Alcy Cheuiche é um dos escritores mais reconhecidos e respeitados do Rio Grande do Sul. Ao longo de quase 60 anos de carreira, ele fez do romance histórico a sua principal marca. Em sua obra, já retratou personagens como Santos Dumont, João Cândido, o Almirante Negro, Sepé Tiaraju, Bento Gonçalves, Garibaldi e Anita, Getúlio Vargas, entre muitos outros.
O escritório em que costuma escrever em seu apartamento é recheado de livros e fotos de autores e personalidades que ele admira, como Ernest Hemingway, Erico Verissimo e Mario Quintana. Cheuiche completou 85 anos em julho, mas sua vitalidade é impressionante. Durante esta entrevista concedida para o Jornal do Comércio, ele se mostra empolgado diversas vezes ao relembrar seus livros e histórias da trajetória.
No último dia 13 de agosto, Cheuiche deu a palestra Três brasileiros que marcaram a história do País no Ministério da Defesa, em Brasília. Ele destacou os patronos das Forças Armadas: Joaquim Marques Lisboa, Marquês de Tamandaré (Marinha), Luís Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias (Exército) e Santos Dumont (Aeronáutica). Ele também recebeu a Medalha da Ordem do Mérito da Defesa. A outorga se deve aos seus livros sobre as três personalidades.
Para se preparar para a palestra, Cheuiche estava relendo Nos céus de Paris – o romance da vida de Santos Dumont. A obra nasceu depois que o escritor encontrou na vasta biblioteca de seu pai um livro sobre o aviador. “Aí aconteceu que ele deitava cedo, ele era militar da reserva e acordava também muito cedo para tomar chimarrão. Eu não consegui me deitar, fui lá procurar e achei as memórias do Santos Dumont em francês. Aí eu fiquei impressionado. Passei a noite lendo o livro”, diz. Ele percebeu que o livro foi escrito em 1904, dois anos antes do voo de 14 Bis; e se empolgou em escrever o romance.
Para Cheuiche, o romance histórico não pode fugir da realidade, mas tem que recriar a vida. “Após a leitura desse livro, uma sobrinha neta do Santos Dumont me escreveu a seguinte mensagem. ‘Li tudo o que consegui sobre a vida do meu tio avô. Em todos os outros livros, eu só encontrei o inventor. No seu romance histórico, sem nunca fugir da realidade dos fatos, encontrei, além do inventor, um ser humano extraordinário, de que minha mãe sempre falava’. Então, é isto para mim”, explica.
O escritor destaca ainda que sua preocupação não é apenas informar o leitor. “Essa é a diferença para um livro de história. Ele precisa dizer de onde ele conseguiu aquela informação. Às vezes, as notas de rodapé vão até a metade da página. Eu admiro muito o historiador, leio os livros da área para desenvolver os meus, mas eu não posso contar da mesma maneira”, afirma. Cheuiche cita Cervantes para reforçar sua posição: “Há 400 anos, Cervantes dizia: ‘o escritor tem direito a muita coisa, menos a fatigar o leitor’. É o contrário, tenho que acender a cabeça do leitor, fazer com que ele não queira parar, enquanto não terminar o livro”, acredita.
Cheuiche integra a Academia Rio-Grandense de Letras, onde ocupa a Cadeira 37, cujo patrono é Felipe de Oliveira. Para o presidente da instituição, Airton Ortiz, o autor tem uma carreira consagrada na literatura gaúcha, em especial no romance histórico. “Ele é o Decano da Academia e se trata de um dos intelectuais mais refinados do Rio Grande do Sul. Alcy também tem grande importância na formação de novos escritores (e leitores) através das suas oficinas literárias”, aponta.
Entre as várias distinções por sua atividade literária, entre elas as medalhas Simões Lopes Neto, Santos Dumont, Oswaldo Aranha, e os prêmios literários Açorianos e Troféu Laçador, entre outros, Cheuiche em 2023 também recebeu o título de Cidadão de Porto Alegre da Câmara de Vereadores. Entretanto, ele elege qual é o maior prêmio que ganhou ao longo desses anos. “Eu não tenho livro encalhado. Os leitores me leem, sou lido pelas pessoas. Então, isso é muito gratificante para mim, porque eu escrevo para o leitor”, diz.
Escritor e médico-veterinário
Alcy Cheuiche estava fazendo doutorado na Alemanha quando decidiu que dedicaria sua vida à atividade literária
BRENO BAUER/JCNascido no dia 21 de julho de 1940 em Pelotas, Alcy Cheuiche mudou-se antes dos cinco anos para Alegrete. "Lá eu encontrei algo que moldou muito a minha vida: a paixão pelo campo. Aprendi a montar cavalo quando eu tinha cinco anos", diz. Seu pai era o general Alcy Vargas Cheuiche, e a mãe se chamava Zilah Maria da Silva Tavares. O pai também era médico-veterinário, além de ser ótimo contador de histórias, duas características que influenciaram muito na vida do filho.
Outra referência na infância foi o escritor Monteiro Lobato. "Quando ele morreu, eu senti como se fosse uma pessoa da família. A sua leitura realmente teve um grande impacto. E eu continuo relendo as obras dele até hoje", diz. Daquele período ele recorda também do colégio Oswaldo Aranha. "Eu só tenho a agradecer, porque fiz toda minha trajetória estudantil nesse lugar, e era um ensino de alto padrão, tanto é que eu cheguei aqui, passei direto no vestibular da Ufrgs", diz.
Aos 18 anos ingressou na Faculdade de Veterinária da instituição, onde ficou em primeiro lugar quando se formou. Isto o levou a conseguir uma bolsa de estudos para fazer o mestrado na França, em 1965, com 25 anos. É quando volta ao Brasil que publica seu primeiro livro, começando pela poesia, o Versos do Extremo Sul. "Quando eu cheguei em Porto Alegre, eu tinha uma saudade de voltar para o campo, e muitos dos versos falam sobre isso", explica. Um tempo depois foi para a Alemanha para o doutorado. Durante sua temporada na Europa, manteve uma coluna semanal de crônicas no jornal Correio do Povo intitulada Cartas de Paris.
Foi na Alemanha que Cheuiche começou a escrever o famoso livro O Gato e a Revolução, e também foi onde decidiu que seria escritor. Ele conta que sua casa era um ponto de encontro de diferentes estudantes estrangeiros que estavam no país. "Eu chamava minha casa de Torre de Babel", recorda, lembrando que a língua escolhida para todos se entenderem era o alemão.
Alcy Cheuiche começou a escrever seu romance de estreia O Gato e a Revolução quando ainda residia em solo alemão
MARCO NEDEFF/DIVULGA??O/JC
Ele lembra que uma das confraternizações se transformou em um debate acalorado sobre golpes de Estado na América Latina. Os latino-americanos presentes apontaram para os efeitos do colonialismo europeu como uma das raízes das instabilidades políticas. "O estado de injustiça social leva a que nós podemos fazer revolução por qualquer coisa, até por causa de um gato", comentou Cheuiche. Naquela noite, ele não conseguiu dormir. Pegou papel e caneta e escreveu o primeiro capítulo do que viria a ser o livro O Gato e a Revolução. Na sequência vieram o segundo e o terceiro. "Cheguei à conclusão de que o que eu queria na minha vida era ser escritor", disse.
A decisão não foi fácil. Aos 26 anos, com carreira acadêmica em andamento, ele enfrentou o dilema Após o que chama de uma de suas raras 'reuniões consigo mesmo', decidiu pedir demissão ao orientador na Alemanha. O professor não queria aceitar sua saída, mas a escolha estava tomada. "Eu quero ser escritor. Então vou trabalhar como veterinário para pagar as contas do escritor", explicou.
Com o tempo, Alcy conseguiu se dedicar cada vez mais à literatura. Principalmente após a criação da revista científica e cultural A Hora Veterinária. A experiência editorial aconteceu em convênio com uma publicação francesa. "A revista não se limitava ao campo veterinário — além da clínica e da cirurgia, também tratava de meio ambiente e ecologia", diz.
A publicação ajudou a garantir a estabilidade necessária para que ele pudesse se dedicar à literatura. Esse equilíbrio foi fundamental para sua trajetória. Em 2006, ao ser homenageado como patrono da Feira do Livro, fez questão de reconhecer publicamente. "Agradeci à medicina veterinária por ter me ajudado a chegar ali. Não cheguei como veterinário, cheguei como escritor, mas a minha atuação na área foi fundamental", diz.
Os processos no romance histórico
Escritor ocupa a cadeira 37 na Academia Rio-Grandense de Letras
BRENO BAUER/JCCom o lançamento de O Gato e a Revolução, em 1967, Alcy Cheuiche começou a traçar sua história na literatura do Rio Grande do Sul. A novela foi censurada e o autor processado. Apesar das dificuldades, isso não o desanimou. "Eu abandonei meu doutorado na Alemanha para ser escritor. Então, pensei: vou escrever outro livro. Preciso de um tema que eles não possam censurar", diz.
Na época, ele já estava em São Paulo, trabalhando na divisão veterinária de uma empresa. Instalado no edifício Copan, Cheuiche frequentava a biblioteca pública da cidade para as pesquisas históricas, uma vez que a localização era próxima. Então, ele mergulhou na história das missões jesuíticas do Rio Grande do Sul e na figura de Sepé Tiaraju. "Eu já conhecia a história, claro. Inclusive o próprio Erico Verissimo, no Tempo e o Vento, tem um capítulo dedicado a esse universo", diz. Entre a pesquisa e a escrita, cinco anos se passaram, e o livro saiu em 1975, sendo um grande sucesso. Desde então, a obra já ganhou várias novas edições, sendo traduzido para diversas línguas, como o espanhol e o alemão, além de ganhar também uma versão em quadrinho.
Cheuiche também revisitou a trajetória de Bento Gonçalves, personagem central em sua obra A Guerra dos Farrapos. Ele narra um episódio decisivo para a construção do personagem: a fuga da prisão no Rio de Janeiro. Bento teria conseguido escapar da Fortaleza da Laje, mas decidiu voltar ao cativeiro ao perceber que o companheiro Pedro Boticário não conseguira atravessar um túnel. "Essa volta dele me definiu que ele não era somente o líder de uma revolução. Ele não era um herói. Isso é mais do que herói, isso é ser um ser humano", comenta.
Para o autor, esse olhar sobre a humanidade dos personagens é o que dá sentido ao romance histórico. "Não vou contar só as façanhas militares. Vou contar a vida. Bento Gonçalves foi leal com os amigos, teve uma vida matrimonial maravilhosa. Era um ser humano extraordinário", afirma.
Cheuiche garante que sua escrita busca apresentar os fatos de modo a prender a atenção do leitor. "Para ajudar a contar a Revolução Farroupilha em si, posso contar a vida de Bento, que foi quem fez a guerra. O que eu quero é que o leitor pegue o meu livro e vá até o fim. O meu livro é escrito para o leitor", conclui.
Ao falar sobre o tempo dedicado às pesquisas para escrever um romance histórico, Alcy Cheuiche explica que sua metodologia mudou ao longo dos anos. "Antes eu tinha que fazer toda a pesquisa para depois começar. Hoje eu vou pesquisando e escrevendo. Se lá adiante surgir uma coisa nova e o livro ainda não foi publicado, eu posso mexer", afirma.
Segundo ele, a produção de uma obra costuma variar, mas o mínimo é de um ano. "Menos do que isso, entre pesquisa e redação de um romance histórico, é difícil. Também ganhei experiência, tenho muito mais facilidade do que antes. Tenho quase cinquenta livros publicados. É pela qualidade da pesquisa e pelo tempo que leva que eu não tenho 80 ou 100 livros. Mas é a qualidade e a relevância que importa", acredita. Escrever, para Cheuiche, vai além da obrigação profissional: é um ato que o transforma. "Eu sou feliz escrevendo. Quando eu começo a ficar enjoado, minha mulher me manda escrever. Escrever me faz ficar muito melhor, de temperamento e tudo."
Cheuiche também leciona e organiza oficinas literárias desde o começo dos anos 2000. "Você está sempre aprendendo. O bom professor aprende junto com o aluno e não concorre com o aluno", diz. Ele contabiliza 116 livros publicados por seus alunos, entre coletivos e individuais. Mais do que colegas, ele os define de outra maneira: "São a minha família literária."
Amizade com Sergio Faraco
Alcy Cheuiche em 2005, quando estava entre os 'patronáveis' para a Feira do Livro de Porto Alegre
CLAUDIO FACHEL/ARQUIVO/JCA amizade entre Alcy Cheuiche e Sergio Faraco tem 80 anos. Os dois foram colegas no colégio, desde o jardim da infância, em Alegrete. Outra coincidência é o aniversário: Cheuiche é quatro dias mais velho, de 21 de julho, enquanto Faraco nasceu no dia 25 de julho. "E como é que a gente ia pensar lá pequenininho que os dois iam ser escritores, não é?", ri Alcy.
Faraco lembra quando ambos tinham cinco anos e a empregada da casa de seus pais os levava para o Jardim da Infância. "Nós caminhávamos à frente dela, de mãos dadas. Fomos colegas no então Curso Primário e no Ginásio. Seguimos nos encontrando no curso de nossas vidas até que ele foi para Paris e eu para Moscou, mas nos correspondíamos", diz.
Durante o início da ditadura no Brasil, Cheuiche estava na França e recebeu uma carta de Faraco, que estava estudando na então União Soviética. "Meu contato com a família foi totalmente interrompido, e então Alcy teve a grandeza de servir de intermediário. Ele recebia em Paris as cartas que eu enviava de Moscou, trocava os envelopes e as remetia para Alegrete, fazendo o mesmo quando as cartas vinham do Brasil", explica Faraco. Na volta para o Brasil, Alcy foi preso, acusado de ajudar um comunista a mandar correspondências para o Brasil. "Os caras ainda dizem que não houve ditadura. É muito fácil", afirma Cheuiche.
A amizade segue fortalecida ao longo dos anos. "Somos muito parecidos, era inevitável que eu também me tornasse um escritor. Prezo muito essa amizade que nunca se apequenou e tenho orgulho dela", conclui Faraco.
Histórias da Feira do Livro de Porto Alegre
Alcy Cheuiche segura foto dele jovem, ao lado do escritor Erico Verissimo
LUIS VENTURA/DIVULGAÇÃO/JCPara Alcy Cheuiche, a Feira do Livro de Porto Alegre representa muito mais do que um evento literário. "É uma experiência maravilhosa". Ele foi patrono em 2006, em uma época em que o cargo era escolhido por um processo que envolvia livreiros, editores, ex-patronos e diversas entidades culturais e educacionais.
Cheuiche lembra que chegou a ser indicado cinco vezes antes de conquistar o título de patrono, quando os concorrentes ainda eram chamados de 'patronáveis' e acompanhados de perto pela imprensa. "Eu fui candidato junto com jornalistas como o Galvani e o Ruy Carlos Ostermann", cita. A eleição, quando finalmente vencida, trouxe episódios marcantes. Logo no primeiro dia como patrono, um homem de Viamão se aproximou e lhe entregou um pacote. Dentro havia uma entrevista concedida por Cheuiche a um jornal, emoldurada como presente. "Ele mandou fazer e me deu o quadro. Foi muito emocionante."
O patronato também o colocou em contato com centenas de leitores e jornalistas. "Eu parei de contar nas 150 entrevistas. Eram rádios, jornais do interior, da capital e de fora do Rio Grande do Sul. Telefone tocando o tempo todo", diz. Ainda assim, não esquece momentos singelos, como a visita ao espaço infantil da feira. Uma professora apresentou-o como patrono, e uma criança, desconfiada, perguntou: "O que é patrono?". Após a tentativa de explicação da professora, Cheuiche interveio: "Olha para essa quantidade enorme de livros que tem aí. Tem que ter gente que escreve. O patrono é escolhido para representar todos eles", lembra.
Medalha da Ordem do Mérito da Defesa, recebida recentemente por Alcy Cheuiche em Brasília
BRENO BAUER/JC
Entre as memórias de Alcy Cheuiche como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, uma em especial veio de fora do País. Seu editor alemão na época — que já havia morado no Brasil e falava português — viajou especialmente para acompanhar a homenagem oficial ao escritor na feira de 2006.
Durante o discurso, Cheuiche lembrou de quando esteve na Alemanha, em 1994, para lançar o livro Ana sem Terra em edição alemã, e afirmou ter conhecido seu editor na "maior feira do mundo", a Feira de Frankfurt. Ao tomar a palavra, porém, o alemão fez questão de corrigir o amigo. "Ele disse que gosta muito de mim, tanto que veio especialmente por eu ser o patrono. Mas completou dizendo que eu havia dito uma inverdade".
Segundo o editor, Frankfurt pode até ser a maior em número de editoras e de livros, mas a feira mais importante do mundo sob o ponto de vista cultural é a de Porto Alegre. O argumento tinha um motivo central: o caráter democrático e gratuito do evento.
Obras destacadas
- O gato e a revolução 2ª Edição (AGE)
- Sepé Tiarajú - Romance dos Sete Povos das Missões 5ª Edição no Brasil (AGE) / 2ª Edição no Uruguai (Banda Oriental) / 1ª Edição na Alemanha (Ed. Evangélica Luterana)
- O mestiço de São Borja 5ª Edição (Ed. Sulina)
- A Guerra dos Farrapos 4ª Edição (Prêmio Literário "Ilha de Laytano") - Mercado Aberto
- Ana sem terra 8ª Edição no Brasil (Sulina) - 1ª Edição na Alemanha (Ed. Evangélica Luterana)
- Lord Baccarat 3ª Edição (AGE)
- A mulher do espelho 1ª Edição (Coedição Sulina/AGE)
- Nos céus de Paris - Romance da vida de Santos Dumont 1ª Edição Prêmios "RBS" e "Laçador" / 2ª Edição Pocket (Editora L& PM)
- Jabal Lubnan, as aventuras de um mascate libanês 1ª Edição - Sulina 2003
- Sepé Tiarajú - Revista em quadrinhos 3ª Edição - PontoCom - 2006
* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação (Ufrgs) e editor do site Nonada Jornalismo.