O diagnóstico veio por acaso, em 2009. Marcelo Ribeiro, hoje com 52 anos, havia ido doar sangue para um amigo quando recebeu a notícia de que carregava o vírus da hepatite C. "Eu nem sabia o que era direito. Nunca tive sintoma nenhum", lembra. Dez anos depois, já com cirrose avançada, os sinais começaram a aparecer: inchaço, cansaço, dor. "O fígado estava comprometido, e agora convivo com o risco de desenvolver um câncer", relata.
A história de Ribeiro, morador de Santa Maria, é mais comum do que se imagina. As hepatites virais, especialmente as dos tipos B e C, podem evoluir silenciosamente por décadas, causando danos irreversíveis ao fígado - como a cirrose - e, em muitos casos, levando ao desenvolvimento do carcinoma hepatocelular, o tipo mais comum de câncer de fígado.
"Existe uma progressão clara: a hepatite crônica leva à inflamação prolongada, que pode gerar fibrose hepática e, nos estágios mais avançados, cirrose. E a cirrose é o principal fator de risco para o câncer de fígado", explica o presidente da Associação Gaúcha para Estudos do Fígado, entidade parceira da Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs), Marcos Mucenic. "Quem tem cirrose e não conseguiu curar ou controlar o vírus da hepatite tem um risco de cerca de 5% ao ano de desenvolver o câncer", acrescenta.
No Brasil, a hepatite C é a principal causa de câncer hepático. Já no mundo, o destaque é para a hepatite B, com maior prevalência em países asiáticos, onde a infecção costuma ser transmitida de mãe para filho. No Rio Grande do Sul, os números chamam atenção: apenas em 2023, foram confirmados 1.074 casos de hepatite B e 2.348 de hepatite C. O Estado ocupa o 3º e o 2º lugar no ranking nacional de casos, respectivamente - e tem uma das maiores taxas de detecção do país, segundo o Boletim Epidemiológico 2024.
A faixa etária mais afetada vai dos 30 aos 59 anos, o que reforça a hipótese de infecções contraídas no passado, antes da ampliação da testagem e dos programas de prevenção. "O problema é que o fígado é um órgão silencioso. Os sintomas só aparecem quando a doença já está avançada. Por isso, o diagnóstico precoce é fundamental", reforça o médico.
Apesar da gravidade, há boas notícias. O tratamento para hepatite C é hoje altamente eficaz, gratuito pelo SUS, e feito com antivirais de ação direta ( medicamentos orais que curam praticamente todos os pacientes em até três meses). Já no caso da hepatite B, o vírus não pode ser eliminado, mas pode ser controlado com remédios também fornecidos pelo sistema público.
Prevenção é o melhor caminho para evitar o pior
O ideal, contudo, é prevenir. A hepatite B pode ser evitada com a vacina disponível no SUS. Para os bebês, a recomendação é iniciar a imunização ainda nas primeiras 12 horas após o nascimento. A proteção é crucial: "A infecção crônica por hepatite B pode causar câncer de fígado até mesmo na ausência de cirrose", alerta o boletim nacional do Ministério da Saúde.
Além disso, a vacinação da mãe e do recém-nascido é uma das principais formas de evitar a transmissão vertical, durante a gestação, parto ou amamentação. Ainda assim, muitos adultos nunca se vacinaram, ou não completaram o esquema de três doses. "Há uma falsa sensação de segurança. Muita gente acha que, se a mãe foi testada, o bebê não precisa da vacina. Isso não é verdade", diz Mucenic.
Ribeiro, hoje estável, vive sob constante vigilância médica. "Cortei o álcool, sigo dieta, tomo remédio. Mas todo exame me deixa ansioso. Tenho medo do câncer, é um fantasma que está sempre por perto", diz. A cura da hepatite não apagou as marcas deixadas pela infecção. "Se eu tivesse descoberto antes, talvez não tivesse chegado nesse ponto."
O caso dele ilustra um dos principais desafios no combate às hepatites: a testagem. A recomendação é que pessoas com mais de 40 anos façam exames de rotina, especialmente se já fizeram transfusões de sangue antes dos anos 1990, utilizaram drogas injetáveis ou inaladas, passaram por hemodiálise ou se submeteram a procedimentos com instrumentos cortantes sem esterilização. Ainda, o SUS oferece testes rápidos para hepatite B e C, que podem fornecer resultados em até 30 minutos.
Neste 28 de julho, Dia Mundial de Luta Contra as Hepatites Virais, o alerta se renova. Embora o Rio Grande do Sul apresente tendência de queda nas notificações, sobretudo após a introdução dos antivirais e da vacina contra hepatite A no calendário infantil, o Estado ainda enfrenta uma alta carga de hepatites B e C. As maiores taxas estão em regiões como Porto Alegre, Serra, Sul e Fronteira Oeste, e entre grupos vulneráveis, como usuários de drogas, detentos e profissionais do sexo.