Jornalista, cronista e um dos fundadores do jornal Correio do Povo, José Paulino de Azurenha foi um intelectual complexo, com uma trajetória que merece ser rememorada agora com a reedição do livro Semanário de Leo Pardo. A obra, que reúne uma seleção de crônicas do autor entre 1905 e 1909, teve uma única edição em 1926, pela Livraria do Globo. O projeto é do Estúdio Mar Edições.
Alex de Cassio, um dos responsáveis pela reedição, também pesquisou os vestígios e registros de Azurenha para escrever a nota biográfica que acompanha o livro. Ele conta que essa busca foi uma das partes mais complicadas do processo. "É que ele não deixou muita coisa. Quase tudo que consegui encontrar são depoimentos de amigos. Ele era uma pessoa respeitada por todo mundo. Era muito discreto, embora tivesse participação na sociedade, sendo membro de muitas associações."
Azurenha nasceu em 1860, de uma mãe escravizada chamada Paula Maria da Conceição, ainda onze anos antes da Lei do Ventre Livre. Segundo Cassio, que conseguiu recuperar a certidão de nascimento de Azurenha, ele foi liberto na pia batismal. O futuro jornalista cresceu no centro, na rua Espírito Santo, perto da Cúria Metropolitana. Foi o padre jesuíta Antônio dos Santos Reis que o acolheu e o ajudou na educação formal. Azurenha mesmo atesta esse fato em diversas crônicas.
O professor da faculdade de Educação da Ufrgs José Antônio dos Santos fala sobre a importância da educação na vida dele. "Como era muito comum aos negros da época, ele seguiu seus estudos de forma autodidata e em contato direto com outras pessoas de mesmo perfil étnico-racial e de classe", diz. Neste sentido, outro pilar na sua formação foi o jornalista e político Aurélio Viríssimo de Bittencourt, um dos seus principais amigos e padrinho de seu casamento. "Ele teve trajetória muito parecida com a de Azurenha, foi filho de mãe escravizada, aprendiz de tipógrafo, dono de jornal, funcionário público concursado e secretário de governo de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros."
Azurenha trabalhou como tipógrafo no Jornal do Commércio, criou junto ao amigo Bittencourt a Revista Litteraria e, em 1895, juntou-se a Caldas Júnior e Mário Totta para fundar o Correio do Povo. Lá, trabalhou em várias áreas do periódico e, aos domingos, assinava uma crônica na última página, com o título de Semanário do Leo Pardo. A jornalista Brenda Vidal pesquisou as crônicas do livro em seu trabalho de conclusão de curso na Ufrgs. "Eu destacaria a erudição como uma das suas principais características. Escolho essa palavra porque, nos séculos XIX e XX, escrever bem era sinônimo de ser erudito. Além disso, ressalto o caráter poético das crônicas dele, que é marcadamente sensível. Em muitos momentos, ele coloca o leitor na cena, permitindo que veja o que ele está vendo e compreenda seu ponto de vista. E saliento também a capacidade crítica de Paulino, que dialoga estrategicamente com a elite, mas sem perder a conexão com o popular", explica.
Mesmo sendo um jornalista e cronista respeitado e celebrado na sua época, a memória de Azurenha acabou não tendo o cuidado necessário. "O 'esquecimento ou apagamento', também identificado pelos historiadores como silenciamento ou invisibilização da trajetória de personagens negros, como Paulino Azurenha, foi um projeto nacional para deslegitimar as demandas por reparações políticas e sociais da população negra", defende José Antônio dos Santos. “O início dos anos 2000, principalmente, com o acesso de pesquisadores negros, via políticas de ações afirmativas, nas principais universidades brasileiras, foi o período em que se descortinou uma nova história desta população no Brasil. As conquistas recentes por políticas reparatórias ao colonialismo e à escravização de africanos, demandadas pelo Movimento Negro desde 1978, fermentaram condições melhores para pesquisar e trazer à tona histórias de intelectuais, políticos, militantes, jornalistas, lideranças e artistas negros e negras que desde o início da escravização estiveram presentes em nossa história e eram desconhecidos”, conclui.
Uma informação que Cassio encontrou, mas não colocou na nota biográfica, refere-se a onde estão enterrados os restos mortais de Azurenha, morto em 1909. "Em 1917, a turma de jornalistas amigos dele resolveu fazer um jazigo perpétuo para ele no cemitério da Santa Casa, na parte histórica. Está abandonado, mas é possível ver o nome dele", diz.
As crônicas celebradas

José Paulino de Azurenha está à direita, ao lado de Mário Totta (esq) e Caldas Júnior (centro); esta é a única fotografia de Azurenha conhecida por pesquisadores
/CP MEMÓRIA/REPRODUÇÃO/JCPara a jornalista Brenda Vida, pesquisar as crônicas de Azurenha no livro Semanário de Leo Pardo foi um momento lotado de significados. "Um sentimento de contribuição política, de afirmação enquanto estudante cotista por escola pública, enquanto estudante cotista por raça, então, esse compromisso foi uma afirmação de um compromisso político do tipo de trabalho que eu queria deixar. Senti que era uma missão de militância enquanto pessoa negra", diz. A obra de Azurenha, infelizmente, é pouco pesquisada academicamente.
A coletânea faz uma curadoria do que ele produziu como cronista. Segundo Brenda, é importante destacar a versatilidade dos temas que Paulino aborda. A análise permitiu identificar três eixos principais de maior recorrência. O primeiro é a natureza, com textos que exploram a relação humana com o meio ambiente. O segundo eixo reúne reflexões sobre política, sociedade e desigualdade, apresentando um olhar crítico sobre questões sociais. Por fim, o terceiro tema, morte e vida, inclui crônicas dedicadas a obituários e biografias.
Segundo Brenda, Paulino de Azurenha aborda o fim da escravidão e o racismo em suas crônicas com uma perspectiva crítica, aprofundada e profundamente subjetiva. "Ele celebra o fim da escravidão, mas denuncia as práticas racistas e os desdobramentos desse sistema, como a forma como ser negro define os lugares sociais ocupados. Ele humaniza as pessoas negras e traz um olhar popular", destaca.
Entre os temas tratados por Azurenha, Brenda destaca uma crônica sobre as amas de leite. "É sobre as mulheres que precisavam dar o seu leite, em sua grande maioria mulheres negras, para alimentar crianças brancas, normalmente crianças das famílias que as possuíam, e não podiam alimentar com leite os seus próprios filhos. E ele vai nesse lugar, então é uma crítica aprofundada que passa pelo coletivo, mas que humaniza muito também", diz.
O cronista também expõem as hipocrisias das leis abolicionistas, como a Lei do Ventre Livre. Ele denunciava que a suposta liberdade dos filhos das mulheres escravizadas mantinha as mães na escravidão e condenava as crianças a um futuro incerto.
Luís Augusto Fischer lembra que Azurenha praticava uma crônica mais extensa, e o fato de escrever um texto por semana significava que ele tinha mais tempo para polir o texto. "Ele conseguiu uma mescla entre fatos do presente, que ele menciona sempre, com reflexões mais de fundo, mais filosóficas, mas nunca com ironia, com deboche. Ele levava a sério a conversa, e me parece que queria convencer pela seriedade", avalia.
Entre as crônicas que Brenda comenta que lhe marcaram está a de 29 de junho de 1907, onde Azurenha fala sobre a despedida do inverno. "Ele vai trazer um olhar sobre o alívio que sente pelo fim da estação e vai dividir o inverno entre dois tipos: o elegante, que seria o vivido pelo rico, e o do pobre. Ou seja, como a classe social e as desigualdades sociais interferem na experiência do inverno e fazem com que, para as populações mais abastadas, ele seja elegante, seja charmoso e até agradável, mas o quanto ele é uma sentença de sofrimento para aqueles que estão na rua ou que são mais pobres", explica.
O professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Alexandre Lazzari teve acesso à série completa das crônicas de Azurenha em 2004 durante seu doutorado pela Unicamp. Ele aponta que um ponto crítico é o acesso ao acervo do Correio do Povo, jornal onde Azurenha publicou grande parte de suas crônicas. "O único acervo completo que conheço pertence à empresa que comprou o jornal, e ela não parece interessada em torná-lo acessível a pesquisadores", denuncia. Ele defende que a memória literária de Paulino de Azurenha e de outros escritores deve ser tratada como patrimônio cultural público. "Não pode pertencer unicamente a uma empresa privada que impede o seu conhecimento. Esses textos são parte fundamental da história cultural do Rio Grande do Sul."
Travessias em edições

Relançamento de Semanário de Leo Pardo, pela Estúdio Mar Edições, aconteceu no último mês de dezembro
/MAYRA SILVA/DIVULGAÇÃO/JCCriado há cerca de três anos, o Estúdio Mar Edições atualmente é composto pela diagramadora Aline Gonçalves e pelo editor Alex de Cassio. Ele conta que o projeto nasceu da simples vontade de se juntar para fazer uma editora com o conhecimento de ambos, somado com o do artista plástico Wagner Mello, que foi um dos co-fundadores. Sem capital inicial, mas com muitas ideias, o projeto ganhou forma e se consolidou como um trabalho independente.
Cassio diz que chegaram rápido na concepção da editora. "No início, flertamos com a publicação de livros de artistas, uma possibilidade devido a rede do Wagner, mas acabou não se concretizando. Mas pelo interesse comum, acabou sendo natural o caminho da poesia e ensaios", diz. Um dos livros lançados foi O Gaúcho Era Gay? Mas Bah!, do historiador Jandiro Adriano Koch, que aborda a existência e o apagamento de personagens gays na história do Rio Grande do Sul. A publicação é resultado de uma década de pesquisas do autor. A primeira edição é de junho de 2023.
O Semanário de Leo Pardo (Crônicas), de José Paulino de Azurenha, inaugura também a coleção Meu tempo é hoje, que pretende reeditar obras que, por diversas razões, ficaram perdidas no tempo. Cassio conta que a realização dessa coleção deve-se muito também ao professor Luís Augusto Fischer, coordenador desses volumes. "Lembro de ler as colunas que ele escrevia no caderno de cultura do jornal Zero Hora e ficar muito interessado quando ele falava sobre esses livros do passado e que agora eram quase esquecidos", diz. O editor do Estúdio Mar também foi seu aluno no curso de Letras.
Então, quando Cassio entrou em contato com Fischer, o professor logo se empolgou com a ideia. Em 2022, começaram as primeiras reuniões para decidir autores e seus livros a serem relançados. "Nas reuniões, percebemos que o José Paulino de Azurenha se sobressaia. Eu já tinha lido o Estrychnina, tinha lido as crônicas dele, um escritor negro, um dos fundadores do Correio do Povo, completamente esquecido. Essa é a figura que a gente tem que valorizar, recuperar a memória", diz. O projeto é apoiado pela Lei Paulo Gustavo, via Secretaria de Cultura do Estado.

Resenha do livro de Azurenha para a revista Illustração Pelotense
ACERVO PESSOAL ALEX DE CASSIO/REPRODUÇÃO/JCPara a reedição do Semanário de Leo Pardo, publicado pela primeira vez em 1926, foi utilizado o exemplar disponível no setor de pesquisa da Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Cada página foi fotografada para o trabalho de atualização ortográfica e composição das notas. Entretanto, uma das grandes dificuldades da pesquisa foi não ter conseguido acesso ao arquivo do jornal Correio do Povo para a pesquisa em edições anteriores a 1940. "Não só pelas outras crônicas, mas porque ele escrevia muitas reportagens, matérias… Nos primeiros anos eram só os três, então, deve ter muito texto dele ali, inclusive sobre questões políticas", explica. Até o fechamento desta matéria, Alex de Cassio diz que nada mudou: a solicitação chegou até ao chefe de redação e não teve resposta. "Ainda vou tentar levar um exemplar e ver se alguém me recebe pessoalmente", reforça o editor.
Em 2025, a Mar Edições vai lançar um segundo volume de textos de Azurenha. "Ainda não há uma data, mas ele deve ser lançado entre junho e agosto. As crônicas que tenho até agora vieram da Biblioteca Nacional, que tem no acervo uma coleção incompleta do Correio do Povo do período 1899-1909", diz Cassio. Além disso, o pesquisador também já solicitou ao Museu da Comunicação o microfilme da Revista Litteraria, que Azurenha e seu amigo Aurélio Viríssimo de Bittencourt criaram e circulou entre 1891 e 1892. "Esse conjunto de materiais será suficiente para compor o livro", diz.
Além dos livros, a programação vai incluir atividades em escolas municipais, a produção de um mini documentário e ações em locais do centro da cidade que o autor costumava frequentar.
Em 2025, a Mar Edições vai lançar um segundo volume de textos de Azurenha. "Ainda não há uma data, mas ele deve ser lançado entre junho e agosto. As crônicas que tenho até agora vieram da Biblioteca Nacional, que tem no acervo uma coleção incompleta do Correio do Povo do período 1899-1909", diz Cassio. Além disso, o pesquisador também já solicitou ao Museu da Comunicação o microfilme da Revista Litteraria, que Azurenha e seu amigo Aurélio Viríssimo de Bittencourt criaram e circulou entre 1891 e 1892. "Esse conjunto de materiais será suficiente para compor o livro", diz.
Além dos livros, a programação vai incluir atividades em escolas municipais, a produção de um mini documentário e ações em locais do centro da cidade que o autor costumava frequentar.
Os sentidos de Leo Pardo

Comentário sobre o livro de Azurenha na coluna Poetas e Prosadores do jornal A Federação
/ACERVO PESSOAL ALEX DE CASSIO/REPRODUÇÃO/JCNada é por acaso para um homem como José Paulino de Azurenha, muito menos o pseudônimo que utilizava em suas crônicas. Para a jornalista Brenda Vidal, a escolha pode ser vista também como uma estratégia de proteção. "Ele era tido como uma pessoa super reservada. E vemos que, nas crônicas, ele tem um caráter mais ácido, uma leitura social crítica, ironia, posicionamento. Até para que ele pudesse, a partir do Leo Pardo, sustentar opiniões mais críticas sem acabar arriscando tudo o que ele significava enquanto Paulino", diz.
O professor José Antônio Santos diz que Leo Pardo aponta a ambiguidade de um não-lugar como mestiço brasileiro. "Ou, 'nacional', como se dizia à época em contraponto aos imigrantes, ao mesmo tempo em que mantinha postura afirmativa ao se identificar como 'pardo', resultado das relações escravistas. Sem dúvidas isso tinha um sentido político, o que lhe granjeou alguns dissabores, mas também o interesse dos leitores que descobriram nos seus escritos um talento literário que foi reconhecido em vida", acredita.
Segundo Luís Augusto Fischer, uma assinatura nunca é "pouca coisa" no mundo da autoria intelectual e artística. "Ao que tudo indica, o 'Leo Pardo' foi uma maneira ao mesmo tempo afirmativa (eu sou uma pessoa parda) e ligeiramente provocativa - em vez de escolher como pseudônimo algo inofensivo e anódino, ele coloca na assinatura um termo que, naqueles tempos pós-Abolição, convocava a atenção."
O pesquisador Alexandre Lazzari ressalta que a identidade de homem negro sempre foi afirmada na obra do cronista no Correio do Povo. "Suas crônicas frequentemente exaltavam figuras negras, desde José do Patrocínio até as quitandeiras do Mercado Público, e ironizavam ideias de superioridade racial. Vale destacar a importância que ele atribuía às comemorações da libertação dos escravizados, chegando a considerar que o 13 de Maio representava a mais importante data nacional, de significado e valor superiores mesmo à recente proclamação da República. Ainda assim, ressalvou o nosso cronista Leo Pardo, as cadeias e os cadastros policiais passaram a ocupar o papel opressor das antigas senzalas…Ou seja, ele não omitiu sua posição diante da injustiça e da discriminação racial, apesar dos limites que a atuação em uma imprensa comercial voltada para um público leitor majoritariamente branco colocavam", destaca.
Uma Porto Alegre em transformação

Imagem da Rua dos Andradas, em Porto Alegre, nos primeiros anos da década de 1910
/ACERVO MUSEU JOAQUIM JOSE FELIZARDO/REPRODUÇÃO/JCMas como era a Porto Alegre em que Azurenha viveu, no final do século XIX e início do século XX? Para Alexandre Lazzari, Azurenha foi um cronista de uma sociedade em transformação. "Porto Alegre era capital do novo estado republicano, e pensada como uma vitrine desse projeto, vista como destinada a ostentar a economia industrial, a pujança mercantil e a urbanização moderna. Com boa parte da população já oriunda da imigração europeia, a cidade se embranquecia e empurrava para a marginalidade de arrabaldes, becos e áreas baixas e alagadiças os trabalhadores negros da era pós-abolição", diz.
José Antônio dos Santos fala sobre a importância de outros exemplos negros na vida de Azurenha. "A imprensa negra, como o jornal O Exemplo, dentre outros, deixou largo registro de aprendizes de tipógrafos que ascenderam na profissão e se tornaram escritores e fundadores de seus próprios jornais. Ainda durante a escravidão, por influência de abolicionistas negros como Luiz Gama e José do Patrocínio, muitos se utilizaram da educação como um dos principais meios de acesso à melhores postos de trabalho, assim como busca de respeito e integração social e política", explica .
Em 1998, foi relançado uma nova edição do romance Estrychnina, escrito originalmente em 1897 por Azurenha, Mario Totta e Souza Lobo. Na época, o professor Luis Augusto Fischer foi o responsável pelo lançamento. Ele diz que o que o fascinou foi justamente o retrato de época na cidade. "Há cenas fascinantes, como, por exemplo, um passeio noturno de pessoas na praça da Alfândega, que recém experimentava o serviço de iluminação elétrica. Há o relato de uma viagem de bonde, ainda puxado a burros, desde o centro até um "distante" bairro, o Menino Deus, que igualmente me pareceu sensacional", completa.
Trecho de uma crônica que integra o Semanário de Leo Pardo, coletânea de crônicas de José Paulino de Azurenha

Reportagem cultural - José Paulino de Azurenha - capa original de semanario de leo pardo
/LIVRARIA DO GLOBO/REPRODUÇÃO/JC12 de agosto de 1905
Cheia. A bacia do Guaíba de novo transborda. E não é só ela: todo o seu estuário, intumescido, regurgitando, extravasa.
É o majestoso Jacuí, que, como um senhor feudal, de tão longe vem, atravessando campos e vales, recebendo aqui a servidão de humildes arroios vilões, além o tributo de rios fortíssimos, quase tão poderosos como ele, mas que apressados, como o Taquari, descem dos seus castelos roqueiros, e lhe vêm ao encontro, na sua vagarosa passagem afim de lhe render preito de vassalagem e pagar páreas de tributário…
É o Caí, também das serras descido, porém com assomos de certa independência prosseguindo em seu caminho, desviando-se o mais possível dos territórios assenhoreados pelo seu poderoso rival, evitando assim ver-se coagido a prestar-lhe homenagem, e vindo assim, como pequeno mas arrogante senhor, diretamente trazer a sua pingue contribuição ao soberano comum…
E o dos Sinos, outro cioso da sua autonomia, como um mercador de comuna rica, sempre fugindo, com arte e manha a toda imposição e a toda espoliação: aqui torcendo, ali correndo, além parando e descansando e negociando junto a uma cidade, para logo depois continuar seu itinerário, cheio de surpresas e peripécias, de voltas e torcicolos, de ambages e circunlóquios, de rodeios e sinuosidades, e vindo, afinal, ao grande mercado despejar os seus odres e refazer os seus alforjes…
* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação (Ufrgs) e editor do site Nonada Jornalismo.