Entre os muitos erros cometidos pelos Estados Unidos na Guerra do Iraque, cujo início ocorreu há 20 anos, o desmantelamento do Exército iraquiano e o processo de desbaathificação do governo estão entre os maiores. Essas políticas equivocadas criaram um contingente de mais de 500 mil iraquianos desempregados, armados e marginalizados, que viriam a alimentar os movimentos de insurgência que deram origem ao Estado Islâmico anos depois.
Em maio de 2003, dois meses após a invasão norte-americana, o governo provisório instalado iniciou expurgos no Iraque. Foram demitidos todos os funcionários que eram membros do alto ou do médio escalão ou tinham alguma ligação com o partido Baath do Iraque, legenda socialista secular árabe que estava no poder desde 1968 e foi banida pelos norte-americanos. O ditador Saddam Hussein, do Baath, liderava o país desde 1979.
Durante o regime de Saddam, quase todos os funcionários públicos tinham de se filiar ao partido Baath. E nos expurgos, acabaram expulsos 15 mil professores, milhares de médicos, e outros servidores que não tinham nenhuma atividade política.
Saddam era da vertente sunita do islamismo, que são minoria no país, com 35% da população, mas ocupava os principais postos de poder e reprimiam os xiitas, que são cerca de 60%. Os curdos, que se concentram no norte do país, e são, na grande maioria, sunitas, também eram alvo frequente de Saddam. Em 1988, o ditador lançou um ataque com armas químicas contra os curdos, que causou quase 5.000 mortes.
Com a desbaathificação, além de perderem seus empregos, entre 50 mil e 100 mil iraquianos, na maioria sunitas como Saddam, ficaram banidos da vida pública. Na época, os norte-americanos compararam a ação à desnazificação na Alemanha pós-guerra e ressaltaram a necessidade de remover do governo todas as pessoas alinhadas a Saddam.
Pouco depois, Paul Bremer, o administrador provisório no país, determinou a dissolução do Exército do Iraque, o que deixou sem emprego 500 mil iraquianos, armados e treinados, em grande parte sunitas. O plano de formar rapidamente um novo Exército "dessaddamizado" fracassou, e o Iraque mergulhou no caos, com saques e vandalismo.
A justificativa para a dissolução do Exército e a desbaathificação era de que não seria possível governar com potenciais "traidores" e que os expurgos garantiriam que os apoiadores de Saddam, cujo governo foi marcado por assassinatos e violações de direitos humanos, jamais voltariam ao poder. O desemprego no país, que já era alto por causa da instabilidade da invasão, bateu em 40%, e as ações do governo provisório exacerbaram os conflitos sectários entre xiitas e sunitas.
"Os EUA invadiram o Iraque e prometeram levar ao país a democracia e a estabilidade econômica. Após a ocupação, houve aumento do desemprego, da pobreza, da insegurança, e o Iraque ficou muito mais próximo do Irã, algo que os norte-americanos não queriam", diz Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, que pesquisou a reconstrução do Iraque.
A perseguição a sunitas e a corrupção pioraram com a entrada do ex-primeiro ministro Nouri al Maliki, xiita, que governou inicialmente de 2006 a 2014. A massa de sunitas desempregados, ressentidos com a perseguição do novo governo, abasteceu a insurgência iraquiana contra os norte-americanos e o governo xiita. E deu origem à Al-Qaeda no Iraque e à sua ramificação poderosa, o Estado Islâmico.
Nas palavras do então secretário de Estado do governo George W. Bush, Colin Powell, esses soldados desempregados eram "alvos privilegiados de recrutamento da insurgência". Pouco depois, eclodiu o escândalo das torturas na prisão de Abu Ghraib, com divulgação de fotos de detentos iraquianos nus, sendo humilhados por soldados norte-americanos.
Para completar, as tropas dos EUA prenderam milhares de iraquianos, muitos deles sem nenhum envolvimento com a insurgência, na prisão de Camp Bucca, no sul do país. Lá, detentos jihadistas se empenhavam na radicalização de outros presos, e o local se transformou em um criadouro de extremistas, de onde se planejavam vários atentados.
O caos na segurança, o desemprego, a tortura e a revolta levaram parte dos sunitas a se unirem a grupos como o liderado por Abu Musab al-Zarqawi, que formou a Al-Qaeda do Iraque em 2004 para combater as tropas norte-americanas e seus aliados. A Al-Qaeda no Iraque foi a precursora do Estado islâmico, facção terrorista que chegou a ocupar uma área do tamanho da Itália no Iraque e na Síria.
Um dos detentos em Camp Bucca foi Abu Bakr al-Baghdadi. Baghdadi uniu-se à Al-Qaeda do Iraque após a invasão dos EUA. Foi preso, radicalizou-se ainda mais na prisão e, depois de solto, liderou o Estado Islâmico por anos. Muitos dos comandantes do EI haviam sido oficiais graduados no Exército de Saddam.
"Todas as decisões dos neoconservadores norte-americanos na guerra do Iraque, da invasão sem motivo real à ideia de que iriam transformar o país em uma democracia pró-EUA, foram equivocadas", diz Muhammad Muqtedar Khan, professor de Relações Internacionais da Universidade de Delaware. "Eles demitiram o Exército iraquiano inteiro e depois passaram anos combatendo essas mesmas pessoas, que tinham virado insurgentes."
O episódio tem sido apontado como alerta para governos que tentam expurgar radicais do serviço público e forças de segurança - o risco é alimentar uma insurgência. Situações semelhantes ocorreram no Egito (que expurgou do governo membros da Irmandade Muçulmana) e Tunísia (expulsou apoiadores do ditador Zine al-Abidine Ben Ali após ele ser deposto na Primavera Árabe). No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que iria desbolsonarizar as forças de segurança e o governo.
FOLHAPRESS


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