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Entrevista especial

- Publicada em 12 de Junho de 2022 às 19:20

Ação busca maior área de preservação na orla, diz Barcelos

Advogado Renato Barcelos está à frente da ação que pede o reconhecimento do Guaíba como um "curso d'água"

Advogado Renato Barcelos está à frente da ação que pede o reconhecimento do Guaíba como um "curso d'água"


fotos: ANDRESSA PUFAL/JC
Marcus Meneghetti
O advogado Renato Barcelos está à frente da ação que pede o reconhecimento do Guaíba como um "curso d'água" - o que pode garantir uma Área de Preservação Permanente (APP) em uma faixa de 500 metros nas margens. Caso a ação movida pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) e Instituto Ingá seja bem-sucedida, grandes empreendimentos privados deverão respeitar a distância de, pelo menos, meio quilômetro da orla.
O advogado Renato Barcelos está à frente da ação que pede o reconhecimento do Guaíba como um "curso d'água" - o que pode garantir uma Área de Preservação Permanente (APP) em uma faixa de 500 metros nas margens. Caso a ação movida pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) e Instituto Ingá seja bem-sucedida, grandes empreendimentos privados deverão respeitar a distância de, pelo menos, meio quilômetro da orla.
Isso atingiria o interesse de grandes empreendimentos. A própria revitalização do Cais Mauá, cujo projeto prevê a construção de sete torres comerciais, seria afetada.
Entretanto, Barcelos sustenta que construções que atendem interesse público, finalidade social ou impliquem atividades de baixo impacto não serão afetadas pela demarcação da APP às margens do Guaíba. "Por exemplo, o caso de uma comunidade carente que ocupa uma área marginal ao Guaíba, como acontece ali na Vila Assunção. Nesse caso, embora seja uma irregularidade (construir casas em uma área de preservação permanente), é tolerado, porque é um problema social. Da mesma forma, se alguém precisa construir uma rampa de concreto para acessar uma área em um atracadouro público, pode construir, porque é uma atividade de baixo impacto", citou o advogado.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Barcelos explicou que a ação foi apresentada neste momento, porque o Superior Tribunal de Justiça (STJ) chegou ao entendimento de que cursos d'água que passam por áreas urbanas devem ser protegidos conforme as regras previstas no Código Florestal, e não a Lei de Parcelamento do Solo de Porto Alegre. Ele também menciona as características que o levam a crer que o Guaíba é, na verdade, um rio.
Jornal do Comércio - Do que trata a ação movida pela Agapan, MJDH e Instituto Ingá sobre o Guaíba?
Renato Barcelos - No movimento ecológico de Porto Alegre e dos municípios que compõem a região hidrográfica do Guaíba, existe uma discussão antiga sobre o conceito de rio e lago no caso do Guaíba. Uma parte dos cientistas e pensadores sustenta que o Guaíba é um lago, outra defende que o Guaíba é um rio. Na verdade, nunca se estabeleceu um consenso sobre isso. A partir do MJDH, Agapan e Ingá, fizemos um estudo não só do ponto de vista jurídico, mas também científico. Entendemos que essa discussão rio-lago polarizou muito o tema, de modo que seria infrutífero propormos algo a partir dessa discussão. No entanto, conseguimos fundamentar, do ponto de vista científico, que o Guaíba é um curso d'água. Estamos exigindo o reconhecimento judicial disso.
JC - Por consequência, isso garantiria proteção às margens do Guaíba...
Barcelos - Há uma construção (jurídica) solidificada por uma tese do STJ no dia 28 de abril de 2021. Essa tese reconheceu que, nas áreas urbanas consolidadas, como o caso de Porto Alegre, os cursos d'água que cruzam a cidade devem ser protegidos conforme as regras do Código Florestal de 2012, em vez da lei de parcelamento do solo (dos municípios e estados). Ou seja, a área de proteção nas margens dos cursos d'água deve ser regulada pela legislação federal do Código Florestal, que é mais protetiva que a lei de parcelamento do solo.
JC - Segundo o Código Florestal, qual seria a largura da faixa de proteção para o Guaíba?
Barcelos - A margem de proteção é calculada de acordo com o tamanho do curso da água e sua largura. No caso do Guaíba, um curso d'água de uma distância mínima de 600 metros (entre uma margem e outra), o Código Florestal prevê uma área de proteção de 500 metros (a partir da margem). Essa faixa seria considerada uma Área de Preservação Permanente (APP). Solicitamos que, ao reconhecer o Guaíba como curso d'água, um conceito utilizado na própria lei (do Código Florestal), se aplique essa margem. Se fosse considerado um lago, que não é a nossa tese, o Guaíba teria uma faixa de proteção de apenas 30 metros.
JC - Por que a ação foi apresentada agora?
Barcelos - Em abril de 2021, o STJ se pronunciou sobre um caso de Santa Catarina, onde um proprietário queria demolir sua casa, que estava construída a 15 metros do Rio Itajaí. Ele pediu autorização à prefeitura de Itajaí e a autoridade municipal ambiental negou, dizendo que aquela casa estava localizada em uma APP urbana, onde não poderia haver edificações. O proprietário, então, recorreu à Justiça e o juiz entendeu que, sim, ele poderia demolir sua casa, porque estava a uma distância regular do rio, do ponto e vista da lei do parcelamento do solo urbano (daquela cidade). Nesse ponto, o Ministério Público (MP) interviu e entrou com um recurso para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, alegando o proprietário não poderia mexer (na casa), porque o que regula essa distância não é a lei do parcelamento do solo urbano, mas sim o Código Florestal. No caso do Rio Itajaí, o código prevê que 100 metros da margem do rio para dentro da faixa de terra é protegida, portanto não pode haver intervenção nessa área - a menos que atenda interesse público, finalidade social ou atividade de baixo impacto. Entretanto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina confirmou que o proprietário poderia, sim, intervir, pois entendeu que era a lei de parcelamento do solo urbano e não o código que deveria ser aplicado. Finalmente, a matéria foi ao STJ, onde já tramitavam várias ações sobre esse mesmo tema. Mas ao contrário do juiz do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, os ministros do STJ entenderam que o proprietário não poderia intervir na propriedade, porque, ao fim e ao cabo, a legislação que fica, é realmente o Código Florestal e não a lei do parcelamento do solo urbano. Essa foi uma tese para o País inteiro: no caso dos cursos d'água que atravessam áreas urbanas consolidadas, deve ser aplicado o Código Florestal para regular áreas de preservação permanente. Nesses espaços, não pode haver edificações e, quando for possível, precisa se estabelecer o status quo anterior à intervenção urbana naquela área. A partir dessa decisão, aplicada a todo o País, os cursos d'água passaram a ter a regulamentação clara, o que guiou nossa ação.
JC - A ação também pede uma liminar. Qual o objetivo?
Barcelos - A liminar pede, em primeiro lugar, a suspensão de todas as intervenções, empreendimentos privados que estão sendo feitos ou que venham a ser realizados em uma faixa de 500 metros da margem do Guaíba. Isso engloba os que estão em fase inicial e os que estão em fase conclusiva. Em segundo lugar, a liminar pede que as autoridades demandadas - o Estado, a União, o município, a Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) e a Funai (Fundação Nacional do Índio) - verifiquem a regularidade destes empreendimentos.
JC - O que pode acontecer com essas construções, que já existem ou que estão em andamento.
Barcelos - Veja, o Código Florestal anterior (ao de 2012) era de 1965. Entrou em vigor em 1976. Na época, ele estabeleceu uma distância mínima de cinco metros (da margem dos cursos d'água) para os proprietários que queriam edificar qualquer tipo de construção. Antes de 1975, não existia nenhuma margem de segurança, embora fosse recomendado. Em 1978, houve a primeira mudança (nessa regra). Quando foi criada a Lei do Solo Urbano, essa distância mínima passou para 15 metros. Ao longo do tempo, a norma veio evoluindo até chegar em 30 metros em 1986. Em 2012, foi criado um novo Código Florestal, que manteve as medidas do anterior. Então, veja que a largura da faixa de proteção variou ao longo do tempo. Mesmo depois da Lei do Solo Urbano, os estados e municípios não podiam desrespeitar o código: eles poderiam adotar medidas mais protetivas (uma faixa maior nas margens dos cursos d'água), mas nunca menos protetivas (faixa menor que a estabelecida no código). Depois da decisão do STJ, o MP começou a fiscalizar (as licenças emitidas) e encontrou mais de uma centena de municípios que, de 1975 até hoje, regularam as margens dos cursos d'água de uma forma diferente do que estabelecia a lei federal. Ou seja, autorizaram estabelecimentos, construções e edificações em distancias inferiores ao que o Código Florestal previa, dependendo da largura de cada curso d'água.
JC - Então, no que diz respeito aos empreendimentos próximos ao Guaíba, a liminar também pede que a Justiça verifique se a licença que autorizou a construção respeitava a regra vigente no Código Florestal naquela época...
Barcelos - Sim. Se alguém construiu um empreendimento em 1979, temos que voltar no tempo e ver qual era a lei vigente naquele tempo, para saber qual era a distância mínima (da margem do Guaíba) que as construções deveriam respeitar. Se o empreendimento não respeitou essa legislação e construiu em uma distância menor, mesmo que o município tenha autorizado com licença e alvará, esses documentos perdem o seu efeito jurídico. Aí está o problema, aquela edificação passa a ser irregular, do ponto de vista jurídico.
JC - Pode citar alguns exemplos de empreendimentos que podem ser afetados?
Barcelos - Em Porto Alegre, o Sport Club Internacional está na iminência de construir um complexo empresarial, residencial, na beira do Guaíba, ao lado do Gigante da Beira Rio. O Inter ganhou aquela área, doada pelo município de Porto Alegre em 1995, para transformá-la em um complexo comercial, torre de 150 metros de altura. Essa edificação está dentro da APP de 500 metros? E o Pontal do Estaleiro, que 75% do prédio já foi concluído, que está na margem do Guaíba, respeitou o regramento da época? E o Golden Lake, que é um empreendimento de alto luxo, que vai sair ao lado do Barra Shopping? E a Ponta do Arado, no sul de Porto Alegre, onde deve sair outro empreendimento de luxo?
JC - O Cais Mauá também entraria...
Barcelos - Exatamente. O Cais Mauá é um projeto de altíssimo impacto, de quase R$ 400 milhões, em que o Estado vai abrir mão até da titularidade da área das docas. O projeto prevê nove torres de, no mínimo, 150 metros de altura, com um impacto de vizinhança terrível, com impacto ecológico inimaginável. Queremos saber se esses empreendimentos respeitaram a lei vigente na época, como de 1965 para cá até hoje nós sempre quisemos uma parametrização do que pode e do que não pode dentro das APPs (nas margens dos cursos d'água). Por isso, a importância do reconhecimento do Guaíba como curso d'água, tendo uma Área de Preservação Permanente nas margens...
JC - O que acontece com as casas construídas nas margens do Guaíba?
Barcelos - A lei diz que há três possibilidades de ocupação, construção e edificação em APPs. A primeira são bens de construções que atendam interesse público. A segunda, finalidade social, cuja definição consta na própria lei. E a terceira são atividades de baixo impacto ambiental. Veja, por exemplo, o caso de uma comunidade carente que ocupa uma área marginal ao Guaíba, como acontece ali na Vila Assunção. Nesse caso, embora seja uma irregularidade (construir casas em uma área de preservação permanente, na beira do Guaíba), é tolerado, porque é um problema social. Da mesma forma, se alguém precisa construir uma rampa de concreto para acessar uma área em um atracadouro público, pode construir, porque é uma atividade de baixo impacto.
JC - Do ponto de vista científico, o que caracteriza o Guaíba como curso d'água?
Barcelos - O conceito de curso d'água previsto na lei inclui rios, riachos e outros cursos de natureza diversa. É um conceito mais amplo. Especificamente no Guaíba, o que o encaixa nesse conceito são algumas questões fundamentais. Por exemplo, a hidrodinâmica. É necessário haver um fluxo por meio de um canal, um fluxo livre constante, em uma determinada direção. Além disso, há a questão do movimento sedimentar. O Guaíba transporta sedimentos para a Lagoa dos Patos em uma quantidade impressionante: em média, são transportados 1,1 milhão de toneladas de sedimentos a cada ano em direção à Lagoa dos Patos. O lago é diferente, ele não exporta sedimentos, só importa. Trouxemos elementos científicos, que não existiam antes. Uma equipe de Geologia da Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que é coordenada pelo professor Elirio Toldo Jr., nos forneceu um parecer para fundamentar a ação. Esse estudo mostrou que o Guaíba tem uma velocidade incrível, seja na superfície, na subsuperfície e no fundo. Ou seja, vetorialmente, ele se movimenta em três tipos de direção. São muitos os elementos que qualificam o Guaíba como um curso d'água, que é o conceito que a lei atribui a esse corpo hídrico.

PERFIL

José Renato de Oliveira Barcelos nasceu em 28 de abril de 1962 no município de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre. Nos anos 1970, formou-se em um curso técnico na Escola Técnica de Agricultura, em Viamão. Ao longo dos anos 1980, trabalhou como assistencialista rural na Emater, onde teve contato com o ecologista José Lutzemberger, que desenvolvia alguns projetos com agricultores familiares. Nessa época, se aproximou do movimento ambientalista do Rio Grande do Sul. Entretanto, só se filiou à Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) em 2009. Atualmente, é conselheiro da entidade. Largou a atividade junto aos agricultores para tornar-se advogado. Concluiu o curso de Direito na Pucrs. É especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional pela Ufrgs (2009) e mestre em Direito pela Unisinos (2016). Hoje é membro fundador da Associação de Juristas pela Democracia (AJURD-RS), da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Integra ainda o Movimento Pan-Europeu DiEM25 (Democracy in Europe Movement 2025).
 
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