Nesta quarta-feira (21), celebra-se o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento. A data foi instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2002, após a aprovação da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Depois de 23 anos, o diálogo intercultural é um tópico urgente nas mais diversas esferas sociais, incluindo no ambiente empresarial.
Pensando nisso, o Jornal do Comércio conversou com a psicóloga Maria Beatriz Rodrigues, que é professora da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atua no Departamento de Ciências da Formação da Università Degli Studi di Macerata, na Itália.
Com uma trajetória que inclui até consultoria para a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a docente, que tem PhD em Sociologia, destaca os desafios e avanços para a consolidação de uma sociedade efetivamente plural.
Jornal do Comércio - Antes de mais nada, o que é diversidade cultural e qual é a sua importância?
Maria Beatriz Rodrigues - A diversidade tem alguns conceitos muito interessantes, que tratam muito da ideia de como um percebe o outro. Afinal, diversidade não é só dizer “ah, ele é diferente”, até porque todos somos diferentes. É aí que entram os marcadores sociais de diferença, que compreendem aqueles grupos que, por alguma razão, têm menos acesso socialmente à bens, à ascensão, à educação, à saúde, ao trabalho. Um marcador social de diferença muito importante no Brasil, por exemplo, é a raça/cor, mesmo sabendo que raça é um conceito complicado. Sabemos que os pretos e pardos, usando a denominação do IBGE, não são minorias, que representam em torno de 50% ou mais da população, mas são minorizados, porque grande parte desse grupo pertence a camadas econômicas sociais mais baixas na nossa hierarquia brasileira.
Isso é diversidade. A partir daquilo que a sociedade hierarquiza como quem tem mais ou menos poder, mais ou menos acesso. Assim como eu acho que a gente também poderia pensar a diversidade no sentido de que as pessoas pudessem expressar aquilo que elas efetivamente são. Ou seja, seria essa valorização de quem as pessoas são, sem precisarem ser inferiorizadas pelas suas características. Sejam elas fenotípicas ou de expressão de afeto, de sexualidade.
JC - Entre as tuas principais áreas de interesse constam “gestão de pessoas” e “gestão da diversidade”. Como esses dois eixos se conectam na teoria e na prática?
Maria Beatriz - Olha, se fala muito em diversidade nas empresas. Muitas vezes, ligada a uma questão de imagem organizacional, né? Então, eu diria que nos últimos dez anos, principalmente, começou essa discussão de diversidade e inclusão de pessoas. A princípio uma coisa um pouco espontânea, mas depois muito baseada em legislação.
Nesse caso, a gente pode falar de legislação de pessoas com deficiência em empresas privadas. Nós temos a lei conhecida como lei de cotas, que destina um percentual de pessoas com deficiência que devem ser empregadas a partir do número de funcionários da empresa. Começa com 2% e vai até 5%. Essa lei foi revista e aprofundada em 2015. Hoje, ela se amplia a lugares públicos, acessos, direitos civis. Antes, empresas com menos de 100 trabalhadores não entravam nas cotas. Agora, elas precisam admitir pelo menos uma pessoa com deficiência.
Como existe também no serviço público, né? Em concursos, no vestibular… há reserva de vagas para pessoas negras. Teve até um concurso agora recentemente que reservou vagas para pessoas trans, né? Me parece que nem teve candidato, não sei se é pela novidade ou porque a gente sabe que essas pessoas, pelas dificuldades de acesso, também têm dificuldade de preencher os requisitos dos concursos. Isso está mudando, felizmente, mas de uma forma ainda lenta, porque são pessoas que recebem muitos preconceitos e violências.
A discussão sobre diversidade é bem mais ampla hoje em dia. Todo esse discurso que está circulando sobre o papel da diversidade, principalmente nos Estados Unidos, com o governo Trump, que está querendo proibir de produzirem e propagarem esse tipo de informação. Isso está refletindo em outros lugares. Muitas políticas, que antes as empresas faziam questão de colocar aí na sua pauta, talvez estejam sofrendo algum tipo de prejuízo com relação a essa nova onda.
Então, essa é uma discussão super importante. Diversidade não é algo que tu dá para as pessoas. Na verdade, tu só potencializa o empoderamento desses grupos. Então, essas pessoas têm espaços maiores agora. Não é o ideal, mas também politiza e faz com que essas pessoas possam ter voz nessas discussões.
JC - Essas leis já são suficientes ou ainda há desafios para tornar o universo das empresas e negócios realmente diverso?
Maria Beatriz - As legislações são fundamentais. Sem elas nós não teríamos nem metade da discussão que nós temos hoje. Quando existem esses projetos, eles precisam ser implementados de uma forma radical. Do contrário, se a gente fica esperando, não acontece na prática.
E, as cotas ou ações afirmativas deveriam ser temporárias. No sentido de que a sociedade deveria, a partir delas, melhorar a sua inclusão. Assim, no futuro, isso talvez pudesse ser substituído por uma organização da sociedade em si, né? Mas, as cotas, na nossa realidade, vão ser necessárias por muito tempo, porque as desigualdades são muito grandes. Eu vejo isso na universidade, nós mudamos muito o nosso público de alunos a partir das ações afirmativas.
Nas empresas, isso também tem acontecido, porque as cotas são obrigatórias. Principalmente, cotas de pessoas com deficiência. No momento em que o trabalhador com deficiência, por alguma razão, sai do emprego, essa cota precisa ser preenchida imediatamente, sob pena da organização ser multada.
Entretanto, as pessoas com deficiência que são admitidas nas empresas por cota ficam durante muito tempo nos mesmos cargos, não são muitas vezes vistas como pessoas com possibilidade de desenvolvimento. Isso é um problema bem grande. Porque não adianta ficar só na porta de entrada. Teria que ter uma trajetória qualitativa, vamos dizer assim, considerando essas pessoas potenciais contribuições para as organizações.
Maria Beatriz - A data reforça justamente esse papel essencial da diversidade para alcançar o desenvolvimento. Trazendo esse conceito para o ambiente empresarial, quais são os benefícios da pluralidade para as empresas?
Maria Beatriz - Olha, tem muitas teorias com relação a isso, algumas mais prescritivas, que dizem “ah, as equipes multiculturais e interculturais aumentam os retornos financeiros das empresas”. Eu não sigo por essa área. Eu falo muito das relações sociais mesmo, né? É importante as pessoas conviverem com a diversidade. É importante que elas percebam, aceitem e respeitem as diferentes formas de ser e de existir. A sociedade ganha muito com isso, assim como as organizações, porque a gente sai dessa visão restrita e autoritária de achar que existe um grupo predominante.
As vantagens, portanto, são inúmeras em várias áreas de atuação, quando entendemos que as pessoas são diversas e que elas contribuem com o seu jeito de ser, com o seu modo de viver para a sociedade como um todo. Talvez essa pluralidade até traga benefícios também financeiros, monetários, seja lá como for. Mas, acima de tudo, ela traz esse reconhecimento e essa inclusão das diferentes etnias, diferentes pessoas.
JC - Como avalias presença da diversidade cultural no Brasil?
Maria Beatriz - Tem uma caminhada longa e muita luta com relação a isso. Já aconteceram muitas conquistas, não tem como negar, né? Se a gente pensar na nossa sociedade há um tempo atrás, existe hoje um início de um maior respeito, uma maior reflexão. Mas, a gente sabe que nosso país tem uma desigualdade imensa. Eu associo muito isso aos marcadores sociais. Eu acho que o Brasil avançou e eu tenho a esperança de que avance ainda mais, né? Mas, temos questões estruturais que precisam ser endereçadas urgentemente.
JC - Diante de tudo isso, o que, de fato, deve ser comemorado neste Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento?
Maria Beatriz - Eu acredito no diálogo e no desenvolvimento. Acho que a diversidade tem muito a nos ensinar sobre isso, né? Eu acho que celebrar é sempre uma coisa boa, porque marca a posição dessa discussão, principalmente partindo de instituições supranacionais.
Afinal, essa é uma discussão que permeia todo o mundo e que precisa ser trazida para todos os cenários, seja no âmbito acadêmico, nas empresas ou na sociedade em geral. A gente sabe que um dia só não vai fazer diferença. Mas, ele faz diferença no sentido de que marca essa pauta como uma pauta importante e demonstra que ela precisa ser apropriada nas diferentes esferas sociais.