O químico e geneticista Flavio Lewgoy teve uma destacada vida acadêmica na Ufrgs como professor e pesquisador. Também marcou época quando foi perito da Polícia Técnica do Rio Grande do Sul, período em que montou o laboratório e introduziu métodos inovadores na instituição. Mas, talvez, sua maior contribuição tenha sido como ecologista. Um dos pioneiros no Estado, atuou ao lado de José Lutzenberger na Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), que na semana passada completou 40 anos. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Lewgoy fala da militância, que ele mantém até hoje, diz que Lutzenberger deixou sucessores e avalia o tratamento dos governos à pauta ecológica. Ele lembra, ainda, de conquistas do movimento em plena ditadura e conta que, apesar do espaço obtido na imprensa na época, ativistas eram vigiados pelo regime militar.
Jornal do Comércio - Como está sua militância na ecologia?
Flavio Lewgoy - Tenho ainda meu ativismo, que prezo muito. Sou membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) e da Agapan, da qual continuo sendo conselheiro. Fui duas vezes presidente da Agapan e antes fui vice-presidente do Lutzenberger, em 1982. Mas naquela época eu era sempre presidente em exercício, Lutz estava com o pé nos aviões, indo dar palestras na Alemanha, nos Estados Unidos, era um personagem mundial. Era amigo do príncipe Charles, conhecia os grandes vultos mundiais. Um personagem extraordinário, que merecia a biografia que foi feita dele - o livro Sinfonia Inacabada, da Lilian Dreyer. E muitas das coisas que ele previa, infelizmente, estão acontecendo.
JC - O quê, por exemplo?
Lewgoy - Os transtornos climáticos devido à poluição, o grande acréscimo de acúmulo dos gases do efeito estufa. Muitas coisas dependem das atividades industriais e ainda não há substituto para as energias derivadas da queima do combustível fóssil. Continuamos com ônibus, carros, motos, caminhões poluindo a atmosfera das nossas cidades e lotando emergências de hospitais - não tenha dúvida de que a causa dos índices de doenças graves, mortalidade é a poluição da atmosfera. Olha, se exercitar em Porto Alegre é um risco para a saúde, porque a pessoa vai inalar a atmosfera poluída e com força; vai inalar particulado, gases tóxicos. Qual é a alternativa? Fazer exercício em um lugar fechado.
JC - Lutzenberger faleceu há quase uma década...
Lewgoy - E tem sucessores. Não me incluo porque já estou com 85 anos. Mas tem pessoas extraordinárias fazendo o que ele fazia. Por exemplo, o professor Paulo Brack, da Ufrgs, que atua aqui, atua em Brasília. Se houvesse um sucessor do Lutz, o professor Brack seria um dos candidatos. Mas tem muitas outras pessoas, os próprios agentes dos órgãos ambientais, que trabalham bastante e, às vezes, remando contra a maré. Tem gente nas ONGs, na universidade. O Rio Grande do Sul felizmente tem pessoas que continuam o trabalho do Lutzenberger, da Agapan. E tem outras entidades. A ONG InGá (Instituto Gaúcho de Estados Ambientais), a MiraSerra. E a ADFG (Associação Democrática Feminina Gaúcha), da Magda Renner, que se tornou (Núcleo) Amigos da Terra.
JC - E a criação da Agapan, há 40 anos?
Lewgoy - Foi uma época interessante, a gente tinha muito o que batalhar. E ainda tem. Mas naquela época, achávamos que se conseguíssemos institucionalizar a preservação e o combate à poluição, iríamos quase que resolver o problema. Apesar de o Luzenberger ter uma frase famosa: "As nossas vitórias são provisórias, mas as nossas derrotas são definitivas". Uma espécie extinta jamais será recuperada. Se um ecossistema for devastado, não tem como recuperá-lo. Mas o Rio Grande do Sul pode se orgulhar desse legado (da Agapan). Embora, não tanto por outras coisas...
JC - Quais?
Lewgoy - Por exemplo, do bioma pampa - que é único no Brasil, só existe no Rio Grande do Sul - já resta menos que a metade, atividades da agropecuária o afetaram. Isso sem falar nas araucárias, que foram devastadas ainda na década de 1950 e 1960, a maior floresta de araucárias que existia. Gostaria de ver o movimento nativista se integrar na luta para conservar o que resta do pampa e se unir ao movimento ecológico. Eles se interessam por danças, tradições, cantos, que também são importantes porque compõem a cultura, mas o meio ambiente onde andaram, cavalgaram e lutaram os farrapos, os animais que eles conheceram, disso pouca coisa resta. Deveria ser objeto de luta dos nativistas.
JC - E as conquistas da Agapan? O senhor foi protagonista, por exemplo, da legislação sobre agrotóxicos.
Lewgoy - A Lei dos Agrotóxicos no Rio Grande do Sul foi o começo. Não existia no Brasil e nem no mundo. Começamos nas décadas de 1960 e 1970 - e o pessoal da ADFG nos ajudou bastante, porque fizeram aquela campanha dos alimentos sem veneno, na qual a Magda foi fantástica... Mas Lutzenberger também era uma das molas propulsoras, porque entendia por dentro a indústria de agrotóxicos. Tinha sido executivo da Basf e ganhava muito dinheiro lá. Perdeu dezenas de milhares de dólares quando saiu. Mas voltou ao País.
JC - O senhor acompanhou a volta dele a Porto Alegre?
Lewgoy - Éramos moradores do mesmo bairro, o Bom Fim. Comecei a ver a atuação dele e pensei: "Bah, esses caras estão sendo apontados de folclóricos, mas estão certos". E fui lá. Eu tinha lido um livro que me influenciou muito, uma tradução para o espanhol de uma obra soviética, "A Nona Cifra Decimal", sobre a influência de materiais que existem numa quantidade microscópica, mas que são essenciais à sobrevivência. E comecei a ver a composição do nosso carvão, que estava cheio desses elementos venenosos. Resolvi intervir, porque estava se projetando o uso do carvão em grande escala. "Vou me juntar com esse pessoal, posso contribuir". No início não queria me meter com a questão do agrotóxico, porque achava que já tinha o suficiente com a luta contra o carvão. Mas depois me convenci que a saúde das pessoas, a contaminação pela alimentação merecia e me engajei com o Lutz.
JC - E o movimento ecológico contestava o governo, mas obtinha grande espaço na mídia, mesmo na ditadura militar.
Lewgoy - Foi incrível, porque a imprensa sofria com a censura. E, por algum motivo, a ditadura não via grande perigo subversivo no movimento ambientalista. Achavam que eram uns folclóricos, apesar de nos vigiarem de perto.
JC - Como?
Lewgoy - Todas as reuniões da Agapan tinham sempre a presença de um agente do SNI (Serviço Nacional de Informações). Era um cidadão de cara fechada, não falava, chamado Hércules. Depois, na minha atividade de perito químico (na Polícia Técnica), apareceu um tenente, supostamente para aprender. Mas eu vi que ele estava me vigiando. Tenente Cabral era o nome dele. Quando eu queria falar a sós com alguém, por exemplo, queria entrevistar o pessoal que tinha alguma ligação com um incêndio, ele fazia questão de vir junto e ficar escutando. O tenente Cabral era mandado pelo SNI para me controlar. Então, eles acompanhavam o movimento ambiental. Lutz até foi chamado uma vez para prestar esclarecimentos.
JC - No episódio do estudante que subiu na árvore, em 1975, e impediu o corte? Alguns foram presos naquele protesto...
Lewgoy - O caso do (estudante Carlos) Dayrell foi incrível, teve repercussão mundial. E até hoje as árvores estão ali na (avenida) João Pessoa, na frente da Faculdade de Direito. Mas na campanha dos agrotóxicos, a imprensa também nos ajudou bastante.
JC - Retomando essa questão, o senhor dizia que a lei do Rio Grande foi pioneira...
Lewgoy - Nos ajudou o então secretário da Saúde, Germano Bonow, que publicou uma portaria que restringia a utilização de organoclorados, principalmente DDT. Aí, alguém perguntou para ele se não era inconstitucional essa portaria. Ele teve uma resposta histórica: "Inconstitucional é as pessoas terem agrotóxicos na água que bebem". E depois surgiu o projeto da lei estadual dos agrotóxicos, que teve um impacto incrível. Todas as multinacionais se manifestaram, interpelaram o governo brasileiro. Mas a lei acabou sendo promulgada em outros estados. Primeiro, definia o que era um agrotóxico. Segundo, proibição de agrotóxicos que não seriam permitidos nos países de origem.
JC - Em nível nacional?
Lewgoy - Posteriormente, o então presidente (José) Sarney nomeou uma comissão para redigir a lei nacional sobre os agrotóxicos. E eu fui parte da comissão, que tinha lobby, o pessoal das grandes cooperativas de São Paulo, até pessoas da indústria de produtos veterinários e fazendeiros do Pantanal, que não sabiam exatamente como essa lei iria atingi-los. Então, tivemos que fazer uma articulação política. Fui conversar com cada um deles e consegui que eles passassem para o nosso lado - os representantes dos veterinários e os dos fazendeiros do Pantanal. Com isso, ganhamos a maioria.
JC - E hoje, qual a situação?
Lewgoy - Reverteram utilizando o lobby no Congresso. Por exemplo, mudaram a classificação dos agrotóxicos: muitos que eram de alto risco passaram a ser praticamente sem risco. Não é fácil...
JC - Como o senhor avalia a retomada das usinas a carvão?
Lewgoy - É um despropósito essa quantidade imensa de carvão que vai ser queimado. Apesar de alegarem que tem tratamento e que vai poluir menos, na verdade vai poluir mais. Dizem que minimizariam o impacto do carvão gaúcho com essas novas tecnologias, mas esse "minimizaria" é muito relativo. Tem coisas que nenhuma tecnologia consegue. Por exemplo, a emissão de cinza fina, "fly ash" como chamam. Muitas vezes eu fiz esse cálculo. Se 99,9% do que é emitido pela queima fosse retido, mesmo assim a quantidade de carvão queimado é tamanha e o resíduo é tamanho que ainda assim centenas de milhares de toneladas de fly ash seriam liberadas na atmosfera. Sem falar no mercúrio metálico, que todos os combustíveis fósseis têm. E o nosso carvão tem um bocado de urânio e tório nas suas cinzas. Estamos estragando a máquina do clima, que se não era perfeita, era favorável. Então, abandonar a queima de combustíveis fósseis é um imperativo.
JC - Como o senhor avalia a relação dos governos com o meio ambiente? Começando pelo prefeito José Fortunati (PDT).
Lewgoy - Tem a questão do Plano Diretor, das construções na orla do Guaíba e ainda tem mansões em ilhas no Delta do Jacuí, que é um parque. Então, em nível municipal é mais essa questão imobiliária, os espigões...
JC - E o início do governo Tarso Genro (PT)?
Lewgoy - Preocupa muito os ambientalistas a tentativa de unificar os órgãos ambientais, tornar Fepam, Fundação Zoobotânica, tudo um órgão só. Isso não é bom. E se fala muito em flexibilizar o licenciamento. Isso quer dizer facilitar a vida dos empreendedores. Existe muita pressão para agilizar os investimentos das empresas. Para eles, as exigências a serem cumpridas são sempre burocracia. Sempre razões econômicas. A Secretaria do Meio Ambiente (Sema), apesar de eu admirar a Jussara (Cony, PCdoB, atual titular)... Mas a coisa vem de cima. Ainda atribuem pouca importância à Secretaria do Meio Ambiente. E o Consema precisa ser reformado. O governo aprova tudo o que quer, porque tem maioria. Temos quatro ONGs do total de 18 votos no Consema.
JC - E no plano federal?
Lewgoy - Temos o novo Código Florestal, que é o lobby ruralista. Querem aumentar as áreas de uso das propriedades rurais e diminuir as áreas de preservação. Não acho que a (presidente) Dilma (Rousseff, PT) seja má intencionada, mas quero ver ação, não quero saber de intenção. E Dilma nunca primou como ambientalista, é uma pessoa com um passado desenvolvimentista. Mas acho que ela sabe da importância do meio ambiente e o que está acontecendo na questão climática mundial. Então, o governo precisa dar prioridade a isso.
Perfil
Flavio Lewgoy, 85 anos, é natural de Porto Alegre. Formou-se em Química Industrial pela Ufrgs, em 1948. Ganhou uma bolsa da Fundação Rockefeller e estudou por um ano na Genetic Foundation da Universidade de Austin, no Texas (EUA), onde aprendeu técnicas de laboratório. Fez pós-graduação em Genética na Ufrgs e foi professor nesta área da universidade por décadas. Criou a disciplina de Ecogenética, que não existia no Brasil e da qual foi titular até se aposentar em 1992. Introduziu técnicas de bioquímica no laboratório da universidade. Paralelamente, foi perito químico da Polícia Técnica do Rio Grande do Sul. Ingressou em 1951, após um incêndio que atingiu equipamentos e depois organizou o novo laboratório da polícia. Ingressou na Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) em 1973 e milita na ecologia até hoje. Foi vice-presiente em uma das gestões de José Lutzenberger e duas vezes presidente da entidade. Suas maiores contribuições foram na regulamentação dos agrotóxicos, em pesquisas sobre malefícios do carvão e de danos de substâncias ecotóxicas.