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Publicada em 04 de Abril de 2024 às 17:29

Sandra Ling insere toque de arte no paisagismo, na poesia e no Instituto Ling

Artista é uma das idealizadoras do centro cultural na Capital

Artista é uma das idealizadoras do centro cultural na Capital

/RICARDO CATANI MILANI/DIVULGAÇÃO/JC
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Márcio Pinheiro
"que forma é outra
"que forma é outra
o encanto da folha morta
rasgaduras dobras
a flor desabrochada
é plenitude
uma revoada de tons
outono
a beleza desenha
olhar diverso"
Os versos que abrem este texto abrem também sempre é outra superfície, primeiro e único livro publicado por Sandra Ling, artista plástica, poeta, paisagista e uma das forças artísticas por trás do Instituto Ling. Pelo texto se nota referências a e.e. cummings (pelo gosto em trabalhar com letras minúsculas), Carlos Drummond de Andrade ("sempre uma grande inspiração", diz Sandra), Jacques Prévert (pela referência ao outono e às folhas mortas), e, principalmente, por Emily Dickinson, a maior poeta na definição de Sandra.
É a mesma Emily Dickinson que escreveu "Conhecido por outono / Ostenta um matiz sanguíneo / Por sobre a colina, uma artéria / Veias beirando o caminho" e que tem tudo a ver com a estação na qual recém adentramos. E foi dentro desse clima outonal que Sandra concedeu essa entrevista, realizada no final de março em sua casa no bairro Três Figueiras. Na conversa, ela falou sobre suas paixões artísticas, sua atuação em áreas diversificadas e seu envolvimento com a cultura feita em Porto Alegre.
Sandra de Barros Ling, nascida na capital gaúcha, mas com uma família com raízes em Santana do Livramento, se dedica às artes plásticas desde o começo dos anos 1980, quando iniciou sua formação artística no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, sendo aluna de Carlos Scarinci, um dos fundadores do local. Uma década depois, entre 1991 e 1992, já casada com William Ling e com dois filhos, Anthony e Albert, ela aperfeiçoou seus estudos quando cursou pintura com a artista Dinah James, no Pacific Art League of Palo Alto, na Califórnia, e Desenho e História da Arte, na Stanford University.
Há dez anos, tudo mudou. Ao lado de William, ela foi idealizadora do centro cultural Instituto Ling. Foram sete anos em que Sandra se dedicou de maneira exclusiva ao projeto, desde os primeiros esboços, em 2007 até a inauguração em 2014. Atualmente, ela ainda está envolvida: Sandra faz parte do Conselho do Instituto Ling e é responsável pela galeria de arte do centro cultural, tendo ao lado a curadora Laura Cogo.
O Instituto Ling é quase uma extensão da própria casa de Sandra, seja pela proximidade física - a distância entre os dois locais é de apenas 600 metros - seja pela proximidade ainda maior de ideias. O centro cultural surgiu como uma extensão da coleção de arte particular da Sandra, porque ela gostaria de ter uma galeria onde pudesse fazer exposições dos artistas que coleciona.
Em todos os ambientes, o olhar de Sandra está em cada detalhe.
 

Uma casa que acolhe a arte

Maria do Carmo Campos (esq) e Sandra Ling na abertura da primeira exposição do Instituto Ling, de Nelson Felix, em 2014

Maria do Carmo Campos (esq) e Sandra Ling na abertura da primeira exposição do Instituto Ling, de Nelson Felix, em 2014

/TÂNIA MEINERZ/DIVULGAÇÃO/JC
A ideia de criar o Instituto Ling foi de Sandra e de William. Num primeiro momento, eles adquiriram uma casa no bairro Três Figueiras para a construção. Enquanto definiam o modelo inicial, o projeto ganhou novos rumos - mais amplos e mais abrangentes - que resultaram na aquisição de uma nova casa, ao lado do terreno inicial.
A primeira referência foi a Casa do Saber, de São Paulo. A intenção inicial era que o centro cultural tivesse uma programação de cursos e uma galeria para exposições de artes visuais. Depois, a ideia foi se expandindo e ganhou também outras atividades artísticas, como uma programação musical. A opção pela música estava afinada com o vínculo que a família já tinha com o projeto Évora, com a realização de shows e concertos no foyer do Theatro São Pedro.
No Instituto Ling, o toque de Sandra se faz presente. Colecionadora de arte desde 1979, com um acervo imenso, Sandra se especializou e deu ao material que reuniu um conceito bem definido, voltado para a arte contemporânea brasileira. "Gosto dos artistas que lançam ideias, que te obrigam a pensar, como Nelson Felix, Tunga, Leonilson e Mira Schneider", destaca.
Foi também com o envolvimento com a montagem do Instituto Ling que Sandra refinou o interesse por outra de suas paixões: o paisagismo. Assim, desde o início da execução do projeto, ela cuidou de tudo, desde as plantas colocadas nas mesas do café até o projeto paisagístico do jardim do local. Ao lado do filho Anthony, arquiteto, ela fez ainda toda a escolha do mobiliário. "Participo muito do conceito e das sugestões de temas. É tudo feito com carinho, como se fosse uma segunda casa", reconhece Sandra.
Para dar esse caráter intimista, há uma preocupação de que o ambiente no geral seja aconchegante. Por exemplo: as salas de aula foram batizadas como "sala dos fundos", "sala do meio" e "sala da frente", justamente para remeter a essa proximidade com a casa. Fazem parte do acervo permanente obras de artistas contemporâneos do Brasil, como Nelson Felix, Siron Franco, Vik Muniz, Shirley Paes Leme, Dudi Maia Rosa, Elida Tessler, Frida Baranek, Leopoldo Plentz, Ivan Serpa, Karin Lambrecht, Karen Axelrud, Cristina Canale, Hugo França e Walmor Corrêa. "A sequência de exposições de arte é irretocável", avalia o marchand Renato Rosa, um dos autores (ao lado de Decio Presser) do Dicionário de Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. "É excepcional a diversidade da programação artística do Instituto Ling, em especial os cursos oferecidos. Eu mesmo, como colagista, afirmo com redobrado orgulho de haver passado por um deles, ministrado pelo artista visual Gustavo Assarian", acrescenta Renato Rosa. 

Ao lado de Daniela Name (esq) e Daniel Senise na abertura da exposição Museu, em 2019

Ao lado de Daniela Name (esq) e Daniel Senise na abertura da exposição Museu, em 2019

MACIEL GOELZER/DIVULGAÇÃO/JC
Além dos citados anteriormente, o Instituto Ling oferece regularmente atividades culturais como teatro, cinema, literatura e artes visuais, já acolhendo exposições de Carlos Vergara, Walmor Corrêa, Luiz Carlos Felizardo, Daniel Senise, Sérgio Sister e Nuno Ramos. "Mesmo vivendo noutro estado, o Rio de Janeiro, acompanho a dinâmica contemporânea do Instituto Ling, que considero uma dádiva, uma espécie de socorro cultural à comunidade porto-alegrense", ressalta Renato Rosa. "Começa na inteligência de seu espaço físico e vai até a criativa jardinagem do lugar".

Na construção, Sandra e William confiaram a responsabilidade do projeto arquitetônico ao filho Anthony, que então estudava arquitetura. Foi ele quem fez a pré-seleção de 10 arquitetos até chegar ao nome de Isay Weinfeld, o escolhido.

A arquitetura minimalista de Isay Weinfeld - um paulistano de 72 anos, com obras espalhadas por várias cidades do Brasil - aproveita, dialoga e dá valor a cada centímetro dos aproximadamente 3.200 metros quadrados do Instituto. Cada parte foi exaustivamente pensada. E a parceria entre Sandra e Isay deu certo. "Conheci a Sandra há muitos anos, à época do projeto para o Instituto Ling. É uma pessoa delicada, sensível, encantadora - e uma paisagista supertalentosa", elogia Weinfeld.

O resultado desse encontro pode ser resumida na construção de um grande centro cultural que parece pequeno.

Útil paisagem

Sandra define o paisagismo do Instituto Ling como um

Sandra define o paisagismo do Instituto Ling como um "jardim macio"

/RICARDO CATANI MILANI/DIVULGAÇÃO/JC
Sobriedade é o segredo. Sandra gosta de ser discreta e transferiu essa compreensão para os espaços paisagísticos que cria. "Gosto da coisa abstrata, do vazio". Suas primeiras experiências foram caseiras, no seu próprio jardim. "Primeiro me fixo em olhar o terreno e estudar como deve ser a ocupação do espaço", ensina Sandra. "Depois, me preocupo em tapar o que não me agrada", diz. "Muros, torneiras... precisam desaparecer para que as plantas se sobressaiam".
Se o jardim de sua casa foi seu primeiro laboratório, nada mais natural que ela transferisse seu gosto pelo paisagismo para o jardim do Instituto Ling, quase que uma extensão da sua própria casa. Criou-se, então, um espaço que fosse orgânico, com plantas de folhas miúdas que contrastassem com as linhas retas e lineares do projeto arquitetônico. Sandra já definiu sua criação como um "jardim macio", em que priorizou plantas com diferentes tons de verde, como se o jardim fosse uma pintura em aquarela.
O envolvimento com a pintura - num primeiro momento - e logo a seguir com o paisagismo foram caminhos naturais para Sandra. "Pensei em cursar Artes Plásticas, mas não recebi incentivo do meu pai. Ele não acreditava que pudesse ser uma opção profissional". O resultado foi o curso de Economia. O diploma está lá, guardado. Nunca foi utilizado.
Mais importante foram os cursos no Instituto Brasileiro de Paisagismo (IBRAP) e na Escola Britânica de Artes Criativas & Tecnologia (EBAC). "O jardim que ela fez para o Instituto é belíssimo, contrasta perfeitamente com a arquitetura. Me deixou muito impressionado", diz Isay. O arquiteto gostou tanto do trabalho que a convidou para outros projetos com ele. A convite dele, ela assina o paisagismo do edifício Varanda. Recentemente, Sandra também fez a remodelação da rua interna do Hospital do Moinhos de Vento.
Em seu trabalho, Sandra diz se inspirar na lógica dos jardins ingleses, com uma disposição menos simétrica se comparada aos jardins franceses, conhecidos pela poda bem geométrica e lugares bem delimitados. Outra inspiração foi o High Line, parque suspenso localizado na cidade de Nova York, com planejamento paisagístico de Piet Oudolf, a quem Sandra muito admira.
Nos projetos que desenvolve, Sandra leva em considerações vários elementos, tais como as plantas serem acomodadas conforme a cor, o tom e o volume. Ela considera fundamental que a escolha demonstre a ação das estações, com árvores que desfolham ou mudam de cor conforme a época do ano. “O clima do Rio Grande do Sul, próximo em diferentes aspectos ao clima europeu, permite esse jogo”, diz Sandra. “Favorece a harmonia e sempre traz alguma surpresa. Nunca é igual”.
 

No tempo da delicadeza

Sandra Ling, Eucanaã Ferraz e Mariana de Moraes na abertura da Exposição 'Vinícius de Moraes - Por Toda A Minha Vida'

Sandra Ling, Eucanaã Ferraz e Mariana de Moraes na abertura da Exposição 'Vinícius de Moraes - Por Toda A Minha Vida'

/EVANDRO OLIVEIRA/JC
Além das imagens, das paisagens, as palavras absorvem muito a atenção de Sandra. Aos já citados Drummond e Emily Dickinson, ela acrescenta Rainer Maria Rilke, poeta checo morto aos 51 anos, em 1926, na Suíça. "Ele é o autor de Elegias de Duíno, talvez o livro que eu mais releia", conta. Dos autores mais contemporâneos, ela também nutre admiração por Sylvia Plath, poeta norte-americana que se suicidou aos 30 anos, em 1963, e também pelos brasileiros Ferreira Gullar, Paulo Leminski e Ana Cristina César. Todos convivem em harmonia nas estantes do seu escritório.
"Sandra é uma artista generosa. Não saberia dizer se é uma pintora que faz poesia ou uma poeta que pinta. Talvez as duas ao mesmo tempo", comenta Daniel Kondo, ilustrador e responsável pelo projeto gráfico do livro de Sandra. E completa: "A obra poética da Sandra é contemplativa e cruza estados emocionais com os ciclos da natureza. Seu desenho tem potência de vida."
Recentemente, Sandra abriu a sala de sua casa, tomada por um piano de cauda, para recepcionar o poeta Eucanaã Ferraz e a cantora Mariana de Moraes, neta de Vinícius de Moraes. Os dois vieram a Porto Alegre para a abertura de uma exposição dedicada ao poeta e foram recebidos por Sandra, que organizou um sarau para homenagear a obra de Vinicius.
O gosto pela palavra faz com que Sandra, há muito tempo, venha marcando o final do ano com uma atividade em que ela propõe à família a escolha de uma palavra para que sirva de guia para o novo período a ser percorrido. Em outros tempos, Sandra já pegou "delicadeza". No ano passado foi a vez de pegar a palavra "evolução". Nesse sentido, o tempo está sendo generoso com Sandra: a evolução é permanente.
 

"O artista deve nos provocar"

Sandra Ling, segurando exemplar do livro de sua autoria:

Sandra Ling, segurando exemplar do livro de sua autoria: "Paisagismo não alcança o que uma obra de arte chega a alcançar"

/RICARDO CATANI MILANI/DIVULGAÇÃO/JC
A seguir, Sandra responde 14 perguntas que revelam sua proximidade com a arte e com os artistas que mais a inspiram.
1 - Qual o trabalho de sua autoria que você considera inesquecível?
Inesquecível? Não chegaria a tanto. Mas A Nervura da Sombra, uma série de fotografias que fiz com folhas esqueletizadas (que recolhi debaixo de árvores), com a sombra real da própria folha e a aquarela, foi algo muito poético e introspectivo para mim.
2 - Qual o trabalho de outro artista que você considera inesquecível?
As pinturas de Mark Rothko. Todas. São pinturas que transcendem, física e espiritualmente.
3 - Qual o trabalho que mais te perturbou?
Francis Bacon. Em geral, ele é muito transgressor ao olhar.
4 - Qual o trabalho que você gostaria de ter em casa?
Gostaria de ter um dos trabalhos da série Objeto Gráfico, de Mira Schendel.
5 - Qual o maior artista brasileiro?
Entre os já falecidos, Tunga. Entre os vivos, Cildo Meireles. Tanto Cildo quanto Tunga são artistas completos. Cildo não é só "retiniano", visual. Ele mexe com todos os sentidos.
6 - Qual o artista mais superestimado?
Andy Warhol. Acredito que ele tenha sido mais forte que a própria obra.
7 - E o mais subestimado?
Não saberia dizer.
8 - Qual o melhor livro sobre um artista?
No Vazio do Mundo, sobre a obra de Mira Schendel. É um conjunto de textos de curadores e de artistas falando sobre a obra de Mira. É um mesmo olhar sob vários ângulos diferentes.
9 - Qual o melhor filme sobre um artista?
Com relação à arte gosto mais de documentários, como Alberto Giacometti - Artists of the 20th Century. Gostei muito. Assim também como outro que me marcou: Rothko Rooms - The Life and Work of An American Artist.
10 - Qual deve ser o maior mérito de um artista plástico?
Criar questões novas de acordo com sua época, desdobrar pensamentos e fazer conexões com outras áreas. O artista deve nos provocar e, principalmente, nos fazer pensar.
11 - E o que um artista plástico deve evitar?
Se repetir. O artista deve estudar e pesquisar sempre para poder acrescentar, se arriscar.
12 - Qual foi o último artista que te surpreendeu?
Anselm Kiefer, com sua exposição em 2022, nas mostras paralelas da Bienal de Veneza. Fiquei impactada com a montagem como um todo.
13 - Paisagismo é arte?
Paisagismo não é arte. Nos paisagismos, eu uso pensamentos da pintura, mas para ser arte precisa não ter apenas composição, ser harmônico com o local, mas criar algo a mais num pensamento que se materializa em alguma forma, seja em filme, objeto, pintura, performance etc. No paisagismo se cria estilos próprios, mas não se alcança o que uma obra de arte chega a alcançar. Posso dizer que os jardins que crio, faço para serem agradáveis, suaves, e, conforme o local, posso dizer até meditativos. 
14 - Qual tua maior inspiração?
A própria natureza, com suas perfeições e imperfeições. Ah, e a poesia.
 

Três poemas de Sandra Ling

Os trabalhos integram o livro sempre é outra superfície, com textos e ilustrações de Sandra Ling, projeto gráfico de Daniel Kondo. Lançado em novembro de 2022.
"o novo
sempre virgem
e violento
sempre rente
fere
abre a porta
parte a monotonia
deixa um mundo
em construção"
 
"cai outono
folhas mortas
esquentam o chão
lembranças
de cores várias
estampadas"
 
"gota a gota
camadas d'água
um corpo
movimento
dentro"
 

 * Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.

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