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entrevista especial

- Publicada em 22 de Janeiro de 2023 às 21:42

Bancada negra é início de equalização histórica, diz Gomes

Jovem liderança da esquerda gaúcha pretende levar a luta antirracista para o Palácio Farroupilha

Jovem liderança da esquerda gaúcha pretende levar a luta antirracista para o Palácio Farroupilha


LUIZA PRADO/JC/LUIZA PRADO/JC
Diego Nuñez
Para Matheus Gomes (PSOL), o Rio Grande do Sul precisa se conectar com o movimento mundial de revisão de símbolos que remetem a épocas de escravidão. Eleito deputado estadual em quinto lugar com 82,4 mil votos, apenas dois anos após ingressar na política institucional como vereador de Porto Alegre, a jovem liderança da esquerda gaúcha pretende levar a luta antirracista para o Palácio Farroupilha.
Para Matheus Gomes (PSOL), o Rio Grande do Sul precisa se conectar com o movimento mundial de revisão de símbolos que remetem a épocas de escravidão. Eleito deputado estadual em quinto lugar com 82,4 mil votos, apenas dois anos após ingressar na política institucional como vereador de Porto Alegre, a jovem liderança da esquerda gaúcha pretende levar a luta antirracista para o Palácio Farroupilha.
Ele não está sozinho. Com a eleição de Bruna Rodrigues (PCdoB) e Laura Sito (PT), o Estado terá pela primeira vez uma bancada negra em seu Parlamento. Para Gomes, ter a maior representação negra da história dá ao Legislativo gaúcho a oportunidade de voltar sua atenção para a base da pirâmide social.
O parlamentar será oposição ao governo de Eduardo Leite (PSDB). Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, ele criticou a gestão econômica do governador em seu primeiro mandato e promete protagonizar, junto à oposição local e ao governo federal de Luiz Inácio Lula da Silva, um novo acordo para o Regime de Recuperação Fiscal (RRF).
Jornal do Comércio - Qual a importância de ter uma bancada negra na Assembleia do Rio Grande do Sul?
Matheus Gomes - A gente está iniciando uma nova participação política no Estado. No âmbito institucional, porque o povo negro gaúcho tem uma historia de luta muito rica. Daqui nasceu o Dia da Consciência Negra, que hoje é feriado em centenas de cidades do Brasil, inclusive nas maiores capitais brasileiras. Isso expressa que sempre houve organização negra no nosso Estado. Temos os clubes negros mais antigos do país, uma expressão muito forte da religiosidade de matriz africana, de articulação cultural negra e lideranças políticas que, em outro momento, cumpriram um papel de relevância nacional e cumprem até hoje, como o próprio senador Paulo Paim (PT). Mas nós nunca tínhamos tido uma bancada - ou seja, mais de um ocupando aquele espaço. E nesse momento a gente tem, na Assembleia Legislativa e também no Congresso Nacional. É o início de uma tentativa de equalizar a história de luta do povo negro: a expressão que nós temos na sociedade gaúcha com o ambiente político parlamentar.
JC - Como isso foi possível eleitoralmente, já que se tratam de pessoas do mesmo nicho, do campo da esquerda e com base política em Porto Alegre?
Gomes - Até 2020 existia essa cultura na esquerda de que só poderia haver um candidato negro ou uma candidata negra. A gente rompeu totalmente com essa lógica e elegeu uma bancada que teve expressão a nível nacional e mostrou que havia espaço para ter mais representações negras, para representar o povo negro e defender causas que são parte da nossa vida. Tive minha primeira aparição pública de grande expressão na cidade defendendo o transporte, o passe livre, a redução do preço das tarifas (nas jornadas de junho de 2013). Trabalhei muito nos movimentos em defesa da educação pública como liderança estudantil. Sou professor de formação, fui servidor público, então tive atuação também junto à mobilização de trabalhadores. A gente construiu coisas que vão muito além da luta antirracista. Podemos ocupar esses espaços tanto quanto outros políticos não negros sempre ocuparam.
JC - Como se pode combater o racismo em um ambiente parlamentar, nas atribuições de um deputado estadual?
Gomes - Na Câmara de Porto Alegre posso dizer que sofri racismo desde o primeiro dia. Tivemos declarações racistas do ex-candidato a prefeito, ex-presidente da Câmara de Vereadores de Porto Alegre (Valter Nagelstein, Republicanos, na época PSD), que foi condenado em primeira instância pelo crime de racismo três dias após a nossa vitória eleitoral em 2020. No primeiro dia da legislatura, em 2021, a então vice-líder do Governo da Câmara (Comandante Nádia, PP, na época no MDB) tentou coibir nossa manifestação política que questionava o tema do hino do Rio Grande do Sul, que é uma bandeira histórica também do povo negro e, de lá para cá, a gente teve que conviver com a violência política no ambiente parlamentar. Quando houve a invasão da Câmara, um dos piores episódios que a democracia porto-alegrense viu nas últimas décadas, os vereadores negros eram os alvos. Agora, para finalizar o nosso processo aqui na Câmara, eu recentemente, por denunciar uma situação de racismo aqui no ambiente parlamentar, fui advertido na comissão de ética por uma espécie de tese de racismo reverso. Ou seja, um ambiente parlamentar em Porto Alegre e inclusive em nível estadual e nacional, não está preparado para encarar discussões que estão mais avançadas na sociedade. Racismo reverso não existe. Isso é uma compreensão sociológica, política e jurídica. O racismo só é exercido por quem detém o poder de oprimir e explorar o segmento negro da nossa população. Sempre foi assim e não há inversão dessa relação.
JC - Tem a questão do hino rio-grandense, que tem uma passagem considerada racista pela bancada. Qual seria a solução? Defende mudança na letra?
Gomes - O colonialismo fez o Brasil e vários países conviverem por décadas, séculos, com simbologias que remetem à exploração escravocrata. Muitos estão modificando isso. Temos vários casos nos Estados Unidos. A Austrália modificou seu hino. Em países europeus, discute-se inclusive a devolução de obras de arte que foram tomadas das colônias, estátuas que foram retiradas. O Rio Grande do Sul precisa se conectar com esse movimento mundial de revisão de símbolos que remetem ao período da escravidão e o hino inevitavelmente é parte dessa discussão. O que eu quero nesse momento é desenvolver um debate na sociedade. Não pretendo propor um projeto de lei. Não acho que é numa canetada que a gente vai mudar isso. Eu quero abrir uma discussão no Legislativo, Executivo, no Judiciário, com as representações culturais do Estado. Essa é nossa ideia e creio que nos últimos dois anos a gente conseguiu fazer isso. Mas esse é o movimento do momento. Abrir o debate.
JC - Além da luta antirracista, que outras pautas leva para a Assembleia?
Gomes - Não comprei uma bandeira só de negras e negros. Hoje, no RS, na base da pirâmide social, os piores indicadores de condições de vida estão na população negra. Se a gente começa a resolver os problemas do Estado olhando para o povo negro, podemos olhar para o conjunto da população que está na base. Enxergar o todo. Quem está no topo da pirâmide normalmente só olha para a frente e a gente fica esquecido. Eu acho que o antirracismo é uma bandeira que vai fazer bem para o conjunto da sociedade. A defesa do meio ambiente foi uma pauta que aqui na Câmara de Vereadores trabalhamos com força. Vamos levar para a Assembleia a ampliação da rede de direitos sociais do nosso Estado. Serão bandeiras fortíssimas a defesa da educação, assistência social, cultura. Podem esperar do nosso mandato muitas proposições em diversos temas.
JC - Esperava uma ascensão tão rápida? O Matheus dos movimentos estudantis de 2016 imaginava que o Matheus de 2023 ia estar assumindo uma cadeira no Parlamento gaúcho?
Gomes - Sempre houve espaço para as ideias que a gente carrega na sociedade e hoje o desenvolvimento de uma nova geração de líderes políticos possibilitou ocuparmos esse vazio que existia, de pessoas que queriam ver a luta do povo negro sendo representada, que queriam ver uma perspectiva ecológica de defesa dos povos indígenas aparecendo na política. Criamos em Porto Alegre a primeira frente parlamentar em defesa do samba e do carnaval, que é uma cultura histórica da nossa cidade, que movimenta dezenas de milhares de pessoas, mas estava carente de representação. Então as ideias que a gente trazia faziam parte do cotidiano e do ideário de centenas de milhares de pessoas em Porto Alegre. Acho que agora elas estão se encontrando com um sujeito social, um eleitorado que nos deu essa possibilidade de representar na Assembleia Legislativa e isso é uma honra para nós.
JC - Como avalia, de forma geral, o primeiro governo de Eduardo Leite?
Gomes - O Leite soube se diferenciar do bolsonarismo, estabelecendo limites no controle da pandemia e na relação com as instituições. Essa perspectiva torna ele diferente. No entanto, do ponto de vista da política econômica e do combate à desigualdade social, que são os grandes problemas do Rio Grande do Sul e do Brasil nesse momento, ele seguiu uma cartilha muito parecida. Então, foi um governo extremamente negativo do ponto de vista da preservação e desenvolvimento do patrimônio público do nosso Estado. Aplicou uma agenda de contrarreformas, cujo Regime de Recuperação Fiscal (RRF) é a principal expressão que é responsável pelo Rio Grande do Sul ser o estado que lidera o crescimento da desigualdade social e da pobreza na Região Sul. Também teve uma política ambiental desastrosa para o Estado. Hoje, o pampa é o bioma mais devastado proporcionalmente no Brasil. Por pouco não tivemos a maior mina de carvão a céu aberto do Brasil na região metropolitana (de Porto Alegre), o que ia gerar um impacto destrutivo para milhões de pessoas. O RS foi vanguarda na liberação dos piores agrotóxicos proibidos em diversos países de origem. Ao mesmo tempo, é um governo que restringiu muito o investimento em áreas sociais estratégicas como a assistência social e a cultura. Não há como, neste momento, não se posicionar em oposição à continuidade desse projeto - mesmo que nós tenhamos ajudado o Leite a se eleger, porque a alternativa do Onyx (Lorenzoni, PL, ex-candidato a governador) representava um retrocesso histórico para o RS.
JC - O governo promete que a agenda de projetos não será tão polêmica para essa legislatura. Essa é a perspectiva? Acredita em uma legislatura mais leve?
Gomes - Olha, se para o governador Eduardo Leite é leve a entrega de uma empresa estratégica como a Corsan…. Nós não temos como acreditar nessa possibilidade. A continuidade da agenda do Leite leva o Rio Grande do Sul para um beco sem saída do ponto de vista do desenvolvimento econômico, social e das sustentabilidade ecológica do nosso Estado. Se ele pretende ter uma agenda leve, pode ter certeza que vai contar como posição que sabe da responsabilidade que tem e vai fazer um trabalho pesado para colocar o Rio Grande do Sul numa outra rota daqui para frente. E obviamente que o ponto de apoio que nós temos nessa perspectiva é o projeto que o Brasil vai desenvolver a nível nacional. Junto com o presidente Lula, nós vamos continuar defendendo que o RRF seja revisto, porque a dívida pode ser renegociada a partir de agora com o novo governo. Já há declaração da equipe ministerial do Lula pra gente estabelecer essa possibilidade.
JC - Questionado, Leite já sinalizou que poderia rever o acordo caso recebesse, do governo federal, uma proposta mais atrativa para o Estado. Acredita que um novo RRF pode partir de Brasília?
Gomes - Vamos construir isso com a equipe econômica do governo federal. É uma proposta que vou levar à oposição para que tome o protagonismo e tire essa camisa de força que foi instaurada. Nós vamos tomar a dianteira dessa negociação com o governo Lula e representar o debate ao povo gaúcho.
JC - Como avalia este início do governo Lula?
Gomes - O Lula tem a tarefa de trazer ao Brasil uma perspectiva de futuro. O bolsonarismo não ofereceu isso ao longo dos últimos quatro anos. Acho que o que marcou o governo até então foi uma luta para governar. Queremos que o presidente Lula governe e desenvolva o programa para o qual que foi eleito nas urnas. A tentativa de golpe do dia 8 de janeiro buscou criar uma instabilidade política que subvertesse a vontade da maioria e recolocar-se o Brasil no caminho para uma transição autoritária que era o projeto do bolsonarismo. Lula tem que continuar desenvolvendo as propostas que o elegeram. Para isso, nós temos que superar a ameaça golpista.
JC - O PT já foi acusado de hegemonista por setores da esquerda. Após as eleições, tendo recebido apoio do PSOL e de outros partidos, acredita que pode ocorrer uma maior distribuição de poder no campo?
Gomes - Acredito que isso tem que ocorrer, porque a esquerda brasileira precisa se renovar. E a renovação hoje está no PSOL, que produziu grandes lideranças. Marielle Franco era para ser hoje uma das maiores lideranças da esquerda brasileira, como é Guilherme Boulos, Sônia Guajajara - primeira ministra dos povos indígenas da história do nosso País. O PSOL produz esse tipo de processo político, representante uma esquerda renovada, arejada. Não só no caso do nosso partido, mas de lideranças que estão em outros movimentos sociais, em outros partidos políticos de esquerda. Lula não venceu as eleições sozinho. Venceu com uma ampla aliança. Acho que isso agora precisa estar presente para as eleições de 2024.
 
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