formal. E é esse motivo pelo qual incorporadoras e investidores imobiliários se preocupam tanto com esse tema.
JC – Por quê?
Ling – Porque, se existe uma lei que pode, de um dia para o outro, aumentar ou diminuir o valor de terra, o valor de imóveis, imediatamente, sem nenhum tipo de compensação – ou seja, se alguém ganhar muito, vai ter alguma compensação para o governo, ou se alguém perder muito, vai ter alguma compensação no sentido inverso –, essas pessoas vão estar muito interessadas em saber o que vai acontecer e certamente defender o seu próprio interesse. Isso dito, o Plano Diretor não diz praticamente nada sobre como as áreas informais na cidade crescem, o que elas precisam ou como elas vão se desenvolver. E essas áreas informais não necessariamente precisam ser favelas. Tem áreas de favela que são de fato informais, ocupando muitas vezes áreas públicas, que não têm títulos de propriedade, etc, mas também sabemos que tem bairros inteiros em Porto Alegre que possuem uma legislação de uso do solo definida pelo Plano Diretor, mas que se a gente chega lá são casas construídas da maneira que as pessoas acharam interessante naquele momento, que muitas vezes abrem seus pequenos comércios, pequenas indústrias, artesãos, enfim, criam animais, se pensar numa realidade da zona sul, e o Plano Diretor não afeta absolutamente nada a vida dessas pessoas. E, inclusive, se afetasse, talvez afetasse negativamente, porque essas pessoas não poderiam fazer, digamos assim, o que fazem hoje. Então, focar a nossa discussão nesta determinação de o que deve ou não ser construído em terrenos privados e, na maioria das vezes, sem qualquer tipo de embasamento técnico, as brigas em relação a se eu posso construir mais ou menos em um determinado terreno, são determinações numéricas totalmente subjetivas. Totalmente. Podemos discutir pormenores e conceitos desta revisão de Plano Diretor. Entendo que existe toda uma inércia regulatória e legislativa nas cidades brasileiras e até a compreensão que muitos urbanistas têm de que isto é planejamento urbano, mas o trabalho que fazemos, pelo menos no Caos Planejado, é tentar mostrar para as pessoas que não necessariamente isso é planejamento urbano ou não apenas isso, e na verdade as prefeituras deveriam estar dando uma prioridade muito maior a outros aspectos da cidade que hoje são totalmente esquecidos pelo planejamento, que traz o problema da informalidade, da falta de infraestrutura em favelas, da moradia precária, de a gente ter 90% das ruas sendo ocupadas por carros. Cadê essa discussão no plano diretor? Ela inexiste.
JC – A prefeitura de Porto Alegre indica que sim, haverá essa separação entre um Plano Diretor estratégico e uma lei normativa, que vai ser a Lei de Uso e Ocupação do Solo. O que impacta, na prática, essa divisão?
Ling – Conversando com alguns juristas da área do Direito Urbanístico, inclusive o Victor Carvalho Pinto, que foi um dos especialistas consultados para a elaboração do Plano Diretor, a argumentação é de que, ao separar Plano Diretor e Lei de Uso e Ocupação do Solo, tem maior agilidade em atualizar essa lei ao longo do tempo, sem precisar de uma revisão completa, tanto do Plano Diretor como da Lei de Uso do Solo, dado o caráter dinâmico de transformação da cidade. Via de regra, pensando no histórico do planejamento urbano no Brasil, é quase sempre o caso que se passam 10 anos ou mais sem revisar, e aí temos determinações de usos, regulações, que não conversam mais com a realidade da cidade. Por mais que as leis já nasçam arbitrárias na sua origem, imagina 10 anos depois o quanto elas dialogam com a necessidade das pessoas. O meu entendimento é esse, que é mais uma questão de facilitar a gestão pública na revisão dessas leis ao longo do tempo. Embora, realmente, se não houver uma conversa direta entre uma lei e a outra, o Plano Diretor pode ficar algo meio sem propósito. Para mim, idealmente, um Plano Diretor teria objetivos quantificáveis. Às vezes se fala em Plano Diretor no âmbito do urbanismo e esquecemos o que é um plano. Nós temos planos como indivíduos, com as nossas vidas, com nossos projetos. Traçar um plano e ter um resultado que se consiga entender, a partir dele, se foi um sucesso ou não e para que caminho está indo. Os nossos Planos Diretores não nos dão isso. Tanto que normalmente começa uma discussão de Plano Diretor e parece que alguém apertou um reset na cidade. A cidade não existe mais, a legislação não existe mais e vamos ver agora o que queremos de novo. E é um ciclo meio improdutivo, eu diria, que a gente define um plano sem metas e sem objetivos claros, passam 10 anos e a gente cria um novo, também sem objetivos e metas claras. Como é que vamos passar 10 anos e não saber se o plano atingiu o seu resultado? Idealmente, seria meio que imprescindível até para se caracterizar como um plano, na definição mais stricto sensu da palavra.
JC – A Prefeitura apresentou uma proposta de olhar mais para o espaço público e menos para o espaço privado, para o lote. De que maneira essa mudança de foco é benéfica para o planejamento urbano?
Ling – Eu concordo com essa visão conceitual, (mas) acho difícil que consigam fazer isso na prática.
JC – Por quê?
Ling – Justamente por carregar essa bagagem. Se a prefeitura dissesse “vamos mudar totalmente a conceituação do que é o uso do solo na cidade, não vai mais ter limite de potencial construtivo, vamos deixar usos meio que em aberto na cidade inteira, vamos trabalhar mais por incomodidades do que por usos propriamente ditos…” Isso é uma discussão. Quando se começa a querer detalhar os usos de uma Lei de Uso e Ocupação do Solo, é um trabalho quase esquizofrênico. O que é residência e o que é trabalho? Muita gente trabalha de casa hoje, então é trabalho ou é residencial? Uma padaria é uma indústria ou é um comércio? Essas definições não são tão claras. O que a legislação tenta fazer e o que tem acontecido ao longo dos anos é elas ficarem cada vez mais minuciosamente detalhadas. Por exemplo, o tamanho da varanda define se ela vai contar ou não como uma área construída. Isso tem alguma relevância nos problemas da cidade? Zero. Absolutamente zero. E se formos mais a fundo e pensar “será que o penso de quem faz a cidade está sendo destinado para melhorar a vida daqueles que mais precisam de planejamento urbano?” E não, na verdade a gente está discutindo essas minúcias.
JC – Você coloca como um alerta ao poder público da Capital para não correr o risco de, eventualmente, também cair no detalhamento?
Ling – No momento em que a gente tem regramentos específicos e minuciosos do espaço privado, isso vai acontecer. E vai deixar de acontecer no momento que a gente perceber que isso não é muito relevante do ponto de vista da cidade como um todo. E eu vejo alguns, vou chamar assim, críticos dessa forma de pensar, que dizem “poxa, mas Anthony, veja bem, temos bairros residenciais da cidade que tem uma certa característica”. Só que esse tipo de pensamento, na verdade, até pela própria narrativa, não está pensando na cidade como um todo, está pensando no bairro, está pensando na vida das pessoas imediatamente ao redor de onde está o terreno que o empreendimento tem. É uma visão egoísta da cidade. Algo como “eu prefiro que não tenha um adensamento de regiões como o Três Figueiras, a Chácara das Pedras, o Boa Vista”, que são áreas de baixa densidade, super bem localizadas – porque são, se pegar a mancha urbana da cidade como um todo, pela proximidade a empregos e serviços. “Eu prefiro que as pessoas morem mais distante”. E sabemos que hoje deve ter mais de 100 mil pessoas que vão e voltam da Região Metropolitana para trabalhar em Porto Alegre, por uma questão de acessibilidade habitacional. Porto Alegre expulsou as pessoas da cidade, porque (alguns) acham que vai mudar a característica do bairro, e a cidade que se vire.
JC – Nos últimos anos o governo municipal tem concedido muitos estímulos para o setor da construção civil, especialmente no Centro e no 4º Distrito, que tiveram planos específicos. Como fazer para que esse investimento da iniciativa privada atenda a demanda que é a mais necessária? A enchente mostrou que há uma carência de habitação adequada para a população de mais baixa renda…
Ling – Porto Alegre ficou por talvez 30, 40 anos como uma das capitais com menor potencial construtivo na sua regulação urbanística. Eu não conheço outras capitais que são tão restritivas em relação ao desenvolvimento urbano como Porto Alegre, principalmente em áreas bem localizadas. Até o Plano do Centro Histórico (Lei Nº 930/2021), se podia construir, ao lado de um edifício de 15 vezes a área do terreno, um edifício de duas vezes a área do terreno, o que não faz absolutamente o menor sentido. A minha leitura é que esse processo foi extremamente nocivo ao crescimento de Porto Alegre, ajudou a cidade a reduzir a sua relevância econômica. No momento em que, por muitos anos, se tornou mais caro morar aqui, as pessoas começaram a ir embora, e agora estamos nessa situação que, bom, como é que se traz as pessoas de volta?
JC – Inclusive teve perda populacional, conforme o Censo…
Ling – Exato. Então, se formos olhar o município de Porto Alegre isoladamente, a moradia proporcional à renda é relativamente boa, porque acabou com um cenário de vacância imobiliária e uma renda, de quem ficou, relativamente alta. É um cenário meio curioso comparado com outras capitais brasileiras. Isso dito, é difícil descrever o que seria o incentivo à ocupação de determinadas áreas, porque o incentivo do setor público pode acontecer de diferentes formas. Digamos assim, eliminar uma restrição é um incentivo? É, mas aquela restrição fazia sentido antes? No próprio caso do Centro Histórico, o que se fez agora é um incentivo ou é uma correção? Esse é um ponto a ser pensado. Outro é o seguinte, existem no Brasil instrumentos muito bem consolidados de arrecadação financeira pelo município a partir do aumento do potencial construtivo. Um é através de operações urbanas consorciadas que emitem certificados de potencial construtivo (Cepac), e a renda municipal a partir disso pode ser direcionada a projetos sociais – é o que está acontecendo agora em São Paulo, no final da Operação Urbana Faria Lima, para melhorar a infraestrutura de Paraisópolis. E a venda de outorga onerosa (Solo Criado), que é basicamente potencial construtivo atrelado a um terreno específico. Ou seja, tem lá um potencial construtivo básico que o proprietário pode construir sem nenhum tipo de pagamento e o potencial máximo, que pode ser construído via outorga (pagamento ao poder público). Essa outorga onerosa pode e deveria ser utilizada para infraestrutura, principalmente nas áreas mais pobres da cidade. No caso de São Paulo, existe um fundo de desenvolvimento urbano que recebe essa outorga. Claro que está ainda melhorando, esse fundo poderia ser mais direcionado para isso, ele já foi usado para fazer obra viária, coisas que não necessariamente vão endereçar essas circunstâncias sociais, mas, idealmente, deveria ir para um fundo que endereçaria os maiores problemas urbanos da cidade. Este seria um caminho. Outro ponto importante para ter em mente, e acho que é pouco compreendido por quem acompanha desenvolvimento urbano, é que o que está sendo construído hoje – e não precisa ser nem um lançamento de alto padrão, mesmo uma construção do Minha Casa Minha Vida – normalmente não vai ser uma opção para as pessoas mais pobres da cidade, porque são produtos novos. É que nem carro, ou moto, ou qualquer bem que é produzido, o novo vai custar mais caro, vai ser menos acessível. É mais difícil endereçar a base da pirâmide simplesmente construindo coisas novas. A gente precisa de, primeiro, outros programas para endereçar quem mais precisa, seja através de doações diretas, como Bolsa Família, ou melhorias substanciais de infraestrutura nas comunidades onde elas já vivem. Mas a realidade é que, construindo coisas novas somente, o problema não vai ser endereçado no curto prazo. No entanto, existe uma relação entre preço, oferta e demanda. Então, se a gente passa um período de tempo muito longo construindo pouco, não vai criar unidades acessíveis para a base da pirâmide no futuro. Tem uma certa relação com o que aconteceu aqui em Porto Alegre. Se pensarmos hoje no nosso Centro Histórico, uma área com alta vacância, com uma mistura de rendas muito alta, mas algumas áreas com rendas mais baixas... É bem dissonante, pega a Duque de Caxias e a área ali atrás do Mercado Público, são populações diferentes. Se olhar para a consolidação do Centro Histórico, em 1940, não era aquela realidade. Aquelas edificações foram construídas para pessoas de rendas mais altas, na sua origem. Então a cidade vai se transformando, vai não só migrando o interesse das pessoas de uma região para outra, como também algumas regiões vão se deteriorando e precisam de alguns investimentos para continuar úteis. O Centro Histórico precisa disso, acho que é meio inegável que a zeladoria pública não está bem resolvida ali. Mas é um dos efeitos de não atender a demanda por moradia suficientemente no longo prazo.
JC – A enchente de 2024 acabou expondo os problemas de planejamento urbano das cidades e Porto Alegre não foge disso. De que maneira o poder público pode encaminhar uma solução para essas áreas identificadas como potencialmente de risco para uma situação de enchente, sem “apertar o reset”, porque a cidade já existe, está consolidada nesses espaços?
Ling – A enchente expôs a precariedade habitacional de muitas regiões da cidade, que era histórica. Se pensarmos nas famílias que foram mais atingidas, elas foram atingidas por causa disso, porque as suas casas já eram precárias. Elas já estavam em uma situação, às vezes, de vulnerabilidade social, já tinham uma residência que já tinha inundado antes e que simplesmente não tinha sido endereçada. Muitos dos bairros dessas famílias eram informais ou semiformais. A gente tinha uma legislação que dizia “poxa, vamos construir dessa forma para uma cidade melhor e tal”, e simplesmente há 40 anos não era assim e estava tudo certo. E não nesta última gestão, mas nas últimas todas. Eu achava, ingenuamente, que a partir da enchente as pessoas iam se dar conta disso, porque tantas famílias perderam suas casas, que talvez haveria uma mudança em como as pessoas veem a prioridade do planejamento urbano. Infelizmente, passado um ano, a altura de um prédio no Centro Histórico parece ser mais importante do que isso. Saiu a notícia semana passada que vão fazer um prédio de 98 metros no Centro, que até onde eu saiba já tem o edifício Santa Cruz maior que isso (107 metros) e é no mesmo bairro, no mesmo contexto urbano. E as pessoas parecem se indignar mais com isso do que com a total falta de habitabilidade das regiões mais vulneráveis na cidade. Eu esperava que a enchente tivesse nos ensinado essa lição, mas, infelizmente, tudo parece meio igual. Eu acho que muitas pessoas que não conhecem esses territórios, não dialogam com esses territórios, veem esse período de um ano depois da enchente como se estivesse tudo normal. A vida voltou à normalidade, só falta um sistema de proteção, é isso que a maioria das pessoas falam. Mas não é isso, a gente sabe que não é isso. Para mim, um planejamento urbano sério olharia primariamente para essas áreas de maior vulnerabilidade social que não têm infraestrutura, que estão vulneráveis a eventos climáticos extremos, e elaborasse um plano com objetivos, métricas, como vai ser financiado, para que se tornem mais resilientes a eventos desse tipo. Talvez não seja totalmente protegido, assim como o nosso Centro Histórico inteiro na parte baixa. Mas a gente sabe que a área ali da Rua 7 de setembro, da Rua Siqueira Campos, essas áreas que foram inundadas são mais resilientes do que a Vila Farrapos, ou do que o Sarandi e do que as famílias que vivem ali perto. Como elevar a qualidade construtiva, a qualidade da infraestrutura, a qualidade de vida das pessoas de forma geral? São áreas gigantescas da cidade, pensar que vai se realocar todo mundo, mudar o acesso delas para o trabalho, enfim, todas as redes sociais, talvez seja irrealista no caso de Porto Alegre. Mas, então, como tornar esses lugares mais resilientes? Espero que venha algo nesse sentido na revisão do Plano Diretor, conceitualmente eu gostaria que as pessoas olhassem para os problemas de Porto Alegre dessa forma: “onde tem que investir o nosso penso é para quem mais precisa no fim do dia”. O resto não vai mudar muito. “Ah, eu vou me incomodar abrindo a janela, olhando para esse prédio que eu não achei bonito”. “Poxa, que problema grande que tu tem na tua vida”. Tem que separar o joio do trigo em relação a prioridades para o desenvolvimento da cidade.
Perfil

Anthony Ling, arquiteto e urbanista e criador do site Caos fala sobre Plano Diretor de Porto Alegre
fotos: BRENO BAUER/JCAnthony Ling tem 38 anos, nasceu e cresceu em Porto Alegre. Desde 2014, é editor do "Caos Planejado", maior plataforma de conteúdo sobre urbanismo e cidades em língua portuguesa. Se formou arquiteto urbanista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 2011. Trabalhou como arquiteto no escritório de Isay Weinfeld, em São Paulo, até 2013. Foi co-fundador da Bora, uma startup de mobilidade urbana. Em 2017, publicou o "Guia de Gestão Urbana" junto à Editora BEI. Entre 2016 e 2018 concluiu seu MBA na Stanford Graduate School of Business, nos Estados Unidos. Desde 2021 é um dos professores do MBA Cidades Responsivas, curso online desenvolvido a partir de Porto Alegre pelo grupo de desenvolvimento imobiliário OSPA e pela Escola Livre de Arquitetura (ELA), em parceria com o IMED. Em 2022, foi revisor técnico da edição brasileira do livro "Ordem Sem Design: Como os Mercados Moldam as Cidades", do urbanista Alain Bertaud, francês radicado nos EUA, com publicação no Brasil pela editora Bookman. É diretor da Évora S.A. desde 2018 e atualmente integra o Conselho do Instituto Caldeira.