“Era uma vez” é uma forma bastante clichê de se começar a contar uma história. Mas no caso da Leopoldis-Som essa epígrafe se adequa muito bem. Afinal, está se falando da produtora de filmes fundada há 110 anos cuja história é, com o perdão da expressão, cinematográfica.
Então, recomece-se assim: era uma vez um artista italiano chamado Italo Majeroni, que, no início do século 20, saiu de sua Itália em turnê pelo Brasil, mudou de nome, apaixonou-se por Porto Alegre e se tornou um dos pioneiros do cinema no Rio Grande do Sul. Se fosse um filme, este resumo poderia ser considerado uma sinopse. Mas, como nos roteiros cinematográficos, há muito mais reviravoltas para se contar esta história com os devidos início, meio e fim.
O início foi imprevisível como nas mais inventivas tramas aventurescas. Nascido em Nápoles, sul da Itália, em 1888, Majeroni cresceu em uma família de artistas e aos 12 anos já estava nos palcos. Seus avós e pais eram atores, e os tios e irmãos, mágicos, ilusionistas ou hipnotizadores. Integrando a compagnie de variedades de seu irmão, Majeroni conhece diversos países da Europa e América do Sul, dentre estes, o Brasil.
Numa dessas temporadas brasileiras, e já atendendo pelo pseudônimo Leopoldis, este transformista (habilidade de interpretar múltiplos personagens em cena) se encanta com a magia das novíssimas imagens em movimento. Uma arte fascinante e com menos de 20 anos de existência àquela época: o cinema. O primeiro contato com cinema foi ainda em Recife, Pernambuco, em 1915, onde monta um pequeno laboratório e produz pelo menos duas edições do cinejornal Pernambuco-Jornal. Mais tarde, o múltiplo artista escolheria Porto Alegre para trabalhar e viver.
“Este homem constitui um dos elos da história do cinema gaúcho”, aponta o jornalista, professor, cineasta e pesquisador Glênio Póvoas. “Leopoldis atravessa muitas décadas e está associado a uma produção cinematográfica que inicia pelo menos em 1915 em Recife e vai até meados de 1970 em Porto Alegre. São 60 anos de história”, assinala. Nos anos 1920, conforme registrou matéria da Revista O Globo, de 1945, Majeroni “montou um pequeno laboratório nas margens do Rio Guaíba, na Praia de Belas, 1.066, e começou a rodar películas documentárias”. Era o começo de uma era para o cinema gaúcho.
O meio dessa história é preenchido com muito trabalho, sucesso e pioneirismo. Primeiro, como Leopoldis-Film, na fase muda, até 1937; depois, Leopoldis-Som Produtora Cinematográfica Brasileira, quando inicia o período sonoro, até 1961; e, finalmente, Cinegráfica Leopoldis-Som. Entre a década de 1920 até o início dos anos 1980, a empresa produziu centenas de filmes com cenas do Rio Grande do Sul, registros preciosos da vida dos gaúchos, como festas, eventos, atividades empresariais e obras públicas.
Ao todo, a Leopoldis-Som produziu cerca de 380 documentários de curta-metragem, meia dúzia de médias e três longas documentais. Fez ainda cinco longas-metragens de ficção, entre estes, um marco do cinema gaúcho: Coração de luto, de 1967, estrelado por Teixeirinha. Realizou também propaganda política, trailers e muitos comerciais para a TV e salas de cinema. No total – silencioso e sonoro, documentário, cinejornal, ficção, comercial – sua filmografia chega a cerca de mil títulos. O acervo da Leopoldis-Som pertence, desde 1986, ao Museu do Trabalho. Há, porém, materiais ainda não-identificados.
O fim dessa história é tal qual nos filmes de drama, que nem sempre se encerram do jeito que o espectador gostaria. Depois de apostar num novo filão, o de longas de ficção, e já sem a participação de Majeroni, morto em 1974, a Leopoldis-Som decide encerrar as atividades. Entretanto, diante de tantos feitos e da preservação hoje do que é possível deste patrimônio audiovisual, pode-se dizer que essa história tem, sim, um final feliz. Pode subir os letreiros, pois a memória do cinema gaúcho resta sã e salva.
The Great Fregoli, Il Piccolo Leopoldis
Em 16 de agosto de 1914, o jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, anunciava as atrações do espetáculo de variedades, que ocorreria a partir daquele dia no Theatro Republica, no Centro da cidade, em elegante português da época da República Velha: "Cabeça fallante / Leopoldis / Estréa: O desapparecimento mysterioso de um Cavallo vivo / A caixa mysteriosa / Telepathia e auto sugestão". Esta era parte do programa que a família Majeroni levaria aos palcos cariocas. Dentre eles, estava o jovem Italo Victor Emmanuel Majeroni, pouco mais de dois meses antes de completar 26 anos, a 23 de outubro.
Oitavo e último filho de Napoleone (1842-1918) e Adelaide Bruno (1845-1916) e irmão de Achille Edoardo (morto ainda criança), Oreste, Augusta, Amedeo, Achille, Edoardo e Manlio, ele começara na companhia mambembe familiar como "macchiettista musicale" (algo como "caricaturista de números musicais") e dava os primeiros passos como cômico e transformista. Somente nos primeiros anos do século 1920, a Cav. A. Majeroni já havia excursionado pela Europa e Ásia, passando por Grécia, Espanha, Itália, Egito e Turquia - neste último em Constantinopla, onde apresentaram-se, inclusive, no teatro do palácio do sultão Abdul-Hamid.
Naquela temporada no Rio de Janeiro - a qual teve na plateia o então presidente Hermes da Fonseca - e já tendo passado por diversas capitais e cidades brasileiras, o nome 'Leopoldis' já constava na programação como sendo o "celebre cômico parodista excêntrico musical". Era o próprio Italo Majeroni, que havia adotado o pseudônimo numa homenagem a seu ídolo, o transformista italiano Leopoldo Fregoli (1867-1936), o "grande Fregoli". Espécie de pop star do início do século 1920, Fregoli dominava todos os recursos teatrais, mímica, ilusionismo, prestidigitação, pantomima, magia, ventriloquia, canto e acrobacia. Como descreveu a Revista O Globo, "aquele transformista que foi o maior de todos os tempos e representava a ópera Fausto sozinho".
Funcionário da Leopoldis-Som com a câmera fabricada por Italo Majeroni
ACERVO MUSEU DO TRABALHO/REPRODUÇÃO/JC
"Talvez a chave para se entender porque Italo Majeroni adota o nome Leopoldis venha de sua admiração por Fregoli e pela arte do transformismo, pois o nome completo do artista é Leopoldo Fregoli. Daí poderia ter nascido o Leopoldis, uma reverência de Italo ao 'grande Fregoli'", supõe Glênio Póvoas no artigo A história do cinema gaúcho é contínua, de 2007.
A história de Fregoli, assim como ocorreria com Majeroni, também tem ligação com o cinema. Em 1898, ele adquire um Cinematógrafo Lumiére depois de uma visita a Lyon e roda com o aparelho uma série de filmes, os quais exibe em seus espetáculos com o título Fregoligraph. Um ano depois, valendo-se de suas habilidades transformistas, ele interpretaria 20 personagens no filme L'homme protée, do famoso pioneiro do cineasta fantástico, o francês Georges Méliès.
A ligação de Majeroni com Fregoli realmente parecia mágica. Como em cinema. Em 1904, naquela marcante tournée por Constantinopla, Majeroni, então com apenas 15 anos, já referenciava seu ídolo. Porém, como ainda não se julgava à altura dele, achou mais sensato assinar como "Il Piccolo Fregoli" ("O Pequeno Fregoli", em tradução do italiano).
Mas seus destinos haveriam de se cruzar novamente. Coincidentemente, ambos excursionavam pelo Brasil de forma concomitante em agosto de 1915: Leopoldis, com a trupe Majeroni, no Cine-Theatro Coliseu, em Rio Grande, e Fregoli, a 1.801,7 quilômetros de distância, no Rio de Janeiro, onde encontrava-se em cartaz. Isso, no mesmo e fatídico ano em que Majeroni, já no Nordeste, daria início à carreira cinematográfica seguindo os passos do seu mestre.
Vivo ou morto
Obstinação era uma marca de Italo Majeroni. Também pudera, para alguém que, em cerca de seis décadas, construiu uma das mais singulares trajetórias do cinema gaúcho e brasileiro do século XX. Após filmar como ator, no Rio de Janeiro, o longa dramático Vivo ou Morto, de Luiz de Barros, em 1916, e do breve período em Recife, Majeroni se estabelece em Porto Alegre nos anos 1920. Seu primeiro contato com a cidade havia sido em agosto de 1912, quando esteve no Theatro São Pedro, ainda como ator teatral. Agora, porém, a saga era como produtor e cinegrafista. Para ele, era caso de vida ou morte.
Astúcia não faltou. Um dos primeiros trabalhos da então Leopoldis-Film em Porto Alegre teria sido a filmagem das obras do Cais do Porto, em 1924, encomendada pelo presidente do Estado (governador) Borges de Medeiros. "Não se tem registro de outras filmagens de Leopoldis nos anos 1920, até o documentário longo A revolução de 3 de outubro, de 1930, do qual só restam fragmentos", explica Glênio Póvoas. Com a exibição, em junho, do curta-metragem sonoro A Festa da Uva de 1937, inicia-se a nova e segunda fase da empresa, marcada pela intensa produção de filmes institucionais, inclusive com a fabricação de equipamentos próprios. A base de sustentação da produtora era o documentário de encomenda, tendo como grande cliente o governo estadual e suas secretarias, órgãos e departamentos, como Daer, CEEE e Brigada Militar, bem como empresas, prefeituras e instituições.
Havia quem pegasse junto nesta obstinação: os "braços direitos" Derly Martinez e Fleury Bianchi. Martinez começa como iluminador na Leopoldis-Som nos anos 1940 e exerce todas as funções em menos de dez anos até tornar-se sócio. O filho, o médico Denis Martinez, relembra uma epifania de seu pai em relação ao fazer cinematográfico. "Tem uma história que o pai sempre contava, que ele, com 7 anos, certa vez passeava na rua com sua mãe e achou no chão o fotograma de um filme. Com aquilo na mão, ele disse: 'eu ainda vou trabalhar com cinema'. Aos 14, ele já fazia iluminação e câmera na Leopoldis, filmando depois por todo o Rio Grande do Sul", recorda.
Bianchi, por sua vez, era parceiro de trabalho de longa data de Leopoldis, auxiliando-o pelo menos desde 1937. Ele e Martinez são responsáveis pela fotografia de dezenas de trabalhos da produtora até assumirem, juntos, nos anos 50, a presidência da agora Cinegráfica Leopoldis-Som. Nesta fase, também entra na empresa Odone Silveira, primeiro como cinegrafista e pau-de-luz e, posteriormente, nas funções de sócio-gerente e laboratorista.
De fato, aquele foi um momento de grande produtividade da Leopoldis-Som. "A partir de 1954, período de Martinez à frente da empresa, a produção ganha um novo impulso, mais perto de uma noção industrial", observa Póvoas. Nesta terceira fase, de tão pujante, teve de se aumentar a equipe para dar conta do crescimento da produção. Nos anos 1960, a Leopoldis-Som vai produzir também muita publicidade, e é quando decidem apostar em um nicho ainda não explorado por eles: o de filmes de ficção. De novo, a obstinação.
O Rio Grande passou por aqui
Quem assistiu televisão no início dos anos 2000 no Rio Grande do Sul provavelmente se lembra do telejornal Teledomingo, transmitido pela RBSTV nos domingos à noite e que tinha, a cada começo de edição, o seguinte bordão anunciado pelos apresentadores Regina Lima e Tulio Milman: "A partir de agora, o Rio Grande passa por aqui". Afora as reportagens jornalísticas num perfil de revista eletrônica, a sentença podia ser dita com segurança pela emissora, em boa parte, pela qualidade do acervo que esta havia reservado para exibir especialmente neste programa.
Eram os filmes da Leopoldis-Som, que traziam imagens históricas de eventos do passado no Rio Grande do Sul, como as da Porto Alegre de 1938, a primeira Exposição Estadual de Animais e Produtos Derivados (posteriormente intitulada de Expointer), em 1940, o reaparelhamento da viação férrea do Rio Grande do Sul, em 1954, bem como as únicas filmagens que restaram da fatídica enchente de 1941.
Esse resgate só foi possível graças a um contrato de cooperação cultural firmado pela RBS com o Museu do Trabalho pelo qual a emissora se obrigava a recuperar, catalogar, organizar, manter e providenciar a telecinagem para VT das fitas com filmes integrantes do acervo. Coube a Glênio Póvoas realizar, entre 2008 e 2010, o exaustivo trabalho de consolidação da catalogação deste arquivo. "Nesse período, revisei todas as fitas, o que equivale a cerca de 171 horas ou sete dias e três horas de imagem e/ou som", conta.
O advogado e sociólogo Marcos Soares, fundador do Museu do Trabalho, conta como o precioso material da Leopoldis-Som chegou a suas mãos. "Numa conversa informal com um amigo no Chalé da Praça XV, ele me falou sobre a preocupação com o acervo da Leopoldis-Som, que estava mal acondicionado, e da intenção de Fleury Biahchi de vendê-lo. Naquela noite eu não dormi, só pensando em como comprar aquele acervo", relembra. "No outro dia, saí atrás do sr. Bianchi". Por 15 mil cruzeiros (algo em torno de R$ 5,4 mil à época), Soares adquiriu o acervo. Hoje, ele pretende, a partir de novo projeto junto à RBS-TV, ampliar o acesso ao público em geral.
Still de cinejornal que registrou a passagem do Graf Zeppelin pelos céus de Porto Alegre
ACERVO MUSEU DO TRABALHO/REPRODUÇÃO/JC
Dentre os raros filmes ali contidos, encontram-se edições do cinejornal Atualidades Gaúchas, uma continuação da ideia empreendida por Italo Majeroni no Recife entre 1915 e 1917. Espécie de diário audiovisual da história gaúcha do século XX, o Atualidades Gaúchas era exibido como complemento dos longas estrangeiros nos cinemas gaúchos, toda segunda-feira. Estima-se que, da fase muda, ainda nos anos 1930, tenham sido pouco mais de 20 programas. Já no período sonoro (1942 e 1979), somam-se volumosos 477 números, todos com 10 minutos cada e uma média de cinco assuntos por vez, totalizando mais de 2 mil temas filmados.
Além dos filmes, fazem parte dos arquivos preservados diversos documentos e equipamentos, como câmeras e documentação em papel com roteiros, folhas com descrição dos planos filmados, entre outros. A maior parte da produção anterior a 1961, no entanto, foi perdida em 1965 em um incêndio no depósito da Leopoldis-Som, na rua Gonçalves Dias, bairro Menino Deus. Ali se concentravam os rolos de nitrato, material altamente sensível e inflamável. Destes rolos, o que ainda existe está, na maior parte, no Museu do Trabalho; há material também na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, tratado com destaque dentro do Projeto Nitratos, que promove, desde 2023, a conservação, catalogação e digitalização de filmes em nitrato da coleção mais antiga do cinema brasileiro.
O maior golpe do mundo
O crítico de cinema Tuio Becker disse, certa vez, que Coração de Luto marca o início do cinema gaúcho. O que talvez seja um exagero denota, no entanto, o tamanho do êxito do filme não só no Rio Grande do Sul como no Brasil. Depois de longa trajetória na produção de documentários de curta-metragem e cinejornais, a Cinegráfica Leopoldis-Som se lança na ficção com um projeto de forte potencial: rodar um longa sobre a canção homônima de Teixeirinha. Deu certo, mas, por incrível que pareça, o sucesso representou também o começo do fim da Leopoldis-Som.
O filme, lançado em 1967, marca o início do 'Ciclo da Bombacha e Chimarrão' no cinema gaúcho. Dirigido pelo espanhol Eduardo Llorente, radicado no Brasil desde os anos 1950 e escolhido por sua boa experiência com o 'Cinema Caipira', em alta naquele momento, Coração de Luto cativou o público País afora. Em Porto Alegre, ficou seis semanas consecutivas no Cine Avenida. Por onde passava, as salas de cinema lotavam.
A empolgação natural continha, na verdade, certa dose de inocência. "O filme foi pessimamente distribuído. Havia poucas cópias e muitas cidades querendo exibir", salienta o jornalista, crítico de cinema e biógrafo de Teixeirinha, Daniel Feix. Resultado? O filme rendeu muito menos do que poderia. Somava-se a isso o fato de que, até 1970, não existia controle de bilheterias detalhado no Brasil, o que facilitava desvios. Denis Martinez revela que, muitos anos depois, o pai e Fleury Bianchi ainda estavam na Justiça atrás de valores não repassados por distribuidores. O montante, atualizado, chegaria a R$ 1 bilhão. Esse dinheiro, porém, nunca chegou.
Após Coração de Luto, a Leopoldis-Som realiza outras produções: Pára, Pedro! (1969), Não aperta Aparício (1970), Janjão não dispara...foge! (1970) e O amor em quatro tempos (1970). Nenhum fez sucesso como o primeiro, e as contas não fechavam. Martinez, mesmo lamentoso, se viu forçado a considerar o fim do negócio. Afinal, investir nos longas era oneroso e incerto, e a televisão abocanhava agora o filão dos cinejornais. Não havia para onde correr. Era um duro golpe. O maior do mundo.
Sinais de outros tempos. Em 1981, roda-se o último filme da mítica Leopoldis-Som. Chegava ao fim um sonho. Sonho nascido, há mais de um século, do desejo genuíno de um pioneiro e de seus discípulos igualmente contaminados pela magia do cinema. Um sonho que resultou mais do que apenas na criação de imagens em movimento, mas, sim, no patrimônio audiovisual de um povo.
* Daniel Rodrigues é jornalista, escritor, radialista e crítico de cinema. Atual presidente da Associação de Críticos de Cinema do RS (Accirs), tem duas obras lançadas: Anarquia na Passarela, vencedor do Açorianos de Literatura, e Chapa Quente, além de participação em antologias de contos e no livro 50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho, editado pela Accirs.