A revolução digital que transformou bancos, meios de pagamento e investimentos nos últimos anos chegou com força ao mercado de seguros e previdência privada. Aplicativos, inteligência artificial (IA), automação de processos e canais digitais estão mudando a forma como consumidores contratam apólices, registram sinistros e recebem indenizações. Esse movimento responde a uma nova lógica de consumo, na qual velocidade, personalização e simplicidade pesam tanto quanto o preço.
Ao mesmo tempo, no entanto, os riscos digitais também se multiplicam: de vazamentos de dados a ataques de ransomware e deepfakes, a cada ano aumenta a sofisticação dos golpes e o potencial de prejuízo para empresas e pessoas físicas. Esse cenário impulsiona a expansão de produtos como os seguros cibernéticos, ainda pouco conhecidos pelo público em geral, mas em rápida ascensão.
Segundo a Superintendência de Seguros Privados (Susep), o setor de seguros e previdência já administra quase R$ 2 trilhões em provisões técnicas, equivalentes a 15,6% do PIB. Apenas em 2024, a arrecadação foi de R$ 435,5 bilhões, alta de 12,2% em relação ao ano anterior. O volume de indenizações, resgates e sorteios pagos superou R$ 240 bilhões no mesmo período.
Ainda assim, o potencial de crescimento é imenso: estima-se que apenas 20% da população brasileira possua algum tipo de cobertura securitária. Para a autarquia, a digitalização e a entrada de novas seguradoras digitais podem acelerar a inclusão de milhões de brasileiros nesse mercado.
Insurtechs, IA e experiência digital
Entre as startups que ajudaram a romper barreiras regulatórias está a Pier, fundada em 2018 e primeira insurtech brasileira a se tornar seguradora. “O Igor Mascarenhas, um dos fundadores, ajudou a construir o sandbox regulatório da Susep. A Pier foi a primeira a entrar e a primeira a sair como seguradora, com licença S3 em 2022”, relembra a co-CEO Camila Kataguiri.
O primeiro produto foi um seguro de smartphone, um nicho considerado problemático porque tradicionalmente não cobria furto simples. A Pier decidiu bancar esse risco, apoiada em modelos de prevenção a fraudes e precificação baseada em dados. A aposta se mostrou acertada: a sinistralidade ficou em torno de 30% e, com o tempo, a cobertura de furto simples foi absorvida por todo o setor. Hoje, a companhia soma mais de 150 mil clientes e deve fechar 2025 com cerca de R$ 250 milhões em prêmios - metade vinda de automóveis.
Camila Kataguiri (d) destaca o papel da tecnologia na relação com clientes e corretores
Rafael Merino/Pier/JC
O diferencial, segundo Camila, está no uso intensivo de inteligência artificial em toda a operação. A empresa desenvolveu sistemas proprietários que permitem desde a vistoria remota de veículos em um minuto até o pagamento de sinistros por Pix em segundos. “Não é barato a qualquer custo. É preço sustentável via dados. Queremos romper a ideia de que preço baixo implica serviço ruim”, afirma. Para sustentar o crescimento, a Pier desenvolveu um “time virtual” de agentes de IA, que apoiam desde revisões contratuais até o treinamento interno.
O uso de tecnologia não se restringe à relação direta com o cliente. A companhia também se aproximou de corretores, tradicionalmente associados ao modelo analógico. “O Brasil adota tecnologia rápido. Hoje temos mais de dois mil corretores ativos e estamos expandindo produtos para esse canal”, diz Camila. Essa integração mostra que a digitalização não substitui os agentes humanos, mas amplia sua eficiência, permitindo que atuem de forma mais consultiva e menos burocrática.
Essa lógica reflete uma mudança mais ampla no setor. Com a entrada das insurtechs no sandbox regulatório e a posterior liberação da licença S3, a competição deixou de ser apenas pelo tamanho da carteira. A disputa agora também envolve agilidade, qualidade na experiência do cliente e uso estratégico de dados. Apesar disso, a participação das insurtechs ainda é pequena frente ao total do setor, dominado por grandes grupos seguradores e, segundo a Susep, esse ciclo virtuoso faz com que até os maiores players sejam pressionados a inovar.
Riscos digitais, ciberseguros e regulação
O avanço tecnológico, porém, também expõe consumidores e empresas a ameaças cada vez mais sofisticadas. O professor Jeferson Campos Nobre, do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lembra que ataques como phishing, antes fáceis de identificar, ganharam escala e realismo com o uso da inteligência artificial. “Hoje é possível automatizar ataques personalizados em massa, algo que antes só era viável de forma artesanal. A IA sofisticou tanto o ataque quanto a defesa”, explica.
Para ele, os maiores erros ainda estão ligados ao fator humano. “Não adianta apenas investir em softwares e equipamentos. É preciso investir em conscientização e treinamento. Segurança precisa ser centrada nas pessoas”, alerta. Isso significa que empresas precisam educar funcionários para reconhecer tentativas de fraude, manter boas práticas digitais e usar ferramentas básicas de proteção, como antivírus e firewalls, sempre atualizadas.
A demanda por seguros cibernéticos acompanha esse cenário. Antes restritos a grandes corporações, agora também atraem pequenas e médias empresas pressionadas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e pela dependência crescente de sistemas digitais. “Há um aumento expressivo na procura, com produtos mais modulares e adaptados a diferentes nichos”, aponta Nobre. Ele ressalta que, além da proteção contra prejuízos financeiros, a contratação de uma apólice pode ser exigência contratual em setores que lidam com dados sensíveis, como saúde e finanças.
Do lado regulatório, a Susep reconhece a importância da inovação, mas alerta para os riscos associados. “Precisamos ter no radar que, junto com os benefícios do mundo digital, vêm quadrilhas especializadas e ameaças de instabilidade. A inovação deve andar junto da proteção”, afirma a autarquia em nota. A entidade enxerga a expansão dos seguros cibernéticos como tendência inevitável, mas defende maior rigor na seleção de riscos e padrões mínimos de “higiene cibernética” por parte de clientes e seguradoras.
O desafio, segundo a autarquia, é, portanto, equilibrar inovação, concorrência e proteção. O Marco Legal do Seguro e o Open Insurance (ou Sistema de Seguros Aberto) são apontados como instrumentos capazes de ampliar a transparência, reduzir custos e modernizar contratos. Ao mesmo tempo, reguladores buscam garantir que a IA aplicada à precificação e automação não se torne ferramenta de exclusão ou abuso. Para a Susep, o futuro do setor será marcado pela convergência entre tecnologia e prudência regulatória, em que empresas que inovam de forma responsável ganharão mais espaço.
A transformação em curso, avaliam especialistas e autoridades, não tem volta. Seja no pagamento instantâneo de sinistros por aplicativo, na criação de soluções contra ataques digitais ou no desenho de contratos mais claros, a tecnologia já está redesenhando a lógica do seguro no Brasil. Para os consumidores, isso significa acesso a produtos mais rápidos, personalizados e confiáveis. Para o mercado, a tarefa será crescer de forma sustentável, conciliando inovação com segurança e ética.