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ENTREVISTA ESPECIAL

- Publicada em 22 de Dezembro de 2014 às 00:00

Participação é anseio latino-americano, avalia Julieta Quirós


ANTONIO PAZ/JC
Jornal do Comércio
Estudiosa dos movimentos sociais populares que irromperam no subúrbio de Buenos Aires no início dos anos 2000, a antropóloga argentina Julieta Quirós enxerga semelhanças daquela realidade presentes tanto em organizações políticas brasileiras quanto, principalmente, em parte do sentimento presente nas jornadas de junho de 2013, no Brasil. Entre elas, está a rejeição ao sistema político e a busca de mais participação nas políticas de Estado.
Estudiosa dos movimentos sociais populares que irromperam no subúrbio de Buenos Aires no início dos anos 2000, a antropóloga argentina Julieta Quirós enxerga semelhanças daquela realidade presentes tanto em organizações políticas brasileiras quanto, principalmente, em parte do sentimento presente nas jornadas de junho de 2013, no Brasil. Entre elas, está a rejeição ao sistema político e a busca de mais participação nas políticas de Estado.
Segundo Julieta, no entanto, também coexiste uma insatisfação alimentada pelo senso-comum, em classificar como “aparelhamento” a presença de organizações políticas na gestão de recursos públicos voltados a políticas sociais. “Vê-se que, tanto na esquerda quanto na direita, a acusação de clientelismo funciona como um dispositivo de desvalorização de qualquer movimento”, analisa.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, a antropóloga defende que é preciso discutir o conceito de participação. “Dizem quando e como você pode exprimir sua opinião política”, salientando que a contestação de partes excluídas da sociedade argentina, mas também da brasileira, como camponeses e indígenas, são respondidas com a repressão do aparelho estatal. “É importante entender como essa política se transforma e o que exprime a emergência de novas formas políticas inesperadas, como no caso das jornadas de junho”, pondera.
Jornal do Comércio – O que os movimentos populares da Argentina têm de semelhanças com as jornadas de junho brasileiras e outras erupções sociais?
Julieta Quirós – Minha pesquisa sobre movimentos de desempregados na Argentina, principalmente na grande Buenos Aires, mostra quais são os principais desafios dessas organizações hoje. Atualmente, elas vivem um certo retraimento: a política argentina tem se deslocado no que diz respeito à mobilização, está altamente polarizada entre quem é pró-governo e contra o governo, entre o kirchnerismo e o antikirchnerismo. O que está acontecendo no Brasil, agora e nas jornadas de junho, me faz lembrar muito do que ocorreu na Argentina há 13 anos, em 2001, com os movimentos que levaram à renúncia do (ex-presidente argentino Fernando) de la Rúa. Há vários pontos em comum, sobretudo no que diz respeito a esse sentimento de rejeição à política e aos partidos políticos, uma espécie de “chega”. Isso é interessante porque a Argentina, ao longo desta década, foi mudando, e essa rejeição deu origem a novas formas de participação política e a uma revalorização da política por outras vias.
JC – Houve um resgate da política participativa?
Julieta – Essa rejeição deu origem a outras formas de expressão política nas ruas. Muitos jovens entraram na política partidária ou de organizações sociais...  Eu diria que a formação desse novo modelo econômico do kirchnerismo, aglutinando diversos setores, é interessante porque, por um lado, ele foi nutrido e influenciado por essa mobilização. O kirchnerismo é um movimento de Estado que apela muito à mobilização social e política nas ruas. No entanto, o fato de apelar ao confronto e à polarização faz com que a oposição também se exprima nas ruas. Em 2008, por exemplo, o país se dividiu entre dois lados políticos, o governo e o campo que reunia diferentes setores econômicos prejudicados pelo protecionismo econômico. O próprio governo colocou o confronto na agenda, e essa oposição cresceu, porque todos os setores, como a classe média e a esquerda, aglutinaram-se como antikirchneristas.
JC – Existe alguma semelhança entre o caso argentino e o que ocorre, hoje, no Brasil com o petismo e o antipetismo?
Julieta – Pelo fato também de o PT estar entrando no quarto mandato, acho que essa permanência permite que a oposição social ao governo se aglutine. Acho que é uma reação também à impotência de que, nas eleições, eles continuem representando a maioria da população. É difícil falar do processo brasileiro, mas pelo que fui acompanhando na mídia e também nos intercâmbios, é que esse movimento que se expressou nas jornadas de junho é muito parecido com composição das manifestações antikirchneristas na Argentina: a mistura de uma direita conservadora com outros setores mais progressistas que não estão satisfeitos.
JC – Que aspectos dos movimentos populares na Argentina estão no foco de seus estudos?
Julieta – Uma das coisas que tenho discutido é a importância de compreender a dinâmica dos movimentos de desempregados como interlocutores do Estado no que diz respeito à gestão, solução de problemas e gestão de políticas públicas, programas sociais, de emprego... Os trabalhadores adotaram o piquete (mobilizações nas estradas) como forma de reivindicar, perante o Estado, a solução imediata dos problemas. Isso envolveu, como consequência, a constituição delas como gestoras dos programas de assistência social. Hoje, se discute como isso significou uma espécie de democratização do cenário da Grande Buenos Aires. O peronismo deixou de ser o único gestor de políticas e soluções e, paralelamente, deixou de ser o principal ator político.
JC – O que isso vem produzindo no país?
Julieta – Hoje em dia, é muito comum pensar que esses movimentos foram cooptados pelo Estado. Existe uma visão de que as organizações conquistaram a implantação da autogestão nos programas sociais, mas ao mesmo tempo em que isso é visto como um ato de autonomia, esse tipo de administração gera muitos desafios e controvérsias e é sempre colocado sob a ótica do clientelismo. Esse discurso, que chamo de tabu materialista, reproduz o jogo da direita, de sempre condenar qualquer tipo de engajamento político dos setores populares. Vê-se que, tanto na esquerda quanto na direita, a acusação de clientelismo funciona como um dispositivo de desmobilização ou desvalorização de qualquer movimento. Eu defendo a importância de que as ciências sociais não tenham medo de mostrar o funcionamento dos movimentos para, justamente, resistir a essas acusações de aparelhamento do Estado.
JC – Não existiria o risco da desmobilização dos movimentos populares quando eles chegam ao poder?
Julieta – Justamente uma das visões tidas pelo senso comum, também no meio sociológico, é que quando o movimento social - que faz protestos contra o Estado - começa a fazer parte do Estado, não tem mais autonomia e independência. Mas exatamente o que se vê no cotidiano, na micropolítica e na manifestação das ruas, não é só uma ação de protesto contra o Estado, mas também uma forma de estabelecer vínculos. A manifestação é uma forma de criar um diálogo com o governo. Em função da quantidade mobilizada, também se negociam quais são os acordos que serão realizados. O que quero dizer é que, muitas vezes, as classificações que fazemos não dão conta do que acontece de fato. Ver a mobilização como forma não só de ação, mas de dialogar com o Estado, é um desafio.
JC – Em âmbito global, isso aconteceria porque existe um temor da classe dominante, de que haja mais participação popular e que isso provoque contestações?
Julieta – Acho que sim. Por isso é que falo que os dispositivos de dominação têm a ver com medo, uma intenção de não empoderar setores e organizações populares.
JC – Mas, por outro lado, existe uma pressão maior dos setores populares pela participação.
Julieta – Sim, no sentido de haver a demanda de gerir, por exemplo, as organizações de desempregados ou outras, de gerir recursos, participar da gestão de políticas sociais, cestas básicas, refeitórios comunitários, seguro-desemprego, programas do tipo Bolsa Família. Mesmo que sejam assinados pelo governo por vias diretas, alguns deles precisam dessa organização territorial. Porém, essas demandas não são vistas como demandas de cidadania, políticas, mas de fato elas são, porque envolvem não só o intuito de suprir direitos básicos da população, mas também de participar da decisão de como esses recursos serão implementados e distribuídos... Então há, por um lado, uma ala que não quer empoderar e, do outro, é justamente a população reclamando muitas coisas que não são apresentadas como direitos de cidadania. O que está envolvida é uma participação da sociedade civil na tomada de decisões.
JC – Isso acontece de maneira global ou somente na América Latina?
Julieta – Acho que há um problema político importante nisso, porque, muitas vezes, você vê uma proliferação de instâncias de participação, vê políticas para promover a participação da sociedade civil, mas na prática também é importante ver no que isso consiste de fato, o que as pessoas estão demandando ou precisando. Muitas vezes, essa proliferação da participação importa um formato que não necessariamente é adequado a cada realidade local.
JC – Acredita que essa parte da população que demanda maior participação conseguirá provocar uma mudança de característica nas instâncias de poder?
Julieta – Nosso desafio é estudar como diferentes formas de relação política e participação reverberam umas nas outras. A pergunta é por que as estruturas existentes, de sindicatos e partidos, não deram conta dessa nova demanda, e aparecem os movimentos e, por sua vez, estes se transformam em associações e ONGs, e assim por diante. É importante entender como essa política se transforma e o que exprime a emergência de novas formas políticas inesperadas, como no caso das jornadas de junho. Como acontece essa erupção nas ruas? As pessoas que saem às ruas não estão engajadas em organizações ou, se estão, a participação não funcionou, pois as levou às ruas de novo? O fato é que essas formas não são excludentes, elas vão mudando segundo o contexto.
JC – Durante as jornadas de junho, as autoridades não sabiam lidar com a noção de horizontalidade, pois procuravam lideranças que não existiam. Isso também acontece na Argentina?
Julieta – Já no fim dos anos 1990, várias experiências de movimentos de desempregados se inspiraram no horinzontalismo, e acho que isso foi se expandindo a partir de 2001 na Argentina. O que ainda não houve é uma experiência de mobilização contínua com a qual o Estado tivesse que lidar, sem encontrar esses interlocutores. Mas acho que essa forma deliberativa, que a gente também encontra no Occupy e no Movimento dos Indignados, está se espalhando. O que acrescentaria é que, em toda essa história da participação, está pendente um debate sério do papel da violência e da repressão por parte do aparelho do Estado. Eu desconfio da palavra “participação”, porque nos dizem quando e como você pode exprimir sua opinião política. Existe um desafio de incorporar a análise da violência e a repressão que acontecem diariamente na América Latina em geral, onde não só se reprime quem está se manifestando, mas também os que não se manifestam.
JC – Quem mais sofre essa violência?
Julieta - Acho que há um regime econômico estabelecido, no qual as populações pobres representam o “outro” que, cada vez mais, torna-se inimigo dessas classes médias e altas, porque vivem cotidianamente a falta de possibilidades e posses. Há lugares em que o Estado não está presente, as ONGs não estão presentes, e que são territórios estratégicos para o desenvolvimento do modelo econômico dos países, como a Amazônia, onde algumas populações estão sendo literalmente mortas.
JC - Apesar do emprego da violência, observa-se um questionamento maior desse modus operandi pela sociedade civil?
Julieta - Acho que de alguma maneira sim. Isso está aparecendo e se coloca cada vez mais. O fato de colocarem isso na agenda já é um grande passo, mas acho que  ainda está em processo. Falamos de cidadãos que são vistos como de segunda categoria, na prática, e estamos falando também de áreas e recursos estratégicos. Esses povos da Amazônia são invisíveis não só na mídia, mas pelas pessoas em geral. Na Argentina, aconteceu a mesma coisa com o movimento camponês.
Perfil
Julieta Quirós é antropóloga social, formada pela Universidade de Buenos Aires, e pesquisadora vinculada ao Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Fez doutorado pelo programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Julieta desenvolveu suas pesquisas com a análise dos bairros suburbanos da Grande Buenos Aires e os movimentos de desempregados na região. A pesquisa foi sintetizada na publicação Cruzando la Sarmiento: una etnografia sobre piqueteros en la trama social del sur del Gran Buenos Aires. Julieta também faz estudos sobre o papel do clientelismo e a política popular na Argentina, com o estudo etnográfico e comparativo de politização e mobilização social.
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