As ruas de Mianmar vivenciaram nesta quarta-feira (3) seu dia mais sangrento desde o golpe militar que pôs fim a transição democrática no país. Ao menos 38 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas depois que a polícia abriu fogo contra manifestantes que protestavam contra os militares. Os números foram confirmados pela enviada especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o país, Christine Schraner Burgene, que não deu detalhes sobre as vítimas ou onde as mortes aconteceram.
Polícia atirou sem aviso prévio, segundo testemunhas. Foto: STR/AFP/JC
Segundo relatos de testemunhas e da reprimida imprensa local, a polícia atirou sem aviso prévio e parecia mais determinada do que nunca em encerrar as manifestações contra a junta militar. "Eles marcharam em nossa direção e dispararam gás lacrimogêneo. Marcharam novamente e usaram granadas de atordoamento. Aí eles nos atingiram com canhões de água e, sem nenhum aviso para dispersar, dispararam suas armas", contou Si Thu Maung, um dos líderes dos protestos na cidade de Myingyan, à agência de notícias Reuters.
Um adolescente foi morto em Myingyan, mas o maior número de vítimas desta quarta foi registrado em Rangoon, a maior cidade do país, onde ao menos oito pessoas morreram em decorrência da repressão policial. "É horrível, é um massacre. Nenhuma palavra pode descrever a situação e nossos sentimentos", disse a ativista Thinzar Shunlei Yi.
Em Monywa, médicos e socorristas confirmaram a morte de mais seis pessoas. De acordo com levantamento da imprensa local, ao menos 30 ficaram feridas depois de terem sido alvos de disparos dos policiais na cidade. Outras mortes foram confirmadas em Mandalay e em Hpakant.
"O país é como a Praça Tiananmen na maioria de suas grandes cidades", disse o arcebispo de Rangoon, Charles Maung Bo, em referência ao massacre de estudantes que protestavam em Pequim em 1989.
De acordo com a Associação de Proteção a Presos Políticos de Mianmar, já passam de 1.300 as pessoas detidas, incluindo 34 jornalistas. Destes, 19 ainda estão presos e seis foram acusados de violar uma lei de ordem pública recentemente alterada pela junta militar.
Segundo o advogado de Thein Zaw, um fotógrafo da agência Associated Press detido em Rangoon no último sábado (27), enquanto cobria um protesto, a lei modificada agora abrange qualquer pessoa que "cause medo na população, divulgue informações falsas ou incite a desobediência e a deslealdade" às autoridades. As penas podem chegar a três anos de prisão.
Thein Zaw, fotógrafo da agência Associated Press detido em Rangoon, no último sábado (27). Foto: STR/AFP/JC
As forças de segurança também detiveram cerca de 300 manifestantes em Rangoon nesta quarta-feira. Um vídeo publicado nas redes sociais pela agência de notícias Myanmar Now mostra filas de homens, com as mãos na cabeça, entrando em caminhões do Exército enquanto policiais e soldados montam guarda. "Tristes notícias de confrontos sangrentos e perda de vidas. Apelo às autoridades envolvidas para que o diálogo prevaleça sobre a repressão", disse o Papa Francisco, em uma publicação no Twitter nesta quarta-feira.
Mais cedo, o líder católico repetiu um apelo pela paz, pedindo à comunidade internacional "que as esperanças do povo de Mianmar não sejam sufocadas pela violência". Ao fim de sua audiência geral, Francisco também se dirigiu diretamente aos militares que agora comandam o país pedindo "que o diálogo prevaleça sobre a repressão e a harmonia sobre a discórdia" e afirmando que os jovens mianmarenses merecem um futuro "onde o ódio e a injustiça deem lugar ao encontro e à reconciliação".
Os pedidos do pontífice se juntaram aos de diversas lideranças mundiais que têm feito declarações críticas aos militares em Mianmar. Antes limitada a tratar o golpe de Estado como um assunto interno dos mianmarenses, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) reuniu representantes de seus países-membros para discutir a crise, mas não conseguiu chegar a consensos e avanços concretos.
Embora o discurso contra a violência tenha sido reiterado, apenas quatro dos dez membros, por exemplo, pediram a
libertação de Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado de Mianmar deposta em 1º de fevereiro - uma das principais demandas dos manifestantes que têm ido às ruas do país diariamente.