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Publicada em 14 de Março de 2024 às 16:02

Referência na flauta, músico Ayres Potthoff mantém agenda cheia de projetos

Um dos nomes fundamentais da flauta no RS, Ayres Potthoff celebra três décadas do projeto 'Beatles em Concerto'

Um dos nomes fundamentais da flauta no RS, Ayres Potthoff celebra três décadas do projeto 'Beatles em Concerto'

FERNANDA FELTES/JC
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Márcio Pinheiro
Tudo começou com Sgt. Pepper - o bar, não o disco. Há mais de três décadas, o flautista Ayres Potthoff circulava por Porto Alegre quando cruzou com João Antônio - músico, ex-Discocueca e então garoto-propaganda (!!!???) de uma conhecida fábrica de ternos masculinos - que lhe contou que pretendia abrir um bar homenageando os Beatles e seu disco mais conhecido. João Antônio tinha ainda um pedido a fazer: Ayres poderia adaptar o repertório do quarteto de Liverpool para um estilo, digamos assim, mais erudito, com flauta e cordas? Ayres gostou da ideia, fez a adaptação e, logo a seguir, incorporou a ideia à sua atividade musical constante. O projeto deu certo e agora, no final de abril, comemora três décadas com lançamento de um show, um documentário, uma coletânea de contos e um livro infantil.
Tudo começou com Sgt. Pepper - o bar, não o disco. Há mais de três décadas, o flautista Ayres Potthoff circulava por Porto Alegre quando cruzou com João Antônio - músico, ex-Discocueca e então garoto-propaganda (!!!???) de uma conhecida fábrica de ternos masculinos - que lhe contou que pretendia abrir um bar homenageando os Beatles e seu disco mais conhecido. João Antônio tinha ainda um pedido a fazer: Ayres poderia adaptar o repertório do quarteto de Liverpool para um estilo, digamos assim, mais erudito, com flauta e cordas? Ayres gostou da ideia, fez a adaptação e, logo a seguir, incorporou a ideia à sua atividade musical constante. O projeto deu certo e agora, no final de abril, comemora três décadas com lançamento de um show, um documentário, uma coletânea de contos e um livro infantil.
Beatles em Concerto, projeto estruturado em cima das composições da banda, é interpretado pelo trio formado pelo já citado Ayres, na flauta, e mais Daniel Wolff, no violão, e Rodrigo Alquati, no cello. O espetáculo será apresentado no Theatro São Pedro, nos dias 30 de abril e 1º de maio, e contará com participações de Vitor Ramil e do grupo português Quorum Ballet – Kim Potthoff, filha de Ayres, é diretora da Escola Quorum Ballet. O show prevê ainda a exibição de trechos de um documentário, dirigido por Rene Goya, que recupera momentos da viagem que o trio fez para gravar em Abbey Road, em Londres, no estúdio mais famoso do mundo pelo fato de ter sido uma das casas de gravação dos próprios Beatles. "O (produtor musical) Carlos Branco foi quem fez a conexão. Ayres e eu nos reunimos e, a partir de alguns cafés, foram surgindo as ideias para o registro", conta Rene Goya.
"Como uma avalanche, ninguém da minha geração escapou ao fenômeno da beatlemania", explica Ayres. "Só consegui entender o que foi aquela loucura toda há alguns anos, quando percebi que fiz parte de um momento muito especial na história da música", acrescenta. "A música deles, 62 anos depois, está presente mundo afora. Isso não é para qualquer um. Particularmente, me sinto privilegiado por ter crescido ouvindo música de qualidade; Bach, Beethoven e Beatles". Rene Goya completa: "Sentir a energia e a história daquele espaço foi uma experiência fantástica. Estávamos conectados não apenas à história da música, mas também à própria essência dos Beatles. Foi como viajar no tempo".
Aos 69 anos, com uma sólida e longa carreira musical que inclui apresentações no Brasil e no exterior, além de parcerias com os principais nomes de sua geração, Ayres define a visita a Abbey Road como a realização de um sonho. "Estávamos no mesmo local em que os Beatles gravaram a canção Your Mother Should Know (do LP Magical Mistery Tour). No primeiro instante eu senti o peso de estar no lugar onde a história da música atual foi produzida", reconhece Ayres, para logo depois se sentir aliviado: "Depois de ouvir o som dos primeiros takes gravados, eu relaxei e disse para mim mesmo: 'Aproveita a oportunidade e seja feliz'''.
Ou, como os Beatles diriam: let it be.
 

Uma ideia, muitas realizações

Para os próximos meses, Ayres Pothoff está envolvido com os lançamentos de dois livros e de um álbum gravado em Londres, na Inglaterra

Para os próximos meses, Ayres Pothoff está envolvido com os lançamentos de dois livros e de um álbum gravado em Londres, na Inglaterra

/FERNANDA FELTES/JC
A comemoração de três décadas de atividade de Beatles em Concerto vai gerar, além dos dois shows no Theatro São Pedro e do documentário (com produção geral de Tárik Potthoff, 46 anos, administrador de empresas e filho mais velho de Ayres), muitos outros resultados. De imediato, dois livros: um infantil, Os Besourinhos de Piscinópolis, de Paula Taitelbaum, e outro de contos e fotos, reunindo 12 autores, intitulado Blackbird, com coordenação de texto do professor Luís Augusto Fischer e com fotos selecionadas a partir de um concurso realizado pelo Fotoclube Porto-alegrense. A temporada terá ainda um vínculo social com o Musicando para o Futuro. Coordenado pela professora Nisiane Franklin, a partir do livro de Paula, o projeto prevê a realização de oficinas de capacitação em música e literatura para os professores da rede pública. E, para o segundo semestre, será a vez do lançamento do álbum gravado em Liverpool, tanto nas plataformas digitais, como também em formato de CD e de LP.
Todas essas atividades estão em consonância com um artista que está sempre em movimento. Gaúcho de Porto Alegre, filho único de um porto-alegrense de origens alemãs e de uma angolana que veio para o Brasil com quatro anos, Ayres Estima Potthoff teve a música sempre presente em sua vida. "Recentemente, encontrei uma foto muito antiga em que pude ver que meus avós maternos tocavam bandolim e violão. Meus pais também gostavam muito de música. Em casa, ouvia-se de tudo. Na eletrola, o repertório era variado", explica. Nada mais natural, então, que a música se tornasse o caminho profissional. "A ideia dos meus pais era de que eu estudasse o que eles consideravam melhor para mim: engenharia ou administração, por exemplo. Mas apesar da insistência deles, eu estava convencido de que a música era o que eu queria".
A flauta não foi nem a primeira opção. Ayres começou pelo violão e, logo depois, escolheu o contrabaixo, instrumento com o qual se identificou e que, segundo ele, ainda ronda seu universo musical. "Eu caí na flauta por acaso e pela minha total falta de noção", ri. "Entrei na escola de Belas Artes, da Ufrgs para estudar contrabaixo, afinal era o instrumento que eu tocava numa banda de baile". Qual não foi o espanto do jovem aluno quando ele descobriu, no primeiro dia de aula, que não havia um professor de contrabaixo na instituição. Apresentado para a flauta pelo professor Zacarias Valiati, então chefe do Departamento de Música da escola, Ayres topou o desafio. "Aos poucos fui conhecendo o repertório e o mundo da chamada música erudita. O Valiati era um excelente músico. Como poucos, aproximava e incentivava seus alunos. Fundou o Clube dos Flautistas do Rio Grande do Sul e promoveu concursos nacionais, o que era também uma forma de conhecermos os colegas de outros centros musicais".
Também na faculdade, Ayres conheceu Celso Loureiro Chaves e Armando Albuquerque (1901-1986), compositor, pianista, violinista, professor e musicólogo, um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea e professor das disciplinas de instrumentação e orquestração, contraponto e fuga, e composição. "Fui aluno do Celso no Instituto de Artes e foi a admiração pelo Armando que nos aproximou. Sorte minha, pois ganhei dois grandes amigos e dois mestres que me ensinaram muito".
Ainda na vida acadêmica, Ayres foi procurado pela pianista Cristina Capparelli, também professora no Instituto de Artes, que lhe pediu que ele se responsabilizasse pela estadia do flautista americano Keith Underwood, que estava no Brasil para uma temporada como professor visitante. "Me impressionou a forma como ele ensinava e decidi estudar com ele em Nova York". No final de 1989, Ayres ganhou uma bolsa de estudos e se mudou para os Estados Unidos.
Foi lá também que Ayres conheceu Daniel Wolff, que estava fazendo seu doutorado na Manhattan School of Music. "Nos conhecemos em Nova York e, de volta ao Brasil, nunca mais perdemos o contato. Ficamos próximos e tocamos juntos em lugares tão distintos quanto Uruguai, Peru, Portugal, França, Itália e Noruega", lembra Wolff. "Ao voltarmos, propus um novo trabalho com a música do quarteto numa formação de trio, que é o formato que agora está comemorando 30 anos. É muito bom tocar com eles. São músicos muito talentosos e experientes. É um desafio constante para me manter próximo da qualidade musical dos dois".
Ayres nunca ficou restrito a um único trabalho. "Toquei com Fernando Ribeiro, Toneco, Jerônimo Jardim, Paulo Dorfman. Pelo lado da música clássica, tive parcerias com Celso Loureiro Chaves e Maly Weisemblum (com quem gravou o CD Recital)", lembra. "Com todos aprendi o melhor das muitas linguagens musicais".
Empunhando uma Brannen, flauta que comprou há 30 anos e desde então nunca mais se separou, Ayres elogia o instrumento pela qualidade do som e pela excelente mecânica. "Às vezes os alunos perguntam qual a melhor flauta e eu sempre me lembro de um ensinamento do mestre Jean-Pierre Rampal respondendo essa mesma pergunta numa masterclass. Ele olhou sério para o aluno e respondeu: 'a minha'".
 

Ayres e o homem da flauta de ouro

Flautista registrou projeto Beatles em Concerto no histórico Abbey Road

Flautista registrou projeto Beatles em Concerto no histórico Abbey Road

/GUSTAVO VIZART/DIVULGAÇÃO/JC
Peça escrita originalmente em 1973 pelo pianista e compositor francês Claude Bolling, a Suíte para Flauta e Jazz Piano é um conjunto de sete movimentos que se equilibram entre a música erudita e o estilo de Duke Ellington, de quem Bolling foi discípulo e amigo. A obra teve uma de suas primeiras performances apresentada no Palácio de Versalhes, em 1976. Quase na mesma época, a Suíte foi registrada em disco, com Bolling e Jean-Pierre Rampal acompanhados pelo contrabaixista Max Hédiguer e pelo baterista Marcel Sabiani. O impacto musical foi instantâneo, com o disco vendendo centenas de milhares de exemplares pelo mundo todo e sendo agraciado com o Grammy de Melhor Performance de Música de Câmara. A capa criativa, com o desenho de uma flauta e de um piano numa cama depois de uma noite de amor, também ajudava na divulgação.
Foi provavelmente nessa época que Ayres tomou conhecimento da gravação. "Comprei o disco por curiosidade de ouvir o Jean-Pierre Rampal tocando jazz. A música conversou comigo de cara, afinal, tinha os dois lados, o popular e o erudito. Tratei logo de buscar as partituras e convidei Celso Loureiro Chaves para ser meu parceiro nessa aventura", lembra Ayres, recordando como eles decidiram montar o show em Porto Alegre.
À época, Rampal (7 de janeiro de 1922 - 20 de maio de 2000) já era o mais expressivo nome mundial de seu instrumento. Ele deu, então, ao disco a dimensão grandiosa que o trabalho merecia. Talento precoce - era músico desde os 12 anos - Rampal sabia transitar com a mesma qualidade tanto em gravações eruditas, quanto em registros de jazz e de música popular. "Rampal foi e continua sendo um divisor de águas na escola da flauta, uma referência. Ouvia atentamente seus discos e procurava imitá-lo", reconhece Ayres.
Além de ser um virtuose em seu instrumento, Rampal carregava ainda uma curiosidade: ele era o dono da única flauta em ouro maciço fabricada, em 1869, pelo grande artesão francês Louis Lot.
A flauta foi parar nas mãos de Rampal por uma imensa coincidência: em 1948, no pós-Guerra, ele adquiriu o instrumento em um antiquário em Paris. O dono da loja pretendia derreter o instrumento para obter ouro pois não sabia que possuía uma flauta de valor equivalente ao de um violino Stradivarius. Rampal compraria o instrumento e seguiria com esta primeira flauta por dez anos, até que em 1958, adquiriu uma segunda, agora feita em ouro de 14 quilates e produzida sob encomenda para ele pela William S. Haynes Flute Company, de Boston. "Anos depois, quando eu fui diretor da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, o conheci pessoalmente e nos tornamos bons amigos", conta Ayres.
 

Fotografei você na minha Rolleyflex

Com Daniel Wolff (centro) e Rodrigo Alquati (dir), durante temporada londrina

Com Daniel Wolff (centro) e Rodrigo Alquati (dir), durante temporada londrina

/GUSTAVO VIZART/DIVULGAÇÃO/JC
Além da música, Ayres Potthoff se interessa muito pela fotografia. “A fotografia esteve presente na minha vida desde sempre”, conta. “Meus pais tinham uma Kapsa (câmera fabricada no Brasil durante a década de 50 pela empresa D. F. Vasconcelos, que se destacou entre os modelos da época pelo preço mais em conta e por ter bom acabamento e resistência). Eles perceberam que eu gostava de fotografar e me presentearam com uma mais fácil de manusear”.
Ayres lembra que conseguir uma boa foto na velha máquina de retratos era uma loteria, já que o resultado não podia ser conferido de imediato.
A brincadeira foi ficando mais séria já com Ayres atuando como músico. “Com as turnês, eu aproveitava para registrar os lugares por onde eu tocava”. Ao reunir muitas das fotos que produziu, o músico organizou a exposição Percepções. “As artes se conectam de uma maneira de outra. Dessa maneira, eu entendo que a musicalidade do Ayres Potthoff acaba aparecendo também na sua fotografia”, destaca o pianista (e também fotógrafo) Daisson Flach. “O trabalho do Ayres tem um estilo sutil e esmerado, de alguém que está sempre em busca de novas informações e de novos temas”, acrescenta.
Em tempos pandêmicos, a paixão de Ayres pela fotografia voltou ainda com mais força. “Foi o jeito que encontrei para ocupar o espaço vazio. Entrei para o Fotoclube Porto-alegrense e a diversão começou”, diz, acrescentando que a convivência com novos parceiros permitiu outras descobertas ainda mais interessantes. “No Fotoclube conheci muitos artistas sensacionais os quais me inspiram sempre com seus trabalhos. Mas com a devida licença e o meu respeito por todos desse grupo, vou citar um que sempre admirei como artista e como pessoa: Luiz Carlos Felizardo”.
Como as imagens inspiram os sons, Ayres também chegou a montar o show Fotografia, um tributo a um de seus compositores preferidos, Antônio Carlos Jobim, e que enfocava o aspecto fotográfico das canções do maestro. No repertório selecionado pelo flautista estavam Chega de Saudade, Chovendo na Roseira, Wave, Corcovado, Águas de Março, Ela é Carioca, Samba do Avião e, claro, Fotografia.

O flautista e a orquestra

Ayres Potthoff em concerto ao lado de Anne Schneider, em foto de 2002

Ayres Potthoff em concerto ao lado de Anne Schneider, em foto de 2002

/PATRÍCIA HAUBERT/ARQUIVO/JC
Criada em abril de 1985, a Orquestra Theatro São Pedro surgiu como um caminho natural de fortalecimento da tradição musical do Theatro São Pedro. O projeto nasceu de uma parceria informal entre a direção do teatro e o Departamento de Música da Ufrgs, em especial pelo interesse do violinista e professor Marcello Gershfeld, do professor de regência Arlindo Teixeira, do maestro José Pedro Boéssio, e também de Ayres Potthoff, que à época ocupava o cargo de coordenador da área de música da subsecretaria de Cultura do Estado. "Pensar e idealizar um projeto como esse foi um enorme desafio e uma realização. Me engajei de imediato e me orgulho muito dos concertos que criei ou apoiei durante aquele período", recorda Ayres. A intenção principal era dar oportunidade aos jovens alunos de música, para que eles pudessem se apresentar ao público. "A orquestra nasceu pelo fato de haver um entendimento de que o Theatro São Pedro tinha a necessidade de produzir concertos musicais e não apenas recebê-los", destaca Ayres.
 

* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.

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