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Publicada em 30 de Outubro de 2025 às 19:01

As muitas carreiras de Joaquim da Fonseca, o mestre gaúcho da aquarela

Com trajetória multifacetada, o pintor, ilustrador e professor Joaquim da Fonseca se mantém ativo aos 90 anos

Com trajetória multifacetada, o pintor, ilustrador e professor Joaquim da Fonseca se mantém ativo aos 90 anos

/MARCELLO CAMPOS/ESPECIAL/JC
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Marcello Campos
Técnica milenar de origem atribuída aos chineses (sempre eles), a aquarela costuma ter por base a aglutinação de pigmentos minerais, vegetais ou sintéticos a uma resina de goma arábica. O pincel é embebido em água e usado para diluir, depois aplicar o material sobre uma superfície em tecido ou papel de alta espessura (seco ou umedecido), resultando na criação de imagens cujos contornos imprecisos das manchas de cor cujos são responsáveis por um dos mais inconfundíveis estilos de pintura. Pode parecer algo simples, mas exige olhar sensível, mão firme e um imenso talento, sobretudo na representação figurativa de retratos, paisagens ou naturezas-mortas – um vaso de flores, por exemplo.
Técnica milenar de origem atribuída aos chineses (sempre eles), a aquarela costuma ter por base a aglutinação de pigmentos minerais, vegetais ou sintéticos a uma resina de goma arábica. O pincel é embebido em água e usado para diluir, depois aplicar o material sobre uma superfície em tecido ou papel de alta espessura (seco ou umedecido), resultando na criação de imagens cujos contornos imprecisos das manchas de cor cujos são responsáveis por um dos mais inconfundíveis estilos de pintura. Pode parecer algo simples, mas exige olhar sensível, mão firme e um imenso talento, sobretudo na representação figurativa de retratos, paisagens ou naturezas-mortas – um vaso de flores, por exemplo.
A história da arte no Rio Grande do Sul coleciona nomes de referência na modalidade. José Lutzemberger. Carlos Mancuso. Nelson Boeira Fiedrich. Vitório Gheno. João Mottini. Nenhum deles, talvez, tão diretamente identificado quanto Joaquim da Fonseca, em plena atividade aos quase 91 anos (a se completarem em fevereiro) e com uma carreira multifacetada. Produtor gráfico. Chefe de redação. Ilustrador. Diagramador. Publicitário. Designer. Escritor. Professor universitário. Artista plástico. Na origem está o guri nascido em Alegrete, quinto dos oito filhos de uma dona-de-casa e de um funcionário público transferido para Santa Maria e, por fim, Porto Alegre.
“Minha mãe era talentosa no desenho acadêmico e, mesmo sem ter visto ela em ação com lápis e papel, alguns trabalhos guardados me entusiasmaram a continuar rabiscando”, relembra. “A gente vivia na Capital desde 1948, quando eu tinha 13 anos, e meu divertimento preferido nos tempos de Colégio Julinho era o cinema. Os jipes, tanques e aviões que eu via nos filmes de guerra, reproduzia em papel quando chegava em casa, na Vila do Iapetec e depois na Azenha. No final da adolescência, escapei do serviço militar e fui aprovado no Instituto de Belas Artes, em uma época de professores como Aldo Locatelli, João Fahrion, Alice Soares, Ado Malagoli, Fernando Corona e Angelo Guido.
Antes de obter o diploma, aceitou convite para substituir na icônica Revista do Globo um ex-colega de escola que estava deixando o time de ilustradores. Suas habilidades extrapolavam a mera questão visual: percebendo que o rapazinho logo passara a dominar todo o processo de feitura de uma das mais respeitadas publicações culturais do País, em novembro de 1956 os irmãos Bertaso – donos da empresa – o encarregaram do setor de Planejamento gráfico. A competência demonstrada resultou na promoção, dez meses depois, à Chefia de Redação, algo impensável para um jovem que ainda nem somava 23 anos: “Eu sequer tinha experiência de vida para tamanha responsabilidade, mas dei conta do recado”.
Parceiro de profissionais do gabarito de Célia Ribeiro, José Zukauskas, Lineu Martins, Tereza Brochado da Rocha Garbim, Antônio Ronek, Irene Mayer, Leo Guerreiro, Antônio Goulart e colaboradores como o escritor Erico Verissimo, Joaquim permaneceu no cargo de setembro de 1957 a dezembro de 1960, eventualmente contribuindo também com ilustrações. “Saí da revista porque a empresa tinha uma regra interna de não manter o empregado mais de dez anos, devido a questões trabalhistas que me fogem agora”, conta. Fiquei algum tempo parado, até ir para o recém-fundado jornal Última Hora, como diagramador, algo também novo na imprensa gaúcha”.
O periódico só durou até 1964. Antes, um amigo da MPM Propaganda avisou que a agência precisava de desenhistas, pois a qualidade técnica dos jornais ainda era péssima na reprodução de fotografias, exigindo que vários anúncios dependessem de imagens ilustradas. Da prancheta a serviço dos mais variados clientes de médio e grande porte, durante mais de uma década, o balanço é positivo, mas com uma ressalva. “Não me agradava muito trabalhar nessa área, porque naquele tempo a publicidade ainda era meio mal vista e muita vezes levava a culpa de tudo”, explica. O capítulo seguinte seria um caminho naturalmente seguido por outros contemporâneos: a atividade docente.

Uma trajetória de vários matizes

Além das artes visuais e da publicidade, Joaquim da Fonseca teve longa e marcante carreira como professor universitário

Além das artes visuais e da publicidade, Joaquim da Fonseca teve longa e marcante carreira como professor universitário

/MARCELLO CAMPOS/ESPECIAL/JC
As viradas de página no percurso de Joaquim da Fonseca por diferentes segmentos são um exemplo da máxima de que "uma coisa leva a outra". Em 1974, a troca da publicidade pela promessa de um recomeço como professor de Artes Gráficas na Universidade Federal de Santa Maria deflagrou um processo responsável não apenas pela ampliação de seus interesses pessoais e profissionais, mas também por tornar seu nome conhecido junto a públicos mais amplos. O retorno a Porto Alegre, com sua transferência para o curso de Comunicação Social da Ufrgs, dois anos depois, seria decisivo na ampliação desse alcance.
Professora e pesquisadora da Pós-Graduação em Comunicação da Ufrgs, além de ensaísta e escritora, Maria Helena Weber contribui com dois relatos: o de aluna e, depois, colega. "Cursando Propaganda e Relações Públicas, tive aulas de fotografia e outras disciplinas com ele, que encantava as turmas pela gentileza e estímulo a uma visão de mundo sob a perspectiva da arte e na qual éramos protagonistas da experiência acadêmica. O bom humor sempre foi outra marca. Houve uma ocasião em que cheguei atrasada, com o cabelo preso e coberto por um lenço, escondendo os preparativos do penteado para uma festa. Assim que entrei, o Joaquim me escolheu para ser a modelo da nossa sessão de fotos daquele dia", diverte-se.
A opção pela docência depois do bacharelado simultâneo nos dois cursos acabou por reconduzir Maria Helena à mesma universidade em 1986, dessa vez como professora de Jornalismo Comparado e outros temas. "Foi muito bacana a oportunidade de reencontrar o Joaquim, que continuava a conquistar os alunos com sua sabedoria, simpatia e postura de acolhimento, inspirando tantas gerações de estudantes, dentro e fora, durante e após a faculdade. Também resultou desse novo contato uma grande amizade."
 

Autodescoberta em solo americano

Joaquim da Fonseca em 1981, período em que esteve nos EUA

Joaquim da Fonseca em 1981, período em que esteve nos EUA

/ACERVO PESSOAL JOAQUIM DA FONSECA/REPRODUÇÃO/JC
Um grande salto se deu de 1981 a 1983, com uma pós-graduação em Artes Gráficas na Universidade de Syracuse (EUA). A fase norte-americana foi aproveitada ao máximo, num ambiente repleto de estudantes das mais diversas nacionalidades, engajados à generosa oferta de disciplinas e atividades complementares, inclusive em fotografia e pintura, paixões antigas mas relegadas por Joaquim a um segundo plano. Esse cenário de efervescência intra e extraclasse teria desdobramentos responsáveis por uma guinada nos rumos do único brasileiro da turma. O relato é do próprio, mais de quatro décadas depois:
“Participei de um curso paralelo sobre imagens urbanas, ministrado pelo artista local Jerome Witkin, com quem eu queria muito trabalhar. Ele já se dedicava ao uso da tinta acrílica e se encantou ao ver meus trabalhos feitos com o mesmo material, nos quais viu grande semelhança com o estilo da aquarela. Fui então incentivado a aderir a essa técnica e passei a me dedicar exclusivamente, com paisagens urbanas e, quando voltei para casa, também as rurais. Meu foco inicial foi a região da colônia, depois na Campanha, onde tinha vivido a infância. Eu passei a me hospedar com tintas e telas nas fazendas de conhecidos em Alegrete, Uruguaiana, São Borja e Itaqui”.
Motivos urbanos (como o Arroio Diluvio) e rurais marcam aquarelas do artista | ACERVO PESSOAL JOAQUIM DA FONSECA/REPRODUÇÃO/JC
Motivos urbanos (como o Arroio Diluvio) e rurais marcam aquarelas do artista ACERVO PESSOAL JOAQUIM DA FONSECA/REPRODUÇÃO/JC
A coisa começou a ficar séria já nos primeiros tempos pós-Estados Unidos. Apresentado por um amigo em comum à dona da Galeria Mosaico, ele ali passou a realizar ao menos uma exposição por ano, sempre com repercussão na mídia e uma clientela cada vez maior de colecionadores particulares que ainda hoje lhe garantem um fluxo contínuo de encomendas, mesmo que a pintura nunca tenha sido seu meio de sustento. Na lista de admiradores está o gestor cultural Cézar Prestes, cuja amizade remonta à segunda metade da década de 1970, quando sua namorada (depois esposa) e futura jornalista Eleone Prestes estudava Comunicação da Ufrgs:
“A genialidade em brincar entre o figurativo e o abstrato, com traços e manchas de cor sugestivas, fazem suas aquarelas terem vida, como se o espectador estivesse vendo um filme. Em Porto Alegre, Bagé ou Japão, as imagens que o Joaquim produz têm uma capacidade especial de retratar o entorno com um olhar sensível para cenários e costumes. O resultado é um 'carimbo' que faz dele um artista inconfundível e referência nacional. Não bastasse tudo isso, escreve bem e é um mestre gentil, que divide conhecimento e está sempre aprendendo, inclusive com os jovens. Ele tem ajudado muito minha filha Mariana Prestes na técnica da aquarela”.
Cineasta hoje radicada na Espanha e diretora do documentário Milton Bituca Nascimento (2025), a gaúcha Flavia Moraes também guarda na memória afetiva a generosidade de Joaquim. “Quando eu tinha 6 ou 7 anos, meu pai, José Antônio Moraes de Oliveira, era redator na MPM Propaganda e muitas vezes me levava para o trabalho, no início da década de 70. O Joaquim era diretor de Arte e, sabendo de meu gosto por desenho, não só permitia que eu me sentasse com ele diante daqueles materiais todos, como dava grandes folhas de papel e dicas, além de mostrar trabalhos como o de Saul Steinberg (ilustrador romeno-americano). Foram momentos mágicos”.

Produção literária

Joaquim da Fonseca, aquarela ilustrando o prédio da Faculdade de Direito da Ufrgs

Joaquim da Fonseca, aquarela ilustrando o prédio da Faculdade de Direito da Ufrgs

/ACERVO PESSOAL JOAQUIM DA FONSECA/REPRODUÇÃO/JC
Com a aposentadoria pela Universidade em 1996, a pintura dividiu agenda com três desafios: o retorno à publicidade, a retomada da atividade acadêmica e o aprofundamento da atuação no setor editorial. O primeiro se deu com os estúdios Novum (junto a Flávio Cauduro) e Graph Design. De suas criações para clientes variados (Gerdau, Unipampa, Hotel Laghetto), a mais conhecida é a atual logomarca da Ufrgs (1997). Já o segundo se efetivou na coordenação dos cursos de Comunicação na Faccat, em Taquara (1998-2006), e como professor da Uniritter, em Porto Alegre (2005-2009). Ainda sobrou fôlego para ingressar, em 2020, como aluno da Faculdade de Arquitetura da Pucrs - matrícula trancada aos 88 anos, devido a uma artrose lombar que dificulta a frequência em disciplinas com visitas a obras, dentre outras tarefas práticas.
O terceiro abrange uma bibliografia consistente como autor e coautor. Joaquim, que já havia publicado pela Editora da Universidade o Glossário de Comunicação Visual (1990), lançou por outros selos os livros Caricatura - A Imagem Gráfica do Humor (vencedor do Prêmio Açorianos de 1999) e Tipografia & Design Gráfico - Produção de Impressos e Livros (2008). Junte-se à lista os guias turísticos Buenos Aires - de Boca a River (1996), Roma Católica (2001) e Alemanha, Uma Vez (2023). A boa recepção de público e imprensa foi ainda maior com Traçando New York (1991), reunindo crônicas de Luis Fernando Verissimo sobre a cidade e ilustrações do ex-colega dos tempos de MPM Propaganda. Um êxito que se repetiu em outros títulos da série, dedicados a Paris (1992), Roma (1993), Porto Alegre (1994), Japão (1995) e Madri (1997). E ainda há produções inéditas, prontas para sair da gaveta.
 

Pincéis e tintas à mão

Oficina de Aquarela na Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, realizada em 2023

Oficina de Aquarela na Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, realizada em 2023

/ACERVO PESSOAL JOAQUIM DA FONSECA/REPRODUÇÃO/JC
O jovem senhor Joaquim Tomaz Benício da Fonseca topou sem titubeios a proposta de pintar uma aquarela especialmente para a reportagem em seu apartamento-ateliê repleto de livros, câmeras fotográficas e outros objetos evocativos, no Centro de Porto Alegre. Um CD com gravações de Frank Sinatra na década de 1940 serviu de trilha ambiental para a demonstração de todo o processo, sob gestos tranquilos e mãos firmes, tendo como ponto de partida a fotografia de uma paisagem rural. "A composição artística não difere muito da musical, precisa de ritmo, harmonia, cores que rimam", comparou, enquanto saciava a curiosidade do observador sobre as mais diversas questões sobre vida e obra - algo parecido com o que ainda faz em seus eventuais workshops.
Calculados ou espontâneos, os traços e manchas de cor resultantes são também poesia visual com a rubrica de um mago que, desde piá, tem encontrado na arte uma forma natural de expressão. "Nunca cansei, apenas fui mudando a técnica", comentou. O trabalho em si ficou pronto em cerca de duas horas - em breve, deve estar em alguma galeria, pinacoteca ou na parede de um dos incontáveis fãs da sua técnica. Como o médico com quem Joaquim se consultava e que, de posse de uma das obras do paciente, confessou: "Adoro abrir um vinho e sentar diante daquela cena do Pampa gaúcho, que me emociona por relembrar minha infância em um lugar muito parecido".
 

Preservação da memória

Aquarelas retratando a Serra Gaúcha estão em exposição no Olivas, em Gramado

Aquarelas retratando a Serra Gaúcha estão em exposição no Olivas, em Gramado

/ACERVO PESSOAL JOAQUIM DA FONSECA/REPRODUÇÃO/JC
Uma boa amostra da produção mais recente de Joaquim da Fonseca pode ser visitada até o dia 30 de novembro no Espaço Cultural Olivas - rua Vereador José Alexandre Benetti nº 1.808, Linha Nova, em Gramado. São 23 aquarelas reunidas em exposição sobre o legado arquitetônico dos imigrantes alemães e italianos que colonizaram a região - algumas das casas onde viveram os colonos ou seus descendentes nem existem mais. O lote de pinturas foi adquirido em definitivo no início de outubro pela empresa proprietária do Parque Olivas, onde funciona a instituição. Com a palavra, o curador da mostra, Cézar Prestes: "as obras selecionadas sensibilizam o olhar e transcendem o gesto artístico, ao se tornarem documento, herança e narrativa das raízes culturais da cidade. Joaquim da Fonseca é uma espécie de guardião de memórias".

* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com.

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