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Publicada em 07 de Março de 2025 às 16:56

Coautor de estudo sobre Código de Meio Ambiente do RS, Gonçalo Ferraz, pontua mudanças prioritárias

Doutor em Ecologia, Ferraz expõe também principais modificações entre legislação de 2000 e 2020

Doutor em Ecologia, Ferraz expõe também principais modificações entre legislação de 2000 e 2020

THAYNÁ WEISSBACH/JC
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Thiago Müller
Thiago Müller
O novo Código Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, aprovado em 2020, realizou mudanças substanciais em vários pontos da legislação ambiental do Estado. As modificações foram objeto de estudo da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), que atualmente negocia com a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) a respeito do aparato legislativo.
O novo Código Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul, aprovado em 2020, realizou mudanças substanciais em vários pontos da legislação ambiental do Estado. As modificações foram objeto de estudo da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), que atualmente negocia com a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) a respeito do aparato legislativo.
O órgão detalhou, em 2024, quais as mudanças realizadas e suas respectivas implicações ambientais. Isso inclui flexibilizações, remoções de proteções para corte e queima de vegetação e introdução de novos conceitos. Inclui também mudanças no regime de silvicultura e flexibilizações para obtenções de licenças ambientais para funcionamento de empreendimentos.
Segundo a Agapan, a Sema estipulou prazo de dez a quinze dias para enviar as respostas aos pleitos desde reunião realizada em 10 de fevereiro, o que ainda não ocorreu. Isso será seguido por mais dez a quinze dias para análise pelos requerentes e uma nova reunião com o governador do Estado, Eduardo Leite, ao fim do trajeto.
Ao Jornal do Comércio, o doutor em Ecologia e Biologia Evolutiva e primeiro autor do estudo, Gonçalo Ferraz, explica os maiores impactos dessas mudanças, e os pleitos que são prioridades ser tratados, na visão da área científica.
Jornal do Comércio - A última atualização do estudo foi de novembro de 2024. Houve, por exemplo, a resolução de um conflito judicial por um acordo Ministério Público envolvendo o conceito de áreas rurais consolidadas no Pampa, artigo citado no estudo. Isso fixou parâmetros mais específicos. Esses avanços, porém, não vieram do Legislativo. Mesmo assim, tivemos outros avanços nesse sentido, desde quando foi publicado o estudo?
Gonçalo Ferraz - Teve um avanço parecido com este, a nível federal, que foi na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) sobre as alterações no licenciamento. Tudo indica que o Supremo Tribunal Federal vai se posicionar contra a flexibilização das licenças ambientais. Foi Augusto Aras, em resposta ao novo Código Estadual do Meio Ambiente, que abriu esta ação porque entendeu que a propagação de licenças, incluindo aquela licença por adesão e compromisso, era o Estado se sobrepondo à regulamentação federal, porque estava flexibilizando coisas que já eram mais restritas na legislação federal. Então nem todos os juízes votaram, mas já se foi uma maioria contrária a este aspecto particular do Código Estadual do Meio Ambiente, de criar licenças adicionais sem explicar muito bem qual vai ser o escopo de aplicação delas. Mas, claro, é importante lembrar que não é uma ação contra todo o código estadual do meio ambiente, é contra esses artigos de seleção. Também é importante lembrar que não há obrigação nenhuma dos estados terem uma legislação igual à federal. O que se espera é que a legislação estadual seja um pouco mais restritiva do que a federal, porque senão a legislação federal teria que criar restrições para todo o País e isso viria a significar restrições que não fazem sentido em muitos lugares. A mesma coisa se aplica entre a municipal e a estadual.
JC - E quanto aos retrocessos. Quais foram os principais?
Ferraz - Um ponto importante foi a remoção de limitações ao corte e queima de floresta, assim como a comercialização de produtos de floresta nativa. As proteções delas foram muito reduzidas. Revogou-se uma série longa de artigos do Código Florestal, que continham proteções. Houve também exclusão da silvicultura da lista de alvos de planejamento ambiental do Rio Grande do Sul. Isso é preocupante, porque ao mesmo tempo, foi entregue a uma multinacional de celulose o planejamento do desenvolvimento da silvicultura no estado. Dá a sensação de ser uma coisa estratégica, de desviar a atenção para longe da silvicultura no código. Houve uma alteração do significado da área rural consolidada. Isso é uma coisa muito interessante e tem implicações particularmente sérias para o RS. A definição desse termo ficou mais flexível, e uma das coisas que eu achei particularmente preocupante foi dizer que o uso da terra como pousio seria suficiente para que uma área passe a ser considerada área rural consolidada.
JC - Agora mais do que nunca vemos uma nova realidade climática no Rio Grande do Sul, e a tendência é que desastres climáticos continuem sendo cada vez mais frequentes. Uma coisa que vocês deixam claro no estudo é que o código não se pauta em prevenção, mas reatividade. Por que disso?
Ferraz - Veja, eu não posso entrar no nível de intencionalidade das alterações, mas o que me parece é que há uma confusão grande, grave, do ponto de vista de quem está fazendo a legislação, entre empresário e especulador. Empresários regionais que têm investimentos no Rio Grande do Sul, ou em qualquer região do mundo, têm uma consciência de que o sucesso dos empreendimentos deles vai depender prioritariamente do que acontecer aqui. Esses empresários se preocupam com o passivo ambiental, naturalmente. Não é do interesse deles serem responsáveis por perda de qualidade da água, por inundações, por alteração da qualidade do ar. As pessoas são minimamente racionais. Agora, se você tem, não um empresário, mas um especulador, e com isto, quero dizer uma empresa com uma abrangência muito maior do que o Estado, que tem investimentos em mais de 10 ou 20 lugares, qualquer coisa ruim que possa acontecer em termos de passivo ambiental é secundária, não os afeta. O comportamento racional de uma empresa especuladora desse nível é que eles não deveriam se preocupar com o que é que vai acontecer no Rio Grande do Sul. E o que está aparecendo é que o regramento ambiental do Estado está sendo feito mais com a mentalidade de atrair especuladores que vão fazer grandes investimentos, do que incentivar a atividade dos empresários regionais, que naturalmente vão ter uma preocupação maior com o meio ambiente.
JC - Entre as duas versões do Código, segundo o estudo, se perdeu o artigo sobre Áreas de Uso Especial. Elas abrigavam lagunas, banhados, planícies costeiras e até vegetação defensiva em encostas. Qual a importância dessas áreas para a biodiversidade, e até para a prevenção de certos desastres, no caso dessas últimas, por exemplo?
Ferraz - Para a biodiversidade, uma grande parte da proteção de populações de espécies tem a ver com a área de habitat disponível. E não é possível conservar tudo o que precisamos, ou tudo o que gostaríamos de manter, somente em unidades de conservação estaduais e federais. Muitas delas também são espécies migratórias. É uma ilusão imaginar que as Unidades de Conservação vão cobrir toda a área necessária para manter as populações. Mas há também um processo de alteração de paisagem que está ganhando sucessivamente mais importância entre cientistas, que é a ideia de marginalização de hábitat. Há muitas áreas que já não estão conservadas, que foram tomadas por agricultura ou por áreas urbanas, que eram áreas de solo muito boas. Os seres humanos vão para onde as coisas funcionam melhor no solo. A realidade é que o ser humano começou a remover vegetação natural nos lugares em que havia mais acesso a vias de comunicação, como corpos de água, onde o solo era melhor, porque permitia cultivar melhor. Então o que você tem é uma perda sucessiva das áreas onde havia mais produtividade biológica, onde estas populações cresciam mais e você tem as espécies nas margens. Mas além disso, essas áreas não são suficientes para suster uma população que era muito maior. É super importante você ter ideias como corredores ecológicos, por exemplo. É muito importante ter medidas de conservação para áreas que são intersticiais às unidades de conservação, que os indivíduos das diferentes espécies possam pular de um lugar para o outro e ter algo um pouco mais próximo das áreas de habitat prévias.
JC - E a Questão de prevenção à desastres?
Ferraz - O que sabemos com certeza é que as florestas têm um efeito duplo de controle de enchentes. Elas funcionam como uma capa, ou espelho d'água. Se houver uma cobertura florestal muito densa, chove, e a água fica presa nas folhas. Ela vai ser evaporada antes de se infiltrar até o solo. Isso é água que não vai escorrer rio abaixo. Há também o efeito de esponja, que é quando uma grande parte da água é segurada na vegetação e no solo, e em malha de raiz. Também não vai escorrer, ou vai demorar muito mais tempo a escorrer até jusante. Se fizermos as contas, conseguimos dizer: "Essa área de floresta consegue reter x litros de água por cada tanto que chove”. Aquilo que choveu em maio excedeu em muito aquilo que podia ser retido. A questão é, onde é que está esse limiar? Onde é que está essa quantidade limite de chuva que é absorvível? Não está claro isso. E não está claro porque os cálculos que foram feitos até agora fazem escolhas sobre a distribuição espacial da precipitação e a extensão de floresta a considerar, que são questionáveis. Então, há pesquisadores que dizem: "Mas se você tiver menor frequência, mais distribuição espacial dos eventos extremos, a floresta pode sim reter". Então, do ponto de vista de pesquisa, nesse momento, há tantas outras vantagens para ter cobertura florestal, principalmente nas cabeceiras dos rios, onde vertentes são mais inclinadas, do ponto de vista do posicionamento público, até prova em contrário, devemos manter essa vegetação. Se você quer evitar o que aconteceu em maio, há três coisas chave: mais floresta, porque enquanto a gente não sabe exatamente quanto é que ela limita, melhor é proteger a floresta, principalmente em áreas inclinadas de cabeceiras. É dar mais espaço ao rio. Porque o que aconteceu ao longo dos últimos muitas décadas é que são cada vez retirados mais terrenos dos rios. E fazer a manutenção dos sistemas de proteção que já existem. Convém lembrar que o sistema de barreiras de Porto Alegre é para uma inundação de 6 metros. E nem chegamos lá.
JC - Sabemos que mudanças legislativas levam certo tempo. Mas daqui para frente, quais são pontos você acha que devem ser priorizadas para modificações no Código Estadual do Meio Ambiente?
Ferraz - Além de todas as definições do que é vegetação natural e não é vegetação natural no campo, precisamos ter uma noção muito clara do que é que se quer defender no Pampa e o que é que é a vegetação natural do Pampa. Ao usar o Pampa para silvicultura, a gente precisa saber que a plantação e monocultivo de árvores não é floresta. Que a silvicultura, muito embora ela resulte em uma acumulação temporária muito visível de carbono acima do solo, não significa necessariamente uma retirada líquida de carbono da atmosfera. Para além de que uma grande parte desse carbono acumulado pela silvicultura acima do solo no Rio Grande do Sul, quase metade, vai para carvão e lenha. Também a recuperação do reconhecimento de que é obrigação do estado regulamentar o uso do meio ambiente. Porque o reconhecimento desse papel do estado parece que desapareceu. As alterações que aconteceram, parecem refletir uma visão de que a legislação ambiental é o estado se atravessando no caminho de quem quer empreender. Isso é profundamente contrário a aquilo, pelo menos que eu entendo como o papel do estado face à dupla empreendimento e proteção do meio ambiente. O problema fundamental é que há muitos usos do meio ambiente para fins de investimento que causam custos que não são incorporados nos bens dos produtos. Então, quando você compra uma garrafa de bebida com uma embalagem de plástico, você paga um valor pelo líquido que está lá dentro. Paga algo pelo plástico, mas você não paga o custo ambiental que o descarte daquela garrafa vai ter no futuro. Isso chama-se externalidade. E é função do estado e da regulamentação das políticas ambientais internalizar essas coisas, corrigir. Isso faz-se através das restrições, através de impostos, através de subsídios para diferentes atuações. Então, o que eu acho mais fundamental nesse momento é gerar uma visão de que o estado é um mediador de conflitos inevitáveis e saudáveis quando eles são bem mediados, entre a vontade de ganhar dinheiro e o cuidado para que gerações futuras possam ganhar dinheiro também e possam usufruir do meio-ambiente. Portanto, há uma situação agora que parece que o estado é por definição uma coisa ruim, que cuja ação deve ser minimizada e cuja regulamentação deve ser minimizada. E isso é um equívoco. Isso é uma situação que só leva a mais concentração de riqueza e e prejuízo de muitos empreendedores locais, que vão perder para grupos que vêm especular e não vão pagar o preço de mau uso ambiental.

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