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Publicada em 13 de Fevereiro de 2025 às 19:02

Após quase 50 anos, revista Tição volta a reforçar a cultura negra na imprensa gaúcha

Edição especial, lançada em janeiro, retoma trajetória de publicação surgida originalmente nos anos 1970

Edição especial, lançada em janeiro, retoma trajetória de publicação surgida originalmente nos anos 1970

/RAFAEL VARELA/ASCOM SEDAC/DIVULGAÇÃO/JC
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Márcio Pinheiro
Tição - aquele pedaço incandescente de lenha ou de carvão - é usado para estimular o fogo, incendiar. Tição, a revista, surgiu com essa proposta: tacar fogo no debate, incendiar as ideias.
Tição - aquele pedaço incandescente de lenha ou de carvão - é usado para estimular o fogo, incendiar. Tição, a revista, surgiu com essa proposta: tacar fogo no debate, incendiar as ideias.
O momento não poderia ser mais propício: o final da década de 1970, com todo o florescimento da imprensa nanica (os pequenos jornais que faziam frente aos jornalões da grande imprensa) e ainda com a força da inspiração de exemplos bem-sucedidos, como os alternativos Opinião, Movimento, Argumento, O Sol, Lampião e, principalmente, o Pasquim. Era o cenário ideal para um veículo que não apenas se postasse em oposição à então vigente ditadura militar como também, em outra frente, representasse uma voz para a militância negra.
Agora, como se cumprisse um ciclo de quase cinco décadas, a revista Tição está de volta. A efêmera experiência de 1978 ganha uma nova edição: uma publicação com 56 páginas, em um formato maior do que o original e com distribuição gratuita de 1,5 mil exemplares. Por fora, Tição está diferente. Por dentro, Tição continua combativa e oferece abordagens analíticas, comparativas e jornalísticas de estudiosos, pesquisadores, repórteres e fundadores da revista. Ou seja, temas levantados há quase 50 anos são novamente abordados. E uma pergunta permanece: o que mudou?
"Hoje, evidentemente muita coisa mudou", explica Emílio Chagas, jornalista, editor e produtor cultural que fez (e faz) parte do corpo editorial das duas versões da revista. "Porém, quase cinco décadas depois, percebemos que as pautas que levantamos lá atrás permaneciam válidas e atuais. Existe uma nova realidade e nós, precursores, precisamos acompanhá-la", acrescenta Emílio, enumerando quais seriam essas pautas: "A questão da violência, o chamado genocídio da juventude negra, as políticas de desigualdade racial, o mercado de trabalho, a discriminação e a exclusão social". "Tudo isso continua em alta", lamenta.
Emílio Chagas reconhece que nesse período houve ganhos, em especial com a maior visibilidade e também com o crescimento da autoestima e da autoafirmação. "No quesito representatividade também houve avanços, com mais políticos negros nas câmaras e nas assembleias, além de entidades públicas negras criadas, inclusive o Ministério da Igualdade Racial". E conclui: "Mas a desigualdade permanece. Por isto, resolvemos voltar".
 

Uma voz contra a censura

Capa da primeira edição da revista Tição, de março de 1978

Capa da primeira edição da revista Tição, de março de 1978

/ACERVO REVISTA TIÇÃO/REPRODUÇÃO/JC
Além da inspiração nos jornais citados anteriormente, Tição tinha também um olhar que se pretendia universal. "Toda a questão se resumia em despertar o sentimento de identidade própria na comunidade negra", compara Emílio Chagas. "Teve a onda do black is beautiful, mas o que despertou mesmo o interesse em nós, principalmente em mim, foi a questão dos Black Panthers, e o ativismo de nomes como Bobby Seale, Eldrige Cleaver e Angela Davis".
Tição chegou às bancas em março de 1978. E o Brasil de 1978 era assim: o país vivia há quase uma década e meia em uma ditadura, mas já começava a sentir os primeiros ventos da mudança. O presidente - até então sempre um general - era eleito indiretamente, assim como os governadores estaduais e muitos dos prefeitos, em especial os das capitais. O debate público permanecia restrito.
Afinado com as discussões contemporâneas, o jornalista Jones Lopes da Silva situa a nova fase da Tição: "A importância desse relançamento é revelar hoje que as questões do negro não são apenas atuais, pontuais, sazonais ou uma reivindicação dos novos tempos".
Jones prossegue em sua análise, comparando os dois períodos: "A Tição escancara à geração digital, tecnológica, tiktok, hightech, às gerações de influencers, os contra e os a favor de fake news, que existiu no modo analógico uma voz de inquietação e rebeldia diante do racismo, do preconceito, da exclusão do trabalho, do confinamento nos guetos das periferias, da violência seletiva da polícia, do dono da loja na esquina, do segurança do shopping".
Dessa maneira, o jornalista conclui, como se fizesse um alerta às novas gerações: "Se tudo continua como há 47 anos, quando nasceu a Tição, é justo que a revista volte a se manifestar. Como as mazelas de hoje foram enfrentadas décadas atrás, a revista volta a soltar o verbo e talvez possa servir de inspiração às novas gerações".
O surgimento da Tição em 1978 tem ainda uma forte vinculação com a censura, que agia forte não apenas na questão cultural (filmes, discos, livros, shows, peças teatrais...) mas também na imprensa. Jornais e jornalistas eram perseguidos. Nesse quadro desanimador, o que trazia um pouco de alento era um horizonte em que já era possível vislumbrar uma abertura, com a volta dos exilados políticos, a formação de novos partidos e o retorno das eleições diretas. Jones lembra: "Naquele tempo era necessário tirar licença no órgão de censura do Exército para que a revista circulasse. Então a jornalista Vera Daisy Barcellos (repórter da Editoria de Esporte de Zero Hora e primeira editora da revista Tição) teve de comparecer ao famoso e assustador Dops, o departamento policial da ditadura, para solicitar a tal licença". Jones acrescenta: "Daisy temia não voltar para casa. Ou seja, a repressão era um sentimento comum no país típico de anos sem democracia".
 

Uma proposta inserida no contexto

Detalhe da capa da edição número 2 da revista tição, publicada em agosto de 1979

Detalhe da capa da edição número 2 da revista tição, publicada em agosto de 1979

/ACERVO REVISTA TIÇÃO/DIVULGAÇÃO/JC
As discussões e os debates que antecederam o lançamento da Tição já vinham ocorrendo há pelo menos dois anos. Desde 1976, um grupo de jornalistas, publicitários, poetas, fotógrafos, professores e estudantes realizava reuniões na sede do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Porto Alegre, no Centro da Capital. "Jorge Freitas - que foi quem teve a ideia - e eu éramos colegas no antigo Clássico, no Julinho", explica Emílio Chagas. "Éramos também companheiros de movimento estudantil e de luta política. Só divergíamos em um ponto: Ele queria um jornal, mas eu preferi o formato revista", acrescenta.
Emílio conta que a questão central da proposta jornalística era abrir espaço para a discussão das especificidades e singularidades negras, assim como outros temas emergentes como o feminismo, a luta pela abertura política, a questão ambiental. "Dentro desse universo, embalados já pelo movimento da anistia, geral, ampla e irrestrita, procurando não descolar da pauta política, mas afirmando questões negras, editamos três números; dois em versão revista e um no formato de jornal, de apenas quatro páginas".
"Inserido neste contexto - sim, éramos ávidos leitores do Pasquim", brinca Emílio fazendo uma clara referência ao jornal - "de ditadura e censura, partimos para as edições".
"Saímos a procurar jornalistas nos jornais, nas redações. Encontramos meia dúzia de nomes, quase ninguém nas faculdades. Essa era a realidade naqueles anos de 1976/77, época em que a revista começou a ser gestada", recorda Emílio. "A primeira equipe foi formada por mim, Jorge Freitas, Jeanice Dias Ramos e Vera Daisy Barcellos, que fomos buscar em ZH, cobrindo Esporte Amador. Ela acabou sendo a jornalista responsável por ser a única que era formada na época e tinha registro". Ao grupo se somaram Oliveira Silveira, incansável pesquisador da temática negra e que já participava do Grupo Palmares desde 1971.
Emílio ressalta ainda a importância, por exemplo, da contribuição do então aluno de sociologia Edílson Nabarro, que trazia as questões centrais do pensador Florestan Fernandes e que davam uma boa base e sustentação para discussões.
Para angariar fundos e promover a publicação, o grupo também promoveu o espetáculo Música Negra do Sul, no Clube Náutico Marcílio Dias, no bairro Praia de Belas. A atração da noite foi o conjunto Café, Som & Leite, que tinha entre seus expoentes o Maestro Lua do Piston; o ritmista, carnavalesco e cantor Carlos Alberto Barcellos, o Roxo (irmão da jornalista Vera Daisy Barcellos), e o cantor e compositor Wilson Ney. A vendagem da publicação foi realizada ao preço de cinco cruzeiros, em bancas de jornais da Rua da Praia e da avenida Borges de Medeiros, além do campus universitário da Ufrgs, no Parque da Redenção, e nos bares da Esquina Maldita da avenida Osvaldo Aranha.
Pouco mais de um ano depois, em agosto de 1979, uma nova edição em formato revista foi publicada. O terceiro e último número saiu em outubro de 1980, desta vez em formato tabloide.
 

Com Zumbi como inspiração

Charge publicada na segunda edição da revista Tição, de agosto de 1979

Charge publicada na segunda edição da revista Tição, de agosto de 1979

/ACERVO REVISTA TIÇÃO/REPRODUÇÃO/JC
Tição surgia como um desenvolvimento paralelo do Grupo Palmares, coletivo de grande importância para o ativismo negro e que há quase uma década abordava a questão do racismo na sociedade gaúcha e brasileira. Fundado em Porto Alegre, em julho de 1971, o Palmares tinha à frente as figuras de Antônio Carlos Cortes, Ilmo da Silva, Vilmar Nunes e Oliveira Silveira.
Formado em Letras pela Ufrgs, em 1965, Oliveira Silveira (nascido em Rosário do Sul, em 1941) já tinha no início da década de 1970 uma intensa militância cultural e política. Único a permanecer no Grupo Palmares do início ao fim (ocorrido em 1978), Oliveira Silveira se destacou nesses quase 10 anos como a grande liderança. "Foi inclusive dele a ideia do nome", lembra Emílio. "A intenção dele era a de reverter o conceito pejorativo da palavra, uma referência aos pretos retintos, e trazer a associação à brasa, ao fogo aceso", explica.
"A Tição representou, para mim, um marco histórico, em especial pela presença do Oliveira Silveira", lembra o DJ Claudinho Pereira, um entusiasta da revista desde o lançamento. "A Tição foi um símbolo vivo de existência e resistência".
As referências do Grupo Palmares eram múltiplas e a revista Tição as incorporou. Exemplos bem-sucedidos, como o Teatro Experimental do Negro, com destaque para as atuações de Ruth de Souza, Abdias Nascimento e Solano Trindade, além de modelos estrangeiros, como o francês Négritude, o pan-africanismo e o movimento negro dos Estados Unidos.
Associados a isso, Emílio destaca que o momento também favorecia a redescoberta de Zumbi e a luta da militância para tornar o 20 de Novembro, data da morte do líder negro, na data de comemoração máxima do negro, no lugar do 13 de maio.
Sem nunca ter deixado a militância e também a defesa da cultura, Oliveira Silveira permaneceu na ativa até seus últimos dias de vida. Ele morreu de câncer, aos 67 anos, no dia 1º de janeiro de 2009.
 

Black power no futebol e na música

Ilustrações da revista Tição denunciavam mazelas como a violência policial

Ilustrações da revista Tição denunciavam mazelas como a violência policial

/ACERVO REVISTA TIÇÃO/REPRODUÇÃO/JC
Com o título Cabeça que faz, a primeira edição da Tição trazia uma entrevista com um jogador de futebol que estava em evidência. Feita pelo jornalista Jones Lopes da Silva, a reportagem destacava uma figura simbólica do futebol. A cabeleira black power - em sintonia com aqueles agitados anos 1970 - era uma das marcas de Luiz Carlos Machado, ponta-de-lança do grande Internacional daquela década. E, em que pese a figura fosse gigantesca, ele tornou-se conhecido por todos pela alcunha tão carinhosa para aqueles tempos quanto politicamente incorreta para os dias de hoje: Escurinho.
A reportagem, conta Jones, "era uma tentativa de desvendar o universo do jogador negro, e sua consciência". Jones vê o tema ainda como atual. "Outras vozes surgiram", compara Jones, lembrando o exemplo do técnico Roger Machado, atualmente dirigindo o Internacional. São pessoas que, segundo Jones, "têm coragem e discernimento suficientes para não jogar o racismo do dia a dia para baixo do tapete". Roger Machado é o entrevistado de Emílio Chagas na nova edição de Tição.
Em 1978, Jones defendia: "Pensante, o black power Escurinho foi um dos primeiros jogadores a exercer sua negritude, que incluía a liberdade de compor seus sambas - o que era e continua sendo impensável no mundo do futebol".
Assim, em 2011, 33 anos depois daquela primeira entrevista, Jones lançaria o livro No Último Minuto - A História de Escurinho: Futebol, Violão e Fantasia, a biografia do craque. Jones recupera que, no exuberante Internacional dos anos 1970, Escurinho tinha um papel coadjuvante. Ele não tinha a liderança de Elias Figueroa, nem o folclore de Manga, tampouco a elegância de Falcão. Mas talvez só o ponta Valdomiro gozasse de tamanha simpatia e identificação com as arquibancadas. Era um reserva não pela falta de talento, mas pelo excesso de craques.
Escurinho também era um símbolo da blaxploitation porto-alegrense. Alegre, bonachão, gente boa, ele sorria fácil, não fugia de entrevistas, expressava-se bem, aparecia na noite, cantava em programas de rádio, atendia a convites na TV, saía na escola de samba desde criança - e fazia tudo isso com naturalidade.
Tanta alegria e descontração não estavam desvinculadas de um alto profissionalismo. Nos treinos e dentro de campo, Escurinho era um guerreiro. Fora das quatro linhas, um folião. Tamanha exuberância se refletia também no estilo e nas roupas espalhafatosas.
Afinado e cheio de suingue, Escurinho ia do samba ao funk. Era admirador de Paulinho da Viola e Jorge Ben, desfilava no Carnaval e participava de rodas de samba. Se o samba esteve na base, a cultura pop americana o pegou na juventude e Escurinho participou do surgimento da cultura afro-gaúcha, com o Bedeu, Luiz Vágner e a Banda Pau Brasil, que lideravam o movimento do samba-rock no Sul.
O final de vida do jogador foi melancólico, com problemas de saúde ligados ao diabetes e, logo em seguida, à insuficiência renal. Em 2009, Escurinho precisou amputar parte da perna direita. Para ajudá-lo, o Internacional decidiu doar a bilheteria do filme Nada vai nos Separar, que lembrava os 100 anos de do Colorado. O dinheiro recebido ajudou aos familiares do jogador, que conseguiram pagar quase seis meses de tratamento. Tamanho sofrimento só foi ter fim em 27 de setembro de 2011. Debilitado, depois de seis meses de internação, Escurinho morreu vítima de parada cardíaca, 40 dias antes do lançamento do livro. Tinha 61 anos.
 

O que vem por aí

Nova edição da Revista Tição teve evento de lançamento em janeiro deste ano

Nova edição da Revista Tição teve evento de lançamento em janeiro deste ano

/BETO RODRIGUES/BRASIL DE FATO/REPRODUÇÃO/JC
Na edição de 1978, o editorial da revista destacava: "Tição pretende falar com a comunidade negra não só de Porto Alegre através de uma linguagem simples e buscando um trabalho de conscientização racial, social e cultural". O compromisso não apenas permanece como já há sinais de que vem mais por aí. "A Tição tem um espaço dela que ela simplesmente resgatou e vai dar continuidade", garante Jeanice Dias Ramos, jornalista, bibliotecária, museóloga e também integrante do expediente jornalístico da revista.
Jeanice adianta que o projeto editorial está em constante movimento e que logo no mês de abril haverá novidades. "O próximo número, entre outros temas, vai tratar da presença de mulheres negras no mercado de trabalho, na literatura, na segurança pública. Estes são alguns dos vários elementos que vamos desenvolver na revista". E completa: "Vamos explorar vários nichos, como verbetes dedicados a mulheres negras que se destacaram na sociedade desde a década de 1970".
Emílio completa: "Não pretendemos, nem temos condições, de ter uma periodicidade regular. A proposta é fazer três ou quatro edições anuais, temáticas". E que leitores a nova edição de Tição pretende atingir? "Queremos falar com a comunidade negra em geral, estudantes, profissionais liberais, comunidades quilombolas, povo de terreiros de religiões de matriz africana, pesquisadores", explica Emílio. "Mas, na minha opinião, principalmente com a juventude negra, que é quem vai continuar esta luta. Aí tem muita coisa nova, na música e na literatura, principalmente".
Há quase cinco décadas, a revista Tição foi intensa, porém irregular. Sem uma periodicidade bem definida, o segundo número da publicação só foi chegar às bancas mais de um ano depois, em agosto de 1979. Também mais de um ano depois, em outubro de 1980, foi a vez do terceiro e último número da revista. Agora, a expectativa - ainda sem grandes definições - é que a publicação tenha uma vida longa. O Tição ainda está aceso.
 

* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.

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