Incluir pessoas com diferentes dificuldades através de produtos que possibilitem experiências mais confortáveis está no radar de grandes empresas. Cozinhar a própria comida e saboreá-la, por exemplo, pode parecer uma tarefa simples, mas para pessoas com condições que alteram o movimento dos braços e das mãos, no entanto, ações como essas podem ser desafiadoras. É o caso de indivíduos que convivem com a Doença de Parkinson, condição que afeta o sistema nervoso central e impacta principalmente o sistema motor, responsável por controlar os movimentos corporais.
No Brasil, segundo o Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), cerca de 535 mil pessoas com 50 anos ou mais vivem com a doença. A enfermidade, marcada por tremores e rigidez muscular, pode trazer dificuldades para momentos da rotina, como a hora das refeições.
Diante dessa demanda ainda pouco explorada, a Tramontina lançou a linha de talheres assistivos ForAll. Desenvolvida em parceria com o escritório ZON Design e com pesquisadores da UFCSPA, a coleção foi construída a partir de testes com usuários e avaliações no Laboratório de Análise de Movimento e Reabilitação da universidade.
Diante dessa demanda ainda pouco explorada, a Tramontina lançou a linha de talheres assistivos ForAll. Desenvolvida em parceria com o escritório ZON Design e com pesquisadores da UFCSPA, a coleção foi construída a partir de testes com usuários e avaliações no Laboratório de Análise de Movimento e Reabilitação da universidade.
A linha é composta por faca, colher e garfo que vêm dentro de um estojo pensado para que o usuário possa levar os talheres a qualquer lugar. As peças são “discretas e elegantes”, segundo Marcos Grespan, diretor comercial da Tramontina. “É um produto que alia tecnologia inclusiva, qualidade e linguagem contemporânea, permitindo que pessoas com limitações de movimento retomem a refeição como um momento de prazer, convivência e pertencimento”, destaca Grespan.
Ao longo do processo de desenvolvimento, foram criados cerca de 150 protótipos em um trabalho conjunto com pacientes e especialistas da área da saúde. Segundo Grespan, os testes mostraram que as dificuldades enfrentadas durante a alimentação iam além da execução do movimento. “A escuta ativa permitiu mapear as principais dificuldades enfrentadas durante a alimentação e revelou que o desafio não era apenas funcional, mas também emocional”, afirma. “Muitos participantes relataram desconforto com utensílios estigmatizantes, o que levou a equipe a rever formas, proporções e acabamento, buscando preservar o gesto natural de um talher convencional”, comenta o diretor.
A partir desse retorno, a ergonomia passou a orientar as decisões do projeto. Os talheres receberam cabos mais espessos, com textura que aumenta a aderência, além de ajustes de peso e formato pensados para oferecer mais controle e estabilidade durante a refeição. O objetivo, segundo o diretor, era preservar o gesto natural de um talher convencional, sem reforçar a estética de um equipamento médico.
O desenvolvimento envolveu repetidos ciclos de teste e ajuste fino. A faca, por exemplo, ganhou uma serrilha especial e ponta arredondada para garantir eficiência no corte com máxima segurança. O garfo foi alargado e a colher teve seu bojo aprofundado, características que aumentam a estabilidade do alimento e reduzem o risco de quedas.
O desenvolvimento envolveu repetidos ciclos de teste e ajuste fino. A faca, por exemplo, ganhou uma serrilha especial e ponta arredondada para garantir eficiência no corte com máxima segurança. O garfo foi alargado e a colher teve seu bojo aprofundado, características que aumentam a estabilidade do alimento e reduzem o risco de quedas.
Um dos maiores desafios técnicos, segundo Grespan, foi traduzir essas necessidades ergonômicas específicas para a produção em larga escala. “Transformar exigências ergonômicas muito específicas em um produto viável para produção industrial, mantendo conforto, segurança, durabilidade e padrão estético foi central”, explica. A solução passou pela escolha de materiais como aço inox e polipropileno de alta resistência, pensados para facilitar a limpeza dos talheres.
Textura, peso, material e dimensão: esses aspectos foram pensados para garantir conforto e autonomia
Tramontina/Divulgação/JC
Recentemente, a empresa realizou um ajuste que reduziu significativamente o preço final do kit, que é vendido, em média, por R$ 350,00 e pode ser encontrado em diversos marketplaces. “As principais barreiras, hoje, ainda são econômicas e culturais, já que muitos consumidores ainda não conhecem esse tipo de produto, o que historicamente limita a escala de produção”, reconhece Grespan. “No entanto, esse cenário vem evoluindo à medida que cresce a conscientização sobre inclusão e acessibilidade, o que tende a ampliar o mercado e permitir ganhos de eficiência”, conclui.
Iniciativas como os talheres assistivos mostram que há demanda e mercado para a acessibilidade em diferentes segmentos, usando a inovação como aliada nessa agenda. No setor de beleza, um exemplo é o Grupo Boticário, que lançou uma linha de pincéis de maquiagem articulados para pessoas com diferentes dificuldades motoras.
"Não existe inovação sem diversidade", diz especialista em inclusão
O tema ganha cada vez mais destaque entre empresas como um pilar central no desenvolvimento de produtos
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa (IBGE), com base no Censo de 2022, 14,4 milhões de pessoas com dois anos ou mais se enquadra na categoria de pessoa com deficiência (PCD). Por outro lado, uma pesquisa da ONU Mulheres de 2023 que mapeou a representatividade na publicidade brasileira, concluiu que os PCDs aparecem em apenas 1% dos materiais publicitários. A discrepância entre os dados revela que, apesar do crescimento nas discussões sobre o tema, ainda há muito para avançar.
É o que defende Grazi Mendes, head de inclusão e diversidade para as Américas da ThoughtWorks, consultora de tecnologia. “Não podemos ficar só garantindo o mínimo, condições de primeira ordem. Isso não dá autonomia. Se a sociedade é plural e diversa, isso precisa ser uma lente para tudo que eu for fazer”, alerta a especialista, destacando a urgência do tema no Brasil, um dos países mais diversos do mundo.
Como mulher preta, Grazi destaca sua relação pessoal com o tema da diversidade e fala sobre como sua trajetória foi atravessada por isso. “A cabeça pensa onde os pés pisam. Então, o lugar de onde eu venho muda tudo. Quando sou uma mulher negra, filha de empregada doméstica, nascida na periferia, a primeira da família a entrar na universidade e ocupar posições de liderança em grandes organizações, o que eu faço no mundo não está separado de quem eu sou”, afirma, completando que a solidão em espaços de liderança é triste e reveladora. “Perceber que você é parte do grupo majoritário da população e, mesmo assim, estar isolada ali, você entende que o seu papel é abrir portas, passagens para pessoas para as quais o sistema não foi desenhado”, conclui.
Grazi compreende que a temática da falta de acessibilidade é, necessariamente, uma falha no design dos produtos. “Design não é só estética; é decisão estratégica. Historicamente, muitas decisões foram tomadas pensando num corpo padrão, num uso padrão, numa vida padrão. Só que este padrão exclui uma série de pessoas. Durante muitos anos, tinha shampoo para ‘cabelos normais’. Nós temos a maior diversidade de texturas capilares do mundo, que cabelos não são normais? Isso deixa de fora um grupo enorme de pessoas que poderia estar consumindo com autonomia, acesso. O natural é a diversidade, nós que criamos os problemas de design”, destaca.
Na esteira de produtos pensados para PCDs, Grazi ressalta a importância de que a lógica em relação a este público mude. “Defendo que nós precisamos parar de tratar a acessibilidade como adaptação e passar a tratar como uma premissa de design e de projeto. Sair da lógica do remendo para elevar a qualidade do produto como um todo. Os comandos de voz, por exemplo, que todo mundo usa hoje, surgiram de uma necessidade de pessoas com uma deficiência. Ou seja, a acessibilidade não limita o design, ela sempre expande”, defende.
Além das questões éticas e humanas que envolvem as políticas de inclusão, Grazi é enfática ao afirmar que a acessibilidade é vantajosa em termos mercadológicos. “É caro implementar acessibilidade? Caro em relação a que? O custo de excluir também é alto. Você perde público, reputação, talentos. Vale a pena sim. É um público enorme e vai melhorar a experiência para todo mundo”, ressalta, defendendo que as organizações que mantêm projetos devem ser premiadas pela consistência, não só por iniciativas, já que isso incentiva uma lógica de lucratividade de curto prazo.
Grazi reitera que é preciso pensar em outros indicadores para além do dinheiro que impactam diretamente no sucesso de uma organização. “Reputação, atração de talentos, amplificação da capacidade de criar e inovar. Tem motivações que são inegociáveis: a dignidade, porque as pessoas precisam e merecem participar de um mundo com autonomia; a justiça, porque precisamos corrigir as desigualdades históricas que a gente construiu. Se elas foram desenhadas, podem ser redesenhadas. A cultura organizacional, porque nós não aprendemos em ambientes homogêneos, aprendemos em ambientes diversos. Empresa que inclui, aprende”, finaliza.
Mesmo para empresas menores, que não contam com grandes orçamentos para investir em acessibilidade, Grazi garante que há ações possíveis.
Mesmo para empresas menores, que não contam com grandes orçamentos para investir em acessibilidade, Grazi garante que há ações possíveis.
“Precisamos desmistificar a ideia de que acessibilidade só se faz com grandes projetos. Dá para avançar no simples, com uma comunicação mais acessível, desde site, materiais, contraste nas imagens, legendas, descrições, uma navegação mais simples, um atendimento mais inclusivo”, declara, dando uma dica a esses empreendedores. “Quando o orçamento aperta, a parceria vira estratégia. Precisamos de parcerias com empresas que tenham os mesmos valores para viabilizar iniciativas”, indica.
Nas grandes organizações, a acessibilidade só pode ser implementada quando é pensada coletivamente, junto com pessoas que precisam dela, de acordo com Grazi. “Precisa de intencionalidade para sustentar políticas de inclusão dentro das empresas, e isso é papel das lideranças. Mas a inclusão não pode depender da vontade de uma pessoa, ela precisa de metas, de indicadores, de orçamento, de processos, de governança, área responsável, patrocínio executivo. Tem que ter um ambiente que não dependa de uma pessoa que, se sair, os projetos acabam. Se você quer ter diversidade no topo, com autonomia, é preciso criar um caminho na base”, ratifica.
A presença de PCDs dentro dos processos de desenvolvimento dos produtos é fundamental, já que elas enxergam soluções que jamais seriam pensadas por quem não tem essas necessidades. “Essas pessoas têm uma inteligência específica que nenhuma pesquisa vai substituir. A educação sobre acessibilidade não pode ser só teórica. Ela precisa afetar, com as pessoas convivendo, se relacionando”, exclama.
Sobre o futuro, Grazi prefere não se intitular como uma pessoa otimista, mas acredita num horizonte melhor. “Vou citar Galeano. Quando perguntaram se ele era pessimista ou otimista, disse que o otimista pode ser um pouco ingênuo e que o pessimista é chato, então o importante é ser realista e esperançoso. Precisamos sonhar com as mãos. Eu gosto dessa ideia. Se acreditamos que o mundo vai ser melhor com mais inclusão, precisamos trabalhar muito para que isso aconteça”, reflete a especialista.

