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Publicada em 21 de Agosto de 2025 às 17:10

Clube do Comércio: Protagonismo cultural além de bailes e festas

Instituição icônica na vida social e cultural da cidade, o Clube do Comércio de Porto Alegre tem sua trajetória detalhada em livro

Instituição icônica na vida social e cultural da cidade, o Clube do Comércio de Porto Alegre tem sua trajetória detalhada em livro

MARCELLO CAMPOS/ESPECIAL/JC
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Marcello Campos
Para muitos sinônimo de eventos elegantes e de almoços em um dos mais tradicionais restaurantes da cidade, o Clube do Comércio de Porto Alegre tem uma trajetória igualmente ligada a iniciativas em diversos segmentos culturais, algumas das quais pioneiras. São 129 anos de um protagonismo agora detalhado em livro de interesse não restrito aos sócios: com textos do veterano jornalista Pedro Haase Filho e generosamente ilustrada, a publicação compartilha um recorte essencial sobre costumes em permanente transformação. São 176 páginas em que parte da vida na capital gaúcha se vê refletida no Salão de Espelhos da tradicional agremiação do Centro Histórico.
Para muitos sinônimo de eventos elegantes e de almoços em um dos mais tradicionais restaurantes da cidade, o Clube do Comércio de Porto Alegre tem uma trajetória igualmente ligada a iniciativas em diversos segmentos culturais, algumas das quais pioneiras. São 129 anos de um protagonismo agora detalhado em livro de interesse não restrito aos sócios: com textos do veterano jornalista Pedro Haase Filho e generosamente ilustrada, a publicação compartilha um recorte essencial sobre costumes em permanente transformação. São 176 páginas em que parte da vida na capital gaúcha se vê refletida no Salão de Espelhos da tradicional agremiação do Centro Histórico.
Fundado em 7 de junho de 1896 por empresários, banqueiros, industriais, estancieiros, políticos e agentes públicos, o Clube teve como primeira sede um amplo sobrado na esquina da rua Sete de Setembro com General Câmara, mesmo local onde o Banco da Província inauguraria em 1931 o prédio que hoje abriga o centro cultural Farol Santander. A frequência não se resumia a membros das elites emergentes, logo abraçando também damas e cavalheiros menos abastados, mediante indicação pelos portadores da carteirinha e um exigente processo de aprovação pela diretoria.
A programação jamais se restringiu a festas, recepções ou bailes (incluindo o primeiro de debutantes, em 1943), jogos de cartas, xadrez, bidge, gamão, bilhar, tênis, esgrima, natação e, futuramente, outras modalidades. Em suas dependências se realizaram também concorridos saraus literários, mostras de arte, apresentações de música erudita e popular, Mostras de arte. Projeções de filmes. Leituras, em uma biblioteca municiada de livros, jornais e revistas – incluindo-se um magazine editado pela casa. “Há toda uma história impregnada de memórias que transcendem as atividades sociais”, sublinha Haase.
Muitos foram os “cartazes” desde os primórdios. Em 1899, por exemplo, os jornais anunciavam um concerto do violinista cubano Rafael Diaz Albertini e inauguravam-se as “reuniões familiares” dominicais, com chás dançantes e recitais de poesia. Outras entidades requisitavam os espaços. Foi o caso da Academia Rio-Grandense de Letras (que ali realizou em 1902 a sua primeira sessão solene) e da Sociedade Musical Estudantina Porto-Alegrense. Atenta, a diretoria do Clube tomou providências como a encomenda de um piano de cauda da fabricante alemã Blüthner –eventualmente cedido ao Instituto de Belas Artes e que permanece até hoje no acervo do “Palácio Rosado”.
O pique se manteve no início do século xx, com nomes relevantes das cenas nacional e internacional. A violinista pelotense Olga Fossati (com apenas 9 anos de idade) ali realizou seu primeiro concerto na Capital. Também receberam aplausos a harpista catalã Léa Bach e a italiana Amelita Galli-Curci, uma das maiores sopranos operísticas daqueles tempos. Nas exposições de arte, a lista vai do pintor e também pelotense Leopoldo Gottuzzo ao riograndino Augusto Luiz de Freitas, professor do Belas Artes. Nas palavras do autor, “o Clube do Comércio sempre atuou como um verdadeiro centro cultural”.

Quase 13 décadas de serviços prestados

Primeira sede do Clube do Comércio, em foto de 1896, ano de sua inauguração

Primeira sede do Clube do Comércio, em foto de 1896, ano de sua inauguração

ACERVO CLUBE DO COMÉRCIO/REPRODUÇÃO/JC
Natural de Pelotas (RS), Pedro Haase Filho é graduado em História e Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Sua trajetória abrange mais de duas décadas de trabalho em jornais, revistas e emissoras de rádio do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro e Estados Unidos, sendo vencedor da edição de 1998 do Prêmio da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) na categoria Reportagem Esportiva. Após dez anos e 90 publicações como coordenador da editora RBS Publicações, fundou em 2010 a Quati Produções Editorais e Design, dedicando-se desde então a projetos que já renderam quase 20 publicações.
A mais recente é Clube do Comércio de Porto Alegre - A História. Resultado de dois anos de uma pesquisa pautada por dezenas de entrevistas e imersão nos arquivos da instituição, acervos pessoais, oficiais e de imprensa, o livro teve a colaboração decisiva de dois parceiros de longa data do autor, ambos ligados à editora gaúcha Libretos: o jornalista, pesquisador e escritor Rafael Guimarães e a designer Clô Barcellos. Esse reforço de forma e conteúdo moldou uma publicação 'de encher os olhos', como diziam os antigos, e que corrobora a exuberante linha do tempo da agremiação, além de dar novo colorido a episódios desbotados, esquecidos ou mesmo ignorados dessa trajetória.
"Nem todo mundo conhece a fundo a saga do Clube, então fiz um projeto e me instalei em uma sala na unidade do Menino Deus, onde reuni um vasto material que permitiu montar uma linha do tempo com aspectos históricos e curiosos de diferentes épocas desses 129 anos", conta o autor. "Apesar de interrupções no cronograma por causa da enchente que atingiu diretamente as duas sedes [Rua da Praia e avenida Bastian] em maio de 2024, conseguimos finalizar a edição, com a ideia de deixar um legado às atuais e futuras gerações sobre a relevância da associação desde os seus primórdios."
Dentre as realizações trazidas novamente à tona pelo autor estão duas publicações culturais da instituição na primeira metade do século XX, ambas de vida curta. A primeira, intitulada Revista do Club do Commercio e sob o comando dos jornalistas Sérgio de Gouveia e Thomaz Valle, teve apenas três edições entre 1937 a 1939, mas deixou como saldo contos literários e críticas de cinema. Já a segunda, intitulada Clan (iniciais de "clube, literatura, artes e novidades") voltou-se a um público mais amplo que o corpo de associados. Seus meros quatro números, de 1946 a 1948, organizados por Gastão Nogueira e Odilo Bolsoni, obtiveram ótima repercussão.

Inquilinos ilustres

Erico Verissimo alugou um apartamento no Clube em 1940

Erico Verissimo alugou um apartamento no Clube em 1940

ACERVO IMS/REPRODUÇÃO/JC
Com arquitetura eclética, repleta de elementos internos e externos em art déco e art nouveau, o Palácio Rosado tem seus quatro primeiros andares ocupados pelo Clube do Comércio e duas lojas térreas. Uma portaria independente dá acesso a outros oito pavimentos com 34 salas comerciais anteriormente configuradas como apartamentos de aluguel (dos quais 16 acabaram vendidos para sanar finanças da instituição). Pois essas unidades tiveram ao menos dois inquilinos ilustres: a jornalista Gilda Marinho (1900-1984) e o escritor Erico Verissimo (1905-1975).
No primeiro volume de seu livro de memórias Solo de Clarineta (1973), Erico dedica algumas linhas à experiência vivida em 1940 com a esposa, Mafalda, e os filhos Clarissa e Luis Fernando, antes da mudança - no ano seguinte - para a casa do bairro Petrópolis onde passaria o resto de sua vida: "(...) Em matéria de condição social, isso significava que tínhamos subido vários degraus, pois, ao tempo, aqueles apartamentos nada baratos classificavam-se entre os melhores da cidade. Não estávamos, porém, interessados em aparências. O que queríamos, isso sim, eram alojamentos mais amplos e confortáveis do que as casas que até então havíamos ocupado".

Tempos de esplendor

Clube recebeu nomes fundamentais da música brasileira, como Elis Regina (1968)

Clube recebeu nomes fundamentais da música brasileira, como Elis Regina (1968)

ACERVO CLUBE DO COMÉRCIO/REPRODUÇÃO/JC
Boa parte do livro de Pedro Haase tem por foco a intensa participação da entidade na vida social e cultural da capital gaúcha a partir da inauguração da sede própria e definitiva em 1939. Tempos em que a Rua da Praia ainda era o principal cenário da cidade, com seus lugares, personagens e episódios. Acompanhando a expansão do número de sócios (que chegariam a 3.500 na década de 1960) e uma série de investimentos, o 'Palácio Rosado' se tornou ponto de convergência em Porto Alegre. "O Clube alcançou uma dimensão que nenhum outro clube tivera até então", sublinha Haase. "Seus eventos culturais recebiam atenção da mídia local e até nacional."
Especial atenção é dedicada, no livro, à busca da entidade em se manter sintonizada a um panorama sob constante mudança, inclusive diante do afloramento de uma nova cultura jovem na segunda metade os anos 1960, estendendo-se pela década seguinte. Com o mesmo empenho dedicado à ampliação do alcance de manifestações mais eruditas e sem prejuízo à reputação de bem-comportado centro social, o Clube do Comércio proporcionou à moçada alguns dos mais concorridos shows da época no País. MPB, bossa nova, Jovem Guarda e outros gêneros ali tiveram vez com performances memoráveis. Basta conferir a lista.
Orlando Silva. Leny Eversong. Agostinho dos Santos. Elis Regina. MPB-4. Edu Lobo. Roberto Carlos. Erasmo Carlos, Eliana Pittmann. Wanderléa. Jerry Adriani. Wanderley Cardoso. Ronnie Von. Os Incríveis. Trio Esperança. Leno & Lilian. Os Vips. Eliana & Booker Pittmann. Vinicius de Moraes com Toquinho. Jorge Ben. O norte-americano Johnny Mathis. Apresentações humorísticas também tiveram espaço, com Juca Chaves e Ronald Golias em dupla com Carlos Alberto de Nóbrega. Isso sem contar os embalos do som mecânico em duas boates próprias, a Cristal (1969), com projetor de filmes e "clipes", e a Ferro Velho (1972), esta última na sede do Menino Deus, adquirida em 1943.
O jornalista Emílio Pacheco, 64 anos, dá seu depoimento. Filho do desembargador Ivéscio Pacheco, então presidente do Clube, ele acompanhou na adolescência alguns dessas apresentações. "Artistas forasteiros que já estavam em outros palcos da cidade eram contratados para uma espécie de 'segundo tempo' na casa. Em 1973, assisti no Salão de Espelhos ao primeiro show da minha vida, de Johnny Mathis, de quem peguei autógrafo em um banheiro masculino improvisado como camarim. Já em 1975 eu pude ver Vinicius e Toquinho com banda completa. Com a ajuda do meu pai, também consegui assinaturas de artistas que não conferi ao vivo, como Roberto Carlos, Ronnie Von e Jorge Ben. Tudo bem guardado até hoje em um livro de capa dura".

Espaço às artes plásticas

De 1979 a 1984, o marchand Fábio Coutinho e a colunista social Lígia Nunes montaram e dirigiram uma galeria de arte no segundo andar do "Palácio Rosado". A casa já possuía um bom acervo de obras, até então dispostas em diferentes espaços da sede, dentre adquiridas ou doadas por artistas que haviam exposto no local desde os primórdios do Clube. Em destaque, trabalhos de Pedro Weingärtner, Leopoldo Gotuzzo, Libindo Ferrás, Magliani, José Lutzenberger, Henrique Fuhro, Edgar Koetz, Danúbio Gonçalves, Vasco Prado, Glória Corbetta etc. Várias mostras foram ali realizadas (30% do valor de cada peça comercializada permanecia na instituição), além de palestras e cursos.
Coube ao também marchand Renato Rosa, hoje radicado no Rio de Janeiro, a gestão do espaço nos dois anos finais da galeria. Ele recorda, aos 79 anos: "Gilda Marinho e outros amigos que jogavam cartas às tardes no Clube fizeram uma campanha para que eu assumisse a função. Topei o desafio, promovendo a mescla de talentos jovens e veteranos, sendo que o Iberê Camargo aparecia por ali todas às sextas-feiras. Mesmo sendo colorado, organizei em 1983 a mostra coletiva 'O Azul do Grêmio', com desenhos, pinturas e colagens assinadas por nomes importantes da cena local, em homenagem ao recém-conquistado campeonato mundial".
O fim das atividades da galeria foi ao menos compensado pela manutenção da pinacoteca, que acabaria municiando o noticiário policial em 1986: aproveitando-se de uma pausa no funcionamento do "Palácio Rosado" para serviços de dedetização nos dias 24 e 25 de novembro daquele ano, um ladrão (ou dois, três, sabe-se lá) conseguiu acessar as dependências do edifício, incluindo o salão das obras de arte, que também abrigava a biblioteca. O saldo foi a perda de três das telas mais valiosas do acervo, assinadas por Pedro Weingärtner, Luiz Maristany Trias e Paulo Gagarin. Quase 40 anos depois, nenhuma foi recuperada.

Resistência e superação

Clube do Comércio segue aberto a eventos culturais da Capital, como a Noite dos Museus de 2024

Clube do Comércio segue aberto a eventos culturais da Capital, como a Noite dos Museus de 2024

ACERVO CLUBE DO COMÉRCIO/REPRODUÇÃO/JC
A história de um dos clubes mais tradicionais da Capital também foi marcada por momentos de crise, a partir da década de 1980. Em diferentes esferas, a combinação de fatores urbanísticos, sociais, econômicos, culturais e tecnológicos - somada a equívocos administrativos - reduziu o protagonismo e acionou o sinal vermelho sobre a sobrevivência da instituição, que já não exercia no imaginário coletivo o mesmo fascínio de eras passadas. Não foi a única, mas o caso é emblemático. Por pouco o 'Palácio Rosado' escapou de virar shopping center, não fosse a teimosia de sócios e dirigentes mobilizados em torno de iniciativas como o tombamento do imóvel como Patrimônio Histórico e Cultural da cidade, em 1996.
Nem em seus momentos mais difíceis, porém, a entidade deixou de apostar no campo cultural. Enquanto parte da programação (sobretudo as de esporte e lazer) se deslocava progressivamente para a filial do Menino Deus, a matriz na Rua da Praia brindava o público com realizações que mantinham seu alcance para além dos eventos sociais. Um exemplo foi a parceria com a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL) que integrou a sede do Clube do Comércio à programação de eventos da vizinha Feira do Livro de Porto Alegre entre 1997 e 2003, experiência retomada em 2024. Já no primeiro ano de ação conjunta, um dos salões do prédio recebeu palestras de duas estrelas: o escritor Paulo Coelho e seu colega peruano Mario Vargas Llosa.
"Na oitava edição do evento gratuito Noite dos Museus, em 2024, pela primeira vez os andares do Clube foram incluídos no roteiro de visitações guiadas, tendo como atrativos a própria arquitetura do edifício, uma exposição de painéis sobre a história da entidade, espetáculos de música e dança, além de sessões de leitura de trechos do clássico Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa", adiciona Pedro Haase. "Mais de 4 mil visitantes de diversas faixas etárias participaram do circuito, realizado das 18h à meia-noite, muitos dos quais jamais haviam entrado no prédio."
Resistindo a adversidades como a pandemia de coronavírus (cujas medidas de contenção mantiveram portas fechadas por longo período) e a enchente de grandes proporções que atingiu seus dois endereços em 2024, a instituição social e cultural, atualmente sob o comando de Josué Vieira de Amorim, busca a adaptação sem perda da essência e do brilho de suas quase 13 décadas. "Novos tempos requerem novas atitudes", resume o autor da publicação comemorativa. Clube do Comércio de Porto Alegre - a História já está disponível para venda aos sócios e, em breve, deve chegar às livrarias. Mais informações podem ser obtidas pelo e-mail quatipe@gmail.com.

* Marcello Campos, especial para o JC
Formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (Ufrgs), Marcello Campos tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há quase duas décadas, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com.

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