Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Entrevista Especial

- Publicada em 12 de Março de 2023 às 14:17

Desafio do Brasil é a produtividade, afirma Schüler

O Brasil ainda é uma economia muito fechada, e deve gradativamente reverter isso", defende Fernando Schüler

O Brasil ainda é uma economia muito fechada, e deve gradativamente reverter isso", defende Fernando Schüler


fotos: LUIZA PRADO/JC
O Brasil tem alguns desafios bastante claros. O primeiro é a produtividade. Com exceção do agronegócio, a produtividade brasileira está estagnada há mais de três décadas. A análise é do cientista político Fernando Schüler. Professor do Insper e doutor em Filosofia e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Schüler avalia que o País precisa também aprofundar as reformas e continuar melhorando a regulação, como foi feito na área do saneamento básico e da cabotagem, além de oferecer segurança jurídica para os investimentos.
O Brasil tem alguns desafios bastante claros. O primeiro é a produtividade. Com exceção do agronegócio, a produtividade brasileira está estagnada há mais de três décadas. A análise é do cientista político Fernando Schüler. Professor do Insper e doutor em Filosofia e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Schüler avalia que o País precisa também aprofundar as reformas e continuar melhorando a regulação, como foi feito na área do saneamento básico e da cabotagem, além de oferecer segurança jurídica para os investimentos.
O cientista político destaca que o governo federal já vem sinalizando que deverá lidar com o tema fiscal preponderantemente pelo lado da receita. Segundo Schüler, a reoneração dos impostos sobre a gasolina, e o anúncio da tributação na exportação de petróleo expressam isso.
O cientista político comenta que não existe espaço, em Brasília, para recuos em temas estratégicos como a reforma trabalhista, previdenciária, agências reguladoras, ou a autonomia do Banco Central.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Schüler afirma que o País também precisa modernizar o setor público e melhorar a educação. Ele diz ainda que há um amplo espaço para uma agenda positiva, na área social e em reformas estruturantes.
Jornal do Comércio - Quais os principais desafios do governo Lula neste terceiro mandato?
Fernando Schüler - Independentemente de quem está no governo, o Brasil tem alguns desafios bastante claros. O primeiro é a produtividade. Com exceção do agronegócio, nossa produtividade está estagnada há mais de três décadas. Houve uma melhora de alguns indicadores econômicos, no último período, o País fechou 2022 com uma taxa de desemprego de 7,9%, a melhor desde a grande crise de 2015/16, o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu perto de 3%, mas há tudo por fazer. A agenda é conhecida. É preciso aprofundar as reformas, continuar melhorando a regulação, como foi feito na área do saneamento básico e cabotagem, oferecer segurança jurídica para investimentos, modernizar o setor público, e melhorar a educação. O País ocupa as últimas posições no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a cada três anos, no ensino público, e precisa de uma revolução nesta área.
JC - Como será a relação do Executivo com o Congresso?
Schüler - Já durante a transição, (o presidente Luiz Inácio) Lula (da Silva, PT) costurou uma aliança estratégica com Arthur Lira (PP) e o centrão, que resultou na aprovação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da Transição e na própria eleição à sucessão na Câmara. Então não vejo problemas neste terreno. O Congresso é governista, historicamente, com taxas em torno de 75%, com exceção dos períodos de crise em torno dos dois processos de impeachment, de nossa história recente. Lula tem experiência política, faz um governo de coalizão, e terá o apoio no Congresso. Não acho que exista espaço, em Brasília, para recuos em temas estratégicos como a reforma trabalhista, previdenciária, agências reguladoras, ou autonomia do Banco Central. Mas há um amplo espaço para uma agenda positiva, na área social e em reformas estruturantes.
JC - O combate à inflação e a reforma tributária são temas que devem priorizados?
Schüler - O governo já vem sinalizando que deverá lidar com o tema fiscal preponderantemente pelo lado da receita. A reoneração dos impostos sobre gasolina, e o anúncio da tributação na exportação de Petróleo expressam isso. Além disso, o governo já deixou claro que não seguirá em frente com a reforma administrativa, e não tem como foco uma política ativa de desestatização ou corte estrutural do gasto público. Quanto à reforma tributária, penso que será a maior prioridade do governo, no Congresso. A migração para o modelo do IVA, a unificação do IPI, Pis-Cofins, ICMS e ISS, no novo IBS, o fim da cumulatividade, a criação de uma espécie de "imposto negativo", para os mais pobres, e uma revisão das isenções tributárias. Não é pouca coisa. É legítimo que os diferentes setores da economia se organizem e defendam suas posições. Também não faz sentido desonerar alguns setores, em detrimento de outros, sem uma clara racionalidade. Então há muito trabalho pela frente. Se isto for feito no primeiro ano do governo, será uma enorme conquista.
JC - A eleição de Lula resultou na retomada do protagonismo do Brasil no exterior. O que o governo federal deve aproveitar nessa relação com lideranças internacionais?
Schüler - Lula tem prestígio e conexões, no plano internacional, o que é um ativo para o governo. Mas protagonismo é algo que precisa ser construído. Penso que o País deveria focar em avançar no ingresso na OCDE e no acordo comercial com a União Europeia. É essencial que o País seja visto como uma economia aberta a investimentos, com estabilidade e responsabilidade fiscal. E seria um enorme erro voltar a taxar o setor exportador, como em parte fez a Argentina, recentemente. No mais, o Brasil ainda é uma economia muito fechada, e deve gradativamente reverter isso. Isso exige algo muito simples: modernizar a regulação, abrindo mercado para competição. Foi o que se fez na área da cabotagem, ferrovias e saneamento. É isto que precisa ser feito. Não é por acaso que os setores mais competitivos de nossa economia, como o agronegócio, têm um tributação relativamente baixa e estão mais integrados às cadeias produtivas globais. Acho que o governo tem consciência disso, e é nisso que o prestígio de Lula pode ajudar.
JC - As alianças políticas do governo Lula podem prejudicar a terceira gestão petista?
Schüler - No presidencialismo de coalizão, típico de nosso modelo político, não se governa sem alianças. Não se fará a reforma tributária sem alianças, nem a aprovação do novo marco fiscal. O problema não reside nas alianças, mas no conteúdo da agenda. No modelo brasileiro, o Executivo é o príncipe. É ele quem conduz a agenda, em última instância. A questão central é saber exatamente o que será priorizado pelo governo.
JC - O senhor imaginou que poderíamos uma polarização tão acirrada entre a esquerda e a direita no Brasil?
Schüler - Este é um quadro hoje comum nas grandes democracias. Em parte, é o resultado da migração em massa do debate público para o meio digital. A política foi tomada pelas chamadas "guerras culturais". O mesmo acontece nos Estados Unidos. É evidente que isto traz um custo. A geração de consensos básicos é muito difícil. Por um momento, se imaginou que a responsabilidade fiscal e as reformas eram basicamente consensuais, no País. Não são. Há menos de sete anos aprovamos o novo regime fiscal, e já estamos mudando. O mesmo vale para a Lei das Estatais, e muitas outras políticas públicas, como a própria autonomia do Banco Central. Deveríamos pensar em politicas de Estado, de longo prazo, mas não é a realidade atual do País.
JC - Porque no Brasil é tão difícil surgir novas lideranças políticas do porte de Fernando Henrique Cardoso, de Mário Covas, de Pedro Simon, de Leonel Brizola e de Lula?
Schüler - Todas estas lideranças ganharam relevo, e se firmaram no mundo político brasileiro, em um momento muito especial do País, que foi a transição para a democracia, nos anos 1980. Se poderia incluir aí o Doutor Ulysses (Guimarães), Tancredo Neves e alguns outros. Brizola, e o próprio Tancredo, já era uma liderança nacional no período anterior ao golpe. Nos tempos atuais, o custo de entrada, para novas lideranças, é muito alto, em nosso mundo político. Há muito dinheiro, nas campanhas eleitorais, capturado pelas elites partidárias, e a política na era digital é selvagem. Converso com muita gente boa do mercado, da academia, da sociedade e muitos me dizem: é loucura arriscar uma reputação em um universo conflagrado e sem ética, como é a política. Há igualmente o fenômeno do "apagão das canetas", o medo das pessoas de assumirem posições públicas, e sofrerem todo tipo de processos, por vezes por procedimentos burocráticos fora do seu controle, quando não por simples denúncias vazias. Por fim, o sistema se protege, e tende a afastar muita gente talentosa e de expressão, que poderia oferecer uma grande contribuição. Apesar de tudo isto, há novas lideranças surgindo, em diferentes partidos. À esquerda, há os ex-governadores Rui Costa (PT)e Wellington Dias (PT); à direita, os governadores Tarcísio Freitas (REP) e Romeu Zema (Novo). Há o Eduardo Leite e a Raquel Lyra (PSDB). Apesar de tudo, a política se renova.
JC - O senhor avalia que temas como a pandemia e a questão da Amazônia foram fatores que resultaram na perda da eleição pelo ex-presidente Jair Bolsonaro?
Schüler - Penso que há muitas questões. Sem entrar no mérito, as pesquisas, de um modo geral, revelavam desaprovação, na faixa dos 60%, com variações ao longo do período, do modo como o governo fez a gestão da pandemia. Então é razoável imaginar que isto tenha tido um peso. De um modo geral, houve o embate entre dois projetos para o País. Diria: dois projetos radicalmente distintos, seja na agenda econômica, seja em termos de raízes, histórias e valores. Lula ganhou. Gosto de cultivar uma visão pluralista da política. É um tanto arbitrário eleger este ou aquele fator e imaginar que exatamente aquilo fez a diferença, para um lado ou outro. Bolsonaro comprou um desgaste forte com setores do funcionalismo, em função da proposta da reforma administrativa. O quanto isto pesou? Possivelmente tenha ganhado apoios com a redução drástica dos preços dos combustíveis, na reta final do governo. O quanto isto pesou? Muita gente gostou da política de liberação de armas, outros não. Somos uma sociedade dividida. As interferências da Justiça Eleitoral afetaram o resultado? Haverá tempo para fazer esta análise com mais distanciamento. O PT teria vencido as eleições com algum outro candidato, que não fosse o Lula? Acho muito difícil isolar este ou aquele fator, e explicar a partir daí uma vitória ou uma derrota. O fato é que Lula soube criar a imagem de uma aliança mais ampla, fez, na prática, uma aliança com o centro político, e ganhou as eleições. É um mérito de quem ganhou, antes de qualquer coisa. E uma escolha majoritária da sociedade. É assim a democracia.
JC - Leite surge como um nome do PSDB ao Planalto em 2026?
Schüler - Sem dúvida. É um governador em segundo mandato, com visibilidade nacional, liderança dentro do partido. A grande pergunta é se o Brasil seguirá movido pela mesma polarização que vem pautando o País, desde ao menos 2018. Há a incógnita sobre o futuro de Bolsonaro, e sobre a reconfiguração da chamada "nova direita", no País. O PSDB tem como primeira grande tarefa a sua própria refundação, como partido. Qual sua identidade, no que se diferencia dos dois polos dominantes na política brasileira atual. O partido votou em mais de 80% das vezes com o governo, na gestão Bolsonaro. Em temas essenciais, como a autonomia do Banco Central, saneamento e reformas. Talvez o que falte ao PSDB é uma maior clareza programática. É neste plano que o Eduardo Leite pode oferecer uma enorme contribuição. Ele conseguiu encaminhar reformas difíceis, no seu primeiro mandato, tocar à frente privatizações e novos modelos de Parcerias Público-Privadas. A questão é transformar isto em uma agenda sistemática, e comunicar isto para o País.
JC - Para a eleição de 2026, que candidatos o senhor acredita que poderão concorrer a eleição presidencial?
Schüler - Ainda é muito cedo. Se Bolsonaro não concorrer, o caminho está aberto para Romeu Zema ou Tarcísio Freitas, no campo liberal ou conservador. No centro político, Eduardo Leite hoje é a principal promessa. À esquerda, existe a incógnita sobre uma nova candidatura de Lula. Falta muito para todas estas definições. Por óbvio, e a depender do desempenho da economia, Fernando Haddad surge como uma liderança natural para suceder Lula, no PT.
JC - Quando no Brasil teremos uma maior representatividade negra e de mulheres no Legislativo? É possível termos um dia um presidente da República negro?
Schüler - Este é um tema essencial para o País. A representação política é resultado da forma como a sociedade se organiza. No Brasil, há um real apartheid educacional e social. Se de fato queremos uma sociedade inclusiva, devemos dar liberdade para que as crianças e jovens negros, e diria de menor renda, de um modo geral, possam estudar nas melhores escolas, em condições similares a seus pares de maior renda. Sem que se faça isso, vamos continuar cultivando um hiato que é ao mesmo tempo educacional, econômico, e que termina se refletindo na configuração do poder. O ponto é que não vejo coragem, nem disposição, de nossa elite dirigente, de todos os partidos, em abraçar esta agenda. Somos uma sociedade acomodada, neste tema, e isto deveria mudar.
 

Perfil

Fernando Schüler é nascido em Porto Alegre (1965). Cientista político e professor do Insper-Instituto de Ensino e Pesquisa, Schüler é doutor em Filosofia e Mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Nacional de Administração Pública (Brasília) e Especialista em Gestão Cultural e Cooperação Ibero-americana pela Universidade de Barcelona (Espanha). Foi diretor do Grupo Ibmec Educacional, no Rio de Janeiro, estando na Columbia University, como Visiting Scholar. Foi bolsista do Faculty Research Program, do governo canadense. No Rio Grande do Sul, atuou como diretor executivo da Fundação Iberê Camargo (1999 a 2006) e foi secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social (2007 a 2010). Atualmente é titular da Cátedra Insper Palavra Aberta.