Como nascem os poemas para José Eduardo Degrazia? Eles vêm de sensações do ambiente e da natureza. “São as vivências que despertam a memória e o inconsciente e se transformam em linguagem. É interessante como talvez para os pintores sejam as cores e as formas, para os músicos, os sons. Para o poeta é a palavra. Eu vejo uma paisagem e de repente aquilo se transforma em palavra, é quase instantâneo”, diz.
O autor percorreu diversos gêneros literários ao longo de sua trajetória, mas a poesia tende a ser o mais predominante. Este ano foi semifinalista do prêmio Oceanos de literatura, com o livro de poesia As cidades conquistadas, o segundo da trilogia As cidades. Além disso, já ganhou diversos prêmios, como o de livro do ano da Associação Gaúcha dos Escritores do Rio Grande do Sul, em 2006.
Degrazia lembra a aproximação dele com a poesia. “Quando eu estava no colégio se falava muito sobre românticos e parnasianos, era ensinado pouco sobre o simbolismo. O Eduardo Guimaraens, a minha mãe, tinha um livro dele em casa. Eu lia muito. Com o tempo, descobri os modernistas, principalmente os ligados ao simbolismo, como o Vinicius de Moraes, que era mais subjetivo, o Guilherme de Almeida, os poetas ligados ao Grupo Festa, como a Cecília Meirelles”, diz.
Mas o verdadeiro choque veio quando conheceu as obras de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. “Aí eu já estava acompanhando toda a geração de 1960 — aqui no nosso meio era o Carlos Nejar, por exemplo — que fazia uma poesia sintética, metafísica, epopeia, ligada ao social. Então eu reneguei, entre aspas, tudo o que tinha feito antes e embarquei nessa visão nova de mundo.”
Esse encontro com Cabral foi decisivo para o que viria a ser Lavra Permanente, seu primeiro livro, lançado e premiado em 1975, sobre a imigração italiana no Brasil, e que ganhou nova edição agora em 2025. “Ele é muito ligado a essa poesia sintética, trabalhada”, observa. “Embora já tivesse, aqui e ali, uma certa abertura coloquial”, diz. Com o tempo, Degrazia foi abrindo espaço para outros caminhos poéticos. “Aos poucos, fui recuperando meu passado subjetivo, vamos dizer assim”, conta. “Mas nunca perdendo essa maneira de ver o poema como algo que tem que ser trabalhado — não pode ser algo só intuitivo”, afirma.
Degrazia diz que a própria escrita foi se transformando. “Fui abrindo para novos conceitos, novas perspectivas”, diz. “O poema deixou de ser tão conciso, tão formal, para se abrir para outras formas — mais derramadas, talvez. Mas isso, no fundo, não importa tanto. O que importa é a qualidade do poema e se ele atinge sua função: informar e emocionar através da linguagem”, conclui.
Para o escritor e poeta Dilan Camargo, Degrazia é um multi escritor. “Em todos os gêneros tem produzido uma obra universal, consistente, e talvez seja o escritor que mais tenha publicado regularmente nos últimos anos no Brasil. Pela representatividade, riqueza literária e extensão de sua obra já merece ser escolhido como Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre”, acredita.
A professora e poeta Maria do Carmo Campos diz que Degrazia distingue-se ainda pelo fôlego da obra diversificada. “Tendo iniciado por aspectos da história gaúcha, como a imigração italiana, o poeta percorreu temas múltiplos. Cidades, casas e coisas são, entre outros, motivos para poemas surpreendentes. Viagens no tempo e no espaço luzem em Romanceiros com figuras como Inês de Castro, Cristóvão Colombo e o Infante Dom Henrique, sucedendo os gregos e povos da América Latina. E as cidades? ‘Submersas’, ‘condenadas’ e também ‘abandonadas’, cidades são focos de livros iluminados pela lavra de José Eduardo”, aponta. Ela lembra também do trabalho de tradução de Degrazia. “Ele se dedicou ainda ao desafio da tradução do espanhol e do italiano. Traduziu 14 livros, sendo 9 obras de autoria de Pablo Neruda”, conta.
Degrazia atuou como médico oftalmologista por cerca de 50 anos, trabalhando na literatura de forma paralela. Ele disse que nunca teve problema em conciliar a profissão com a escrita. O autor sempre encontrou espaço para a escrita — ainda que fosse “no rabo das horas”, como o dizia o também médico e escritor Cyro Martins. “Não era exageradamente metódico, mas procurava manter um ritmo. Dizia: agora vou escrever, e escrevia”, comenta.
As origens do escritor
José Eduardo Degrazia cresceu cercado por livros. A relação com a literatura começou cedo, muito devido ao âmbito familiar. "Lembro que, lá em Itaqui, na casa dos meus avós, havia uma grande biblioteca. Meu pai era médico e colecionador de obras raras — de literatura, filosofia, história da ciência — e minha mãe era professora. Então, o livro sempre esteve presente."
O ambiente familiar à leitura se somava a um contexto em que o livro era o principal meio de aprendizado. "Nos anos 1950, quando comecei o colégio, não existiam esses meios modernos. O estudo era basicamente o livro. Havia o rádio e o cinema, mas televisão, por exemplo, era muito raro", conta. Ele lembra com humor do dia em que o pai comprou o primeiro aparelho, em Santa Maria: "A gente ficava na frente da televisão, mas só se ouvia o som — não tinha retransmissor ainda."
A infância e a juventude de Degrazia foram marcadas por deslocamentos entre diferentes cidades do Rio Grande do Sul. Nascido em Porto Alegre, passava férias em Itaqui, onde viviam os avós, e mais tarde morou oito anos em Santa Maria, quando o pai virou professor na Faculdade de Medicina. Depois, cursou ele próprio Medicina em Pelotas. "Tive a possibilidade de vivenciar tanto a vida interiorana quanto a das cidades médias e maiores. Santa Maria já era universitária, Pelotas também. Foram experiências muito diferentes", diz.
Escolher Medicina foi, em parte, uma influência familiar, mas também uma escolha moldada pelo tempo. "Nos anos 1960, as opções eram poucas. Basicamente, Engenharia, Medicina e Direito. (Os cursos de) Jornalismo estavam começando, e as Letras já existiam, mas os colégios direcionavam os alunos para essas três carreiras tradicionais", explica. "Era um outro tempo, muito mais limitado nesse sentido do que hoje."
O gosto pela leitura, no entanto, cresceu junto com a formação escolar. Degrazia estudou em colégios que valorizavam a cultura, como o Colégio Santa Maria, dos irmãos maristas, e o Anchieta, em Porto Alegre, onde concluiu o Ensino Médio. "Naquela época, o livro era fundamental. Isso criava um verdadeiro culto à leitura."
Foi nesse ambiente que o jovem Degrazia começou a escrever. "Eu escrevo desde muito cedo. Com uns dez anos, já fazia versinhos, pequenas histórias", conta. "Mas foi na adolescência que comecei a mergulhar de verdade na literatura, a buscar um caminho, a ler autores importantes."
Por volta dos 18, 19 anos, ele já se aproximava dos meios literários e jornalísticos. "Comecei a colaborar no Correio do Povo, no Caderno de Sábado, e também no Diário Popular, em Pelotas, enquanto fazia Medicina", diz.
Em estado de lavra permanente
Na literatura, o início se deu de forma paralela entre prosa e poesia. "Eu escrevia contos e poemas juntos, na mesma época", recorda. A poesia, no entanto, acabou abrindo o caminho para a primeira conquista. "Eu tive a sorte de ganhar um prêmio com o Lavra Permanente." O livro, publicado originalmente em 1975, acaba de ganhar uma nova edição celebrando os cinquenta anos da obra.
O tema está ligado às histórias familiares de imigração. "Era sobre a imigração italiana, e um pouco da alemã também, porque, na verdade, estava falando sobre colonização e imigração." O prêmio que deu origem à obra reunia autores que tratavam da temática migratória.
Ao falar sobre as origens da própria família, vinda da Itália, ele diz que o movimento migratório é anterior à grande leva de imigrantes do fim do século XIX: "Tinha italianos antes, inclusive, né? Na própria guerra do Paraguai, na própria Revolução Farroupilha. Tinha quase 30, 40 italianos envolvidos, sem falar no Garibaldi, no Tito Lívio Zambeccari e outros. Então sempre teve uma presença italiana aqui. Claro que aumentou a partir de 1875."
Sua família, no entanto, seguia uma trajetória distinta da dos colonos que foram para a Serra. "A minha família é do sul da Itália, vieram para as cidades. Tem até um livro muito interessante da Núncia Santoro de Constantino, O Italiano da Esquina, que diferencia esses grupos", comenta. "Os do sul, em geral, eram ferreiros, marceneiros, músicos, pequenos comerciantes. E se estabeleciam nas cidades e muitos deles abriram comércios, principalmente na região da fronteira do Rio Grande do Sul, de onde vem minha família."
Foi ouvindo as histórias familiares que, ainda adolescente, começou a se perguntar sobre essa presença italiana: "Eu ouvia as histórias da família e dizia: mas por que tem tanto italiano aqui? " Mais tarde, ao ler Terra Xucra, de Manoelito de Ornellas, encontrou uma explicação. "Eles contavam que lá havia 400, 300 famílias de italianos naquela região da fronteira. Então eu pensei: mas por quê?". A resposta, ele diz, estava no percurso migratório. "É que eles iam para Buenos Aires e depois vinham se localizando nas cidades, onde tinham melhor possibilidade de desenvolver o comércio, entre outras aptidões. E aquela região ali era muito rica para isso, porque abria através do Rio Uruguai para todas essas capitais. E tinha impostos também aduaneiros baixos, que era outra coisa que atraía."
Enquanto escrevia Lavra Permanente, o autor já estava na faculdade. Nessa época, conheceu o poeta e historiador Guilhermino César, que foi uma figura decisiva em sua formação. "Ele era um historiador, poeta, e que pontificava no Caderno de Sábado. E como eu comecei a colaborar com o periódico, acabei me relacionando, ficando amigo do Guilhermino e frequentando a casa dele, o apartamento dele ali na Independência."
Ele reconhece a importância desse convívio: "Eu devo muito da minha formação e incentivo ao Guilhermino César, porque aí eu comecei a levar o que eu escrevia para ele. Comecei a mostrar o que eu escrevia. E ele deu um retorno, e começou a incentivar". Foi nesse período que surgiu a oportunidade de participar do Prêmio do Biênio da Colonização e Imigração, que selecionou o livro. "Eu pensei em fazer um poema mais largo, mais longo, de tipo epopeico, com uma voz narrativa contando a vinda dos imigrantes, com os tantos percalços da viagem, como na chegada, e depois as vitórias dentro do meio, o desenvolvimento todo. E parece que deu certo", diz.
Apesar de inspirado por fatos históricos, o poema tem um tom mais sensorial e emocional. "Ele pega mais a coisa do ponto de vista da sensação, de tentar captar a sensação do que aquelas pessoas sentiam naquela circunstância." A intenção, explica, era mais poética do que documental.
Vereda pelos versos
No início dos anos 1970, José Eduardo Degrazia começou a se aproximar do meio literário de Porto Alegre. Frequentava os círculos de escritores que publicavam no lendário Caderno de Sábado, do Correio do Povo — um dos espaços mais importantes da época para a literatura gaúcha.
Pouco depois, entre 1975 e 1976, Degrazia foi um dos fundadores do Grupo Vereda. Ele surgiu da união de dois pequenos grupos de escritores gaúchos que, em meados da década de 1970, compartilhavam o desejo de publicar suas obras de forma independente e coletiva.
Segundo texto publicado no jornal Zero Hora em 24 de setembro de 1976, havia inicialmente um grupo formado por Umberto Guaspari Sudbrack, Selvino Heck e José Eduardo Degrazia, que já preparavam o lançamento de um livro. Paralelamente, outro grupo — composto por Carlos Carvalho, Dilan Camargo e Humberto Zanatta — buscava organizar uma cooperativa de escritores.
Da aproximação desses dois núcleos nasceu o Grupo Vereda de Edições Cooperativadas, que teve como primeiro lançamento o volume de poemas Em Mãos, publicado pela Lume Editora. A proposta do grupo não era apenas dividir custos de produção e publicação, mas também inovar nos modos tradicionais de edição e distribuição de livros, buscando maior autonomia e participação dos autores em todas as etapas do processo editorial. "Nós criamos uma forma cooperativada de publicação. Cada autor bancava parte do custo e depois vendia seus exemplares — o dinheiro voltava para o grupo, para financiar novos livros", conta Degrazia.
O primeiro livro lançado pelo Grupo Vereda de Edições Cooperativadas foi o volume de poemas Em Mãos, com a participação de César Pereira, Dilan Camargo, Humberto Zanatta, José Eduardo Degrazia, Selvino Heck, e Umberto Guaspari Sudbrack. Ao longo de sua trajetória, o grupo lançou antologias de contos, poemas e ensaios. "Lançamos agora o Vereda 4, recentemente", comenta, mostrando que a chama coletiva ainda resiste.
A experiência do Vereda acontecia em paralelo a outras formas de organização independente, como a Coojornal, cooperativa de jornalistas que atuava também durante a ditadura. "A Coojornal teve um papel fundamental naquele período", lembra Degrazia. "Faltam esses formatos hoje — formas de rede, de cooperação. Hoje tudo é muito mais fragmentado."
Ele compara o espírito daquela época com o cenário atual. "Naqueles anos, a gente entrava nas redações, conversava, tomava café com os jornalistas. Havia uma convivência, uma circulação entre literatura, jornalismo e política. Hoje isso praticamente desapareceu. Está tudo muito separado."
Miniconto como forma radical
Degrazia fala com entusiasmo quando o assunto são os minicontos. O gênero, que atualmente ganha cada vez mais espaço entre leitores e escritores, foi para ele uma descoberta precoce — e também uma espécie de resistência literária.
"Eu comecei a escrever contos e minicontos junto com a poesia, no início dos anos 1970", lembra o autor. "Tenho vários minicontos publicados no Caderno Sábado do Correio do Povo, em 1972, 73, por aí. Sempre gostei muito, embora na época ninguém soubesse direito o que era", explica. Degrazia diz que o miniconto foi visto com desconfiança durante muito tempo. "Achavam que era uma coisa menor, uma espécie de involução do conto, um conto mal feito", diz. "Mas o miniconto basta a si mesmo. Ele é uma forma específica da literatura, ligada ao conto e à poesia, mas que se transforma num gênero próprio."
Ao longo das décadas, o autor manteve a dedicação à forma breve, mesmo quando ela seguia marginalizada no Brasil. "Tenho livros praticamente só de minicontos, o que ainda é raro por aqui", comenta.
Seu livro Deus não protege os certinhos é um dos exemplos recentes dessa produção. Antes dele, Degrazia já havia sido finalista do Prêmio Nestlé, em 1996, com o volume de minicontos O Atleta Recordista — uma conquista que veio após mais de vinte anos escrevendo textos curtos. "Quando o livro ficou entre os finalistas, pensei: opa, tem algum sentido isso", recorda.
Segundo o escritor e presidente da Academia Rio-Grandense de Letras (ARL) Airton Ortiz a principal característica da sua produção literária é a multiplicidade e a versatilidade de gêneros, aliadas a uma forte vocação para a poesia e para a concisão narrativa, especialmente no miniconto. "É um mestre do miniconto, reconhecido como referência neste gênero em todo o Brasil", completa.
Para o escritor, o miniconto é uma narrativa que radicaliza as propriedades do conto tradicional. "O conto por si só já é breve, com poucos personagens e uma unidade de ação. O miniconto vai além: é uma forma ainda mais concentrada, que exige concisão extrema", explica. "Pode ter um ou dois personagens, às vezes uma multidão que funciona como um personagem coletivo. A ação é única e rápida. É um gênero radical."
Degrazia cita nomes como o mexicano Juan José Arreola e o guatemalteco Augusto Monterroso, autores fundamentais da forma breve. E lamenta que o gênero ainda não tenha conquistado o mesmo respeito no Brasil. "Na Espanha e em Portugal, por exemplo, há muito interesse. Tenho estudos sobre meus minicontos feitos lá, especialmente na Universidade de Salamanca e na Galícia", conta. Degrazia lembra da Editora Casa Verde, da escritora Laís Chaffe, que tem dado espaço aos minicontistas.
Obras selecionadas
Lavra permanente, poesia - Ed. Movimento
O atleta recordista, minicontos - Ed. Movimento
As cidades condenadas, poesia - Ed. Bestiário
As cidades conquistadas, poesia - Ed. Bestiário
Deus não protege os Certinhos, contos - Ed. Penalux
O Reino de Macambira, novela - Ed. Movimento
A Fabulosa Viagem do Mel de Lechiguana, romance - Ed. Movimento
Memórias da Febre, poesia - Ed. Penalux
O Samba da Girafa, infanto-juvenil - Ed. Mercado Aberto
O Homem que escrevia no Bar - Editora Sulina
* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação (Ufrgs) e editor do site Nonada Jornalismo.