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reportagem cultural

- Publicada em 29 de Outubro de 2020 às 21:14

Cartas a amigos e familiares revelam rotina e posições do escritor Erico Verissimo

Autor nascido em Cruz Alta (RS), em seu gabinete, em 1974

Autor nascido em Cruz Alta (RS), em seu gabinete, em 1974


ACERVO LITERÁRIO IMS/DIVULGAÇÃO/JC
Entre os escritores mais conhecidos do Brasil, Erico Verissimo é lembrado como grande romancista, responsável por obras formadoras e de cunho histórico que refletem até hoje as vicissitudes do ser humano e suas complexidades no tempo. Há, entretanto, uma faceta do cruzaltense ainda pouco conhecida do grande público: ele também foi um grande escritor de cartas.
Entre os escritores mais conhecidos do Brasil, Erico Verissimo é lembrado como grande romancista, responsável por obras formadoras e de cunho histórico que refletem até hoje as vicissitudes do ser humano e suas complexidades no tempo. Há, entretanto, uma faceta do cruzaltense ainda pouco conhecida do grande público: ele também foi um grande escritor de cartas.
O seu acervo no Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro, conta com 2.244 itens nessa área, e inclui não apenas as recebidas pelo escritor, mas também as cópias das cartas enviadas por ele. "Nelas, ele costumava relatar sua rotina, principalmente em viagens, funcionando como diários, o que as torna especialmente interessantes", explica Rachel Valença, coordenadora de Literatura do IMS.
A professora e pesquisadora Maria da Glória Bordini, que se debruça sobre o trabalho de Erico desde os anos 1980, diz que ele era consciente da importância de interagir não só através da ficção. "Escrevia tanto para seus colegas de ofício, principalmente os iniciantes que lhe pediam conselhos sobre criação literária, quanto para seus admiradores, que lhe expressavam os efeitos de sua literatura", diz. Entre algumas das trocas, estão as correspondências com escritores como Sergio Faraco e Lygia Fagundes Telles, então, iniciantes no ofício, mas também com personalidades mais experientes, como Josué Guimarães.
Para Marcos de Moraes, doutor em literatura pela Universidade de São Paulo e um especialista no estudo a partir das correspondências, a primeira contribuição para se pensar em termos de uso da carta é que elas podem dar uma visão complementar do autor. "Ou seja, a literatura não mais como resultado final do objeto livro, mas enquanto processo", afirma. 
Segundo o professor, que já ganhou dois prêmios Jabutis pelos livros Câmara Cascudo e Mário de Andrade - cartas 1924-1944 e Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, há três dimensões neste tipo de pesquisa: a biográfica, a criação compartilhada e a invenção da sociabilidade. A primeira, seria a pesquisa focada na vida e na interpretação do autor sobre a própria obra e trajetória. O estudo da criação compartilhada a partir da troca também é um ponto importante. "Ela parece ser o grande fator que faz repensar a autoria e a literatura como um diálogo, como um espaço de alteridade, no momento que se insere o outro no processo de criação", explica Marcos. Já a sociabilidade seria a rede de contatos mais frequentes e os laços que foram construídos.
Apesar de as cartas de Erico não terem uma grande compilação, alguns estudos de diferentes pesquisadores já foram realizados. "Não foi possível recuperar todas as missivas", diz Maria. Ela explica que muitas vezes o escritor não guardava cópias. Organizá-las é um desafio dos pesquisadores que se debruçam ao estudo das cartas, porque muitas vezes elas estão espalhadas por diferentes arquivos, ou em posse de outras pessoas.
Uma rápida pesquisa no site Mercado Livre, por exemplo, aponta que uma carta assinada por ele está sendo vendida por R$ 500,00. Mesmo assim é possível notar as sociabilidades mais frequentes com alguns autores. "Um correspondente frequente foi Herbert Caro, o tradutor de Thomas Mann, a quem enviou muitas dos Estados Unidos, assim como Vianna Moog, amigo desde os tempos da Globo. São cartas sobre o que fazia e sentia. Há cartas para Clarice Lispector, também dessa época, que foi quando a amizade entre os dois se iniciou", relata.
Em 1956, inclusive, em carta, Clarice Lispector convida Erico e Mafalda para serem padrinhos de seus filhos, Pedro e Paulo, três anos após o nascimento do segundo. "No caso dos senhores não aceitarem, no hard feelings. Mas a verdade é que, por três anos, vocês têm sidos os padrinhos deles, por tácito, espontâneo e comum acordo. Restaria apenas legalizar uma situação que aos poucos estava se tornando escandalosa", escreveu Clarice. A proposta foi aceita.
A carta era central na geração do autor da trilogia O tempo e o vento. Segundo Moraes, outros escritores da época como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos atribuíram um valor muito importante ao formato, porque por meio dela defendiam os ideais estéticos da época e a própria noção de literatura. "O Erico, como todos da geração dele, escritores, se valeram da correspondência como forma espiritual de vida, ou seja como sociabilidade, como espaço de transmissão de uma percepção literária", afirma.

Incentivando a literatura

Escritor gaúcho em registro de  1975

Escritor gaúcho em registro de 1975


/ACERVO LITERÁRIO IMS/DIVULGAÇÃO/JC
Uma das características mais impressionantes nas correspondências conhecidas de Erico é a abertura e o incentivo para o trabalho dos escritores. Recebia-os com entusiasmo, como bom amante da literatura que era. Caso exemplar é a relação com a escritora Lygia Fagundes Telles. Quando a paulista estava começando na carreira literária, no início da década 1940, mandou seu primeiro livro, intitulado Porão e sobrado para Erico, já um escritor respeitado. Ele leu e, com entusiasmo, a respondeu, e ela faria o mesmo, agradecendo pela leitura. A partir disso, os dois não deixariam mais de se corresponder, com as cartas ao longo do tempo perdendo a formalidade e ganhando um tom muito mais afetuoso, sempre com admiração mútua.
Com o tempo, Lygia foi amadurecendo como escritora e ganhando cada vez mais espaço e notoriedade. Em uma correspondência datada de 6 de fevereiro de 1966, depois que Erico leu o livro de contos O jardim selvagem, de Lygia Fagundes Telles, ele a escreve cheio de elogios: "Você está uma narradora de primeira ordem. Que riqueza de inventiva, de tipos, de linguagem, de histórias! Tornei a pensar o que sempre penso quando termino de ler um livro seu. Quem conhece a Lygia de perto, isto é, quem convive com ela não imagina que esse monstrinho escreva essas coisas góticas - como se diz por aqui. Porque você é dos melhores papos que conheço, das presenças mais agradáveis e fáceis. Estar com você é muito bom e a gente não se sente com necessidade de usar nenhuma máscara, de escolher palavras ou ficar na defensiva". Essa carta, assim como outras trocadas entre os dois, está disponível no site Correio IMS.
Quem também tem uma história de afeto e incentivo literário com Erico é o escritor Sergio Faraco. Ele o conheceu jovem, ainda antes dos 20 anos por meio do seu tio, que era médico e atendia Verissimo. "Anos depois, eu tinha publicado alguns contos e trabalhava em Uruguaiana, e ele me escreveu comentando o que eu tinha escrito e dizendo que esperava a minha visita em Porto Alegre", afirma. Nos anos 1970, quando Faraco se tornou colaborador do Caderno de Sábado, do Correio do Povo, a relação ficou mais próxima. "Éramos quase vizinhos no bairro Petrópolis e tive inequívocas provas de sua grandeza: ele me escrevia bilhetes comentando o que lia e deixava na caixa de correspondências de meu edifício, quando saía a caminhar com sua Mafalda", explica.
As correspondências serviram como um impulso para a carreira literária de Faraco que naquele momento tinha dúvidas a respeito de seu trabalho. "Ele gostava do que eu escrevia e era então um grande estímulo, não para eu que ficasse satisfeito e achasse que já havia conseguido alguma coisa, mas para persistir na literatura, trabalhar, aprofundar e refinar meu senso crítico. Foi muito importante porque, naquele momento, eu tinha tantas dúvidas que, se ele não tivesse dito o que disse, provavelmente eu não escreveria mais nada", diz. Faraco conta um episódio curioso: em um momento ele escreveu a Erico dizendo que leu seu romance O prisioneiro e que gostou mais depois da página 100, quando há mais ação e menos reflexão. "Na resposta, ele contou que um conterrâneo meu, Brenno Silveira, também lhe escrevera sobre o livro, dizendo que ele gostou até a página 100. Ele finalizou a carta comentando que nessas impressões distintas reside a graça da ficção", conta. O escritor guarda todas as correspondências que trocou com escritor de Olhai os lírios do campo.
Mas não foram só os escritores em começo de carreira que se comunicavam com Erico. Josué Guimarães também recebeu conselhos do autor de Incidente em Antares. Segundo o professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação da Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF), Miguel Rettenmaier, a produção literária de Guimarães acontece, sobretudo, nos anos 1970, na ditadura civil-militar, ele já sendo jornalista consagrado e visado pelo Estado burocrático-autoritário.
Erico, por experiência e idade, é um apoiador, um aconselhador. "Reza a lenda que ele adorou saber que Josué escreveria ficção sobre a migração alemã no Rio Grande do Sul, mas desaconselhou uma trilogia. Tivesse ouvido seu amigo, talvez Josué tivesse concluído o projeto, já que A ferro e fogo permaneceu em dois 'Tempos': a Solidão e a Guerra", diz Rettenmaier.
O Acervo Literário de Josué Guimarães (ALJOG), que está na UPF, conta algumas das correspondências que eles trocaram. São duas cartas ativas, três cartas passivas e um bilhete breve. "As linhas vão seguindo em diálogos sobre os cenários políticos brasileiro e português. Josué acompanhava os Cravos, Erico vivia em uma ditadura", explica Rettenmaier.

Deriva online pelas cartas

Carta para Lygia Fagundes Telles

Carta para Lygia Fagundes Telles


/ACERVO LITERÁRIO IMS/DIVULGAÇÃO/JC
Criado em 2016 pelo diretor do Instituto Moreira Salles Flávio Pinheiro, o Correio IMS é um site de divulgação das cartas trocadas entre artistas, um dos pilares do acervo de literatura da instituição. "A estreia contemplou 100 correspondências de personalidades de língua portuguesa, mas com o tempo privilegiamos os brasileiros. E não só escritores, mas cantores, pintores, artistas em geral", conta Rachel Valença. Atualmente é o maior repositório de correspondências em língua portuguesa, com cerca de 300 cartas e faz par com o britânico Letters of Note. "Quanto à organização do arquivo, ao recebermos um acervo, inserimos cartas, cartões-postais e telegramas na série Correspondência, que se divide em familiar e pessoal, quando não há vínculo de parentesco entre destinatário e remetente. É aí que se desenvolve a pesquisa do material a ser publicado", diz Rachel. As descrições dos documentos dos arquivos encontram-se disponibilizadas nos bancos de dados do site.
Segundo o pesquisador Marcos de Moraes, sem ter um lugar que salvaguarde o material histórico não existiria a área de estudo. "Essa deriva das cartas é muito interessante, se quiser estudar um autor tem que chegar até elas e isso já é um trabalho bem complexo", afirma. Com o Correio IMS, é possível fazer uma espécie de deriva online pelas diferentes correspondências, e conhecer também um pouco dos bastidores dos artistas. Para Moraes, ainda há muito o que fazer em termos de pesquisa relacionada às cartas. "A França tem uma quantidade absurdamente impressionante de edições de cartas, desse modo você pode fazer uma reflexão mais apurada do conjunto", explica. Para ele, ainda estamos em um momento de reunião desses documentos. "Mesmo do Erico Verissimo, como posso falar com propriedade sobre as características de suas cartas, se não tenho acesso ainda a um número extenso delas? Corre-se o risco de a partir de um documento que pode ser singular ou excepcional criar uma ideia que não corresponde exatamente ao seu gesto epistolar", acredita.

Os discursos do diplomata

Maria da Glória Bordini no lançamento do CCCEV em 2002

Maria da Glória Bordini no lançamento do CCCEV em 2002


/SILVIO WILLIAMS/ARQUIVO/JC
Em agosto deste ano, foi lançado em formato e-book de modo gratuito o livro Erico Verissimo na União Pan-Americana: Discursos, pela editora Makunaíma, organizado pelas pesquisadoras Ana Letícia Fauri e Maria da Glória Bordini, tendo o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
O livro reúne discursos da época em que o escritor foi diretor do Departamento de Assuntos Culturais da Organização dos Estados Americanos (OEA), durante o período de 1953 a 1956. Tais discursos, assim como as cartas, são documentos históricos que trazem à tona um dos lados também não tão conhecidos de Erico: a sua atuação como diplomata.
Maria da Glória Bordini conta que eles foram descobertos por Fauri, sua orientanda que na época fazia estágio sanduíche na Brown University, nos Estados Unidos. Sua tese envolvia Erico e a política, então, Ana foi até Washington e consultou a Biblioteca Colombo na OEA onde estavam arquivados diversos pronunciamentos do autor. "Copiou-os e os utilizou na tese, doando-os depois ao Acervo Literário Erico Verissimo (ALEV). Como faltavam algumas páginas, ficaram ali durante uns bons anos, até que surgiu a oportunidade de trabalharmos com eles, num projeto do CNPq que concluímos agora em 2020", explica.
Em seu papel como diplomata, ele procurou disseminar pelos Estados Unidos, principalmente nas universidades, a importância do conhecimento sobre a cultura latino-americana e sua literatura para uma melhor compreensão entre a América do Norte e a do Sul. Esse era o ideal do pan-americanismo que Eisenhower, presidente do País na época em que o escritor esteve por lá, levou adiante por recear que os povos sul-americanos fossem 'capturados' pelo comunismo, lembrando que o momento era da Guerra Fria. "Mas Erico, cumprindo sua missão, por conta da OEA, de fomentar nas nações latino-americanas a paz e harmonia, aproveitou todas as ocasiões, especialmente nas Conferência de Cúpula da OEA de que participou, para defender a democracia, a liberdade de pensamento e ação dos intelectuais, o valor de cada cultura em sua diferença, a necessidade de alfabetizar as massas e melhorar suas condições de vida", explica Maria da Glória Bordini.
Em uma de suas palestras intituladas A liberdade na América Latina, Erico defendeu a ideia de que liberdade e democracia andam juntas e que deveriam ser exercidas, não com o intuito de que as nações latino-americanas se tornassem capitalistas, mas para que houvesse "mais justiça social, de modo que os mais abastados deixassem seus excessos de fortuna para que a maioria do povo contasse com o essencial", segundo trecho.
Maria da Glória encontra muito paralelo com os discursos do escritor na época com o contexto atual do Brasil e da América Latina. "Quando se leem os seus discursos, percebe-se que pouco mudou para as camadas desprivilegiadas das populações. Tudo continua na mesma, com as elites se beneficiando dos progressos das ciências e tecnologia, enquanto os índices de educação e saúde caem cada vez mais entre os pobres", acredita.
 

Trecho do discurso 'A liberdade na América Latina'

Erico Verissimo morou em Washington no período de  1953 a 1956

Erico Verissimo morou em Washington no período de 1953 a 1956


/ACERVO IMC/DIVULGAÇÃO/JC
"A sociedade constituída nesse novo tempo também pode ser vista como um bolo desigual, apresentando uma camada superior, de classe alta, provida de todos os bens e privilégios, seguida de um recheio fino, composto por uma classe média fraca, em permanente estado de insolvência, devido a baixos salários, alto custo de vida, inflação e também ao hábito adquirido nesses últimos 25 anos, mais ou menos, de comprar em prestações rádios, refrigeradores e outros aparelhos elétricos. A espessa camada inferior do bolo consiste nos eternos oprimidos, a multidão infeliz que tem sua origem na sociedade colonial e que passa de pai para filho uma herança de pobreza e miséria."
 

Socialista democrata

Mafalda, Erico Verissimo, Clarissa e Luis Fernando Verissimo no aeroporto de Miami, Estados Unidos, em 1943

Mafalda, Erico Verissimo, Clarissa e Luis Fernando Verissimo no aeroporto de Miami, Estados Unidos, em 1943


/ACERVO LITERÁRIO IMS/DIVULGAÇÃO/JC
Em 1968, Erico visitava a filha Clarissa nos Estados Unidos e escreveu ao seu filho, o escritor Luis Fernando Verissimo, sob o impacto da invasão militar da Tchecoslováquia por tropas da então União Soviética. O movimento acabou com a chamada "Primavera de Praga", que pretendia reduzir a influência de Moscou e implantar um 'socialismo de face humana' no país. Erico fez questão de se manifestar: "A invasão da Tchecoslováquia me deixou consternado e indignado ao mesmo tempo. Há dias que ando pensando em fazer alguma coisa e não consigo descobrir o quê". E, continuou, fazendo um pedido ao filho: "Se apareceu ou está para aparecer no Brasil algum manifesto de escritores, a teu critério decente, isto é, sem coronéis da nossa democracia nem fascistas ou gaviões do Vietnã - autorizo-te a incluir meu nome nesse manifesto".
Perguntado sobre a carta, Luis Fernando diz que recordava dela, mas não do que realmente aconteceu depois: "Confesso que não me lembro da consequência, se houve alguma, do posicionamento dele ou se saiu algum manifesto como o que ele pretendia assinar. A posição dele, que sempre se definiu como um socialista democrático contrário a qualquer tipo de totalitarismo, foi coerente. Ele e minha mãe tinham estado em Praga durante a breve 'primavera' que os tanques soviéticos reprimiram, e se apaixonado pela cidade".
 

"Missivas revelam a vida íntima dos personagens"

Autor utilizou-se da imprensa para preencher quadro histórico da sua trilogia

Autor utilizou-se da imprensa para preencher quadro histórico da sua trilogia


/LEONID STRELIAEV/DIVULGAÇÃO/JC
Márcio Miranda Alves é pesquisador e coordenador da pós-graduação em Letras na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e também é autor do livro Erico Verissimo e o jornalismo: fontes para a criação literária, oriundo da sua pesquisa no doutorado. Em artigo acadêmico, ele também refletiu sobre a utilização das cartas e materiais históricos como estratégia narrativa na ficção do autor de Solo de clarineta.
JC - Viver: Como Erico Verissimo utilizava a correspondência dentro de seus romances?
Márcio Miranda Alves - Ele abordou em seus romances inúmeros aspectos socioculturais relacionados aos meios de comunicação e às práticas de sociabilidade. Encontramos na sua narrativa ficcional muitos personagens leitores (de livros, jornais e almanaques), escritores, redatores, jornalistas e apreciadores da música (que se reuniam em torno de um gramofone, por exemplo), bem como personagens que se comunicam por meio da epístola. Procurei mostrar em um artigo que a carta tem um papel importante na estrutura de algumas obras de Erico, como em Olhai os lírios do campo, Música ao longe, Clarissa, O tempo e o vento, O resto é silêncio, O Senhor Embaixador.
Embora essas cartas sejam um recurso narrativo (semelhante ao que também se percebe em relação aos diários), o qual ajuda o narrador a revelar aspectos íntimos das personagens, elas também trazem em seu conteúdo algumas informações históricas importantes para o quadro geral da representação. Ou seja, a epístola na ficção de Erico Verissimo surge em certos momentos para nos revelar o que há de mais secreto na vida íntima das personagens. Em outros, apresenta-nos sinais importantes para a compreensão do contexto histórico representado.
Viver: Sobre o livro, como foi feita a sua pesquisa em registros de imprensa e qual a relação com o processo de escrita de Erico Verissimo?
Alves - Desenvolvi essa pesquisa a partir da análise de fontes localizadas em acervos históricos, confrontando documentos primários (jornais, revistas e almanaques) e a narrativa ficcional de O tempo e o vento. Meu objetivo foi mostrar como Erico Verissimo utilizou-se de material da imprensa para "preencher" o quadro histórico da trilogia, seja na confirmação de datas e eventos, seja na reprodução literal de material jornalístico, ou, ainda, na representação do universo jornalístico, formado por repórteres, redatores e leitores de jornais e revistas.
Foi possível identificar muito conteúdo que teve origem nos jornais da época, principalmente o Correio do Povo, que foi durante muito tempo o de maior tiragem do Rio Grande do Sul, e de revistas como a francesa L'Illustration. Erico utilizou muitas informações desses impressos nos episódios que transcorrem entre 1910 e 1945. Nos episódios que transcorrem antes desse período as referências aos jornais também estão presentes, não como citações diretas, mas, sim, de forma ficcionalizadas, em que os impressos aparecem como uma espécie de confirmação ou legitimação dos eventos históricos.
 

* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação pela Ufrgs e editor fundador do Coletivo de Jornalismo Cultural Nonada – Jornalismo Travessia e sócio da agência Riobaldo.