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Publicada em 25 de Janeiro de 2024 às 17:25

Tio Tony encheu de magia o coração dos gaúchos durante cinco décadas

Ilusionista, animador, empresário e celebridade televisiva, Tio Tony foi personagem popular entre os gaúchos ao longo de quase cinco décadas

Ilusionista, animador, empresário e celebridade televisiva, Tio Tony foi personagem popular entre os gaúchos ao longo de quase cinco décadas

ARQUIVO/JC
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Marcello Campos
Abracadabra! Magnetizado pelo drama biográfico Houdini - O Homem Miraculoso, o escoteiro Paulo Roberto Brito Martins estava a seis meses de completar 11 anos quando saiu de um cinema na cidade portuária de Rio Grande (Litoral Sul gaúcho) com a certeza de que seria um mágico profissional como o húngaro-americano Ehrich "Harry Houdini" Weisz (1874-1926) retratado no filme. Tamanha era sua convicção que até o nome artístico já estava decidido: Tony, em homenagem a Tony Curtis (1925-2010), estrela da produção hollywoodiana que chegara às telas brasileiras em maio de 1955, com um atraso de quase dois anos.
Abracadabra! Magnetizado pelo drama biográfico Houdini - O Homem Miraculoso, o escoteiro Paulo Roberto Brito Martins estava a seis meses de completar 11 anos quando saiu de um cinema na cidade portuária de Rio Grande (Litoral Sul gaúcho) com a certeza de que seria um mágico profissional como o húngaro-americano Ehrich "Harry Houdini" Weisz (1874-1926) retratado no filme. Tamanha era sua convicção que até o nome artístico já estava decidido: Tony, em homenagem a Tony Curtis (1925-2010), estrela da produção hollywoodiana que chegara às telas brasileiras em maio de 1955, com um atraso de quase dois anos.
Os segredos e macetes da atividade deflagraram no garoto uma busca pessoal baseada na troca de experiências com outros aficionados e em leituras de publicações sobre o tema. "Fui totalmente autodidata. Escotismo, aulas de teatro e atuações em novelas da Rádio Minuano também me deram boa base para lidar com o público", contou nos bastidores de uma entrevista em 2010. Teoria e prática logo transformariam o guri aprendiz em um rapazinho de presença constante nos palcos, picadeiros, festas e outros eventos, como um bem-humorado ilusionista de mãos ágeis em truques com argolas chinesas e outros números.
Já adulto e tendo à cabeceira o famoso curso por correspondência Arte Mágica, Ilusionismo e Prestidigitação (1962), do mestre paulista Sarmento "Morgan" Morgado (1930-2023), passou a dividir agenda com os papéis de marido, pai de um casal de filhos e funcionário burocrático no escritório local da petrolífera Shell. Até que uma hepatite aguda em 1966 o deixasse seis meses de cama após ser desenganado pelos médicos, aos 24 anos. Como no personagem do longa-metragem que o impactara na infância, conseguiu escapar para novas aventuras em sua dupla personalidade, cada vez mais Tony e menos Paulo Roberto.
"Ele acabou empregado no banco Crefisul em 1968 e isso foi importante artisticamente, ao obter transferência para Porto Alegre em seguida", relata o primogênito Gilmar Martins, 58 anos, jornalista e "xerox" de Tony até no timbre de voz. "O plano era se profissionalizar e viver exclusivamente da atividade de mágico, na qual se tornava conhecido com apresentações e vitórias em concursos, tendo como partner inicial minha mãe, Isabel Emmendorfer. Em 1971, os dois chegaram a deixar eu e minha irmã com nossos avós em Rio Grande para tentar carreira em São Paulo, mas a missão acabou abortada após saberem de um acidente grave com um familiar."
Melhor para os gaúchos. Com 30 anos e decidido a levar adiante sua vocação, em 1974 ele finalmente executou o número arriscado que ensaiava desde muito jovem: entrar de terno-e-gravata pela porta de um caixote imaginário para sair no outro lado vestindo capa, varinha e cartola em tempo integral. De sua manga sairiam, nas cinco décadas seguintes, façanhas responsáveis por torná-lo figura tão popular quanto aplaudida por gente de todas as idades, dentro e fora do Estado. Ilusionista. Showman. Atração televisiva. Microempresário. Dono de circo. Ativista da categoria. Respeitável público: com vocês, Tony Mágico!
 

A mágica como meio de vida

O jovem mágico Tony, aprontando um de seus truques na década de 1960

O jovem mágico Tony, aprontando um de seus truques na década de 1960

/ACERVO GILMAR MARTINS/REPRODUÇÃO/JC
A decisão corajosa de fazer da magia um meio de vida não demoraria a ser recompensada. Fixado com a família em um apartamento no Centro de Porto Alegre, Tony passou a cumprir um intenso roteiro de eventos públicos e particulares - de colégios a boates, já associado ao Clube de Mágicos Professor Atkinson e aprofundando o intercâmbio com parceiros de profissão, inclusive de países vizinhos. Seu dinamismo e simpatia acabaram despertando a atenção da mídia. Entrevistas. Dicas de truques no suplemento infantil do jornal Correio do Povo. Performances em emissoras locais. A abertura de um circo próprio (com leão e tudo) em Alvorada.
"Em casa, o pai ensaiava números de ilusionismo com a gente e nunca entreguei a ninguém como funcionavam, mesmo que a gurizada da rua e do colégio insistisse em saber", diverte-se a filha Ana Paula, 56 anos, servidora estadual e mãe dos dois netos de Tony. O mano Gilmar acrescenta: "Ele também contava histórias engraçadíssimas, como de uma ocasião de 1972 em que atuou como auxiliar do famoso colega peruano Richiardi Júnior [1923-1985] durante espetáculo no Teatro Leopoldina e teve que buscar pedaços de carne em um açougue, para aumentar o dramatismo da parte em que uma mulher era serrada e decapitada. Claro que tudo de mentirinha."
O entertainer capaz de lotar o ginásio Gigantinho deu uma pirueta de popularidade em 1981, a partir do convite para estrelar na TV Bandeirantes o programa infantil Carrossel. Com a experiência de eventual convidado em atrações do gênero nas emissoras Piratini e Gaúcha, o quase quarentão Paulo Roberto assumiu o alter-ego Tio Tony. Exibições de ilusionismo. Calouros. Jogos. Cartinhas. Brindes como a "Caixa Encantada" da patrocinadora gaúcha Xalingo, com 24 truques e suas devidas instruções, em embalagem com foto do anfitrião. Palhacinhas. Coelhinhas dançarinas. Personagens da Disney e Hanna-Barbera. Tudo ao vivo em cenário lúdico-circense, sob total liberdade criativa.
 

Tio Tony foi uma bem-sucedida atração local no Canal 10 (Band) durante os anos 1980

Tio Tony foi uma bem-sucedida atração local no Canal 10 (Band) durante os anos 1980

ACERVO RITA DE CÁSSIA SANTOS/REPRODUÇÃO/JC
A atração obteve bons índices de audiência nas tardes de segunda a sexta-feira, tendo como concorrentes o boneco Remendão (Guaíba), o palhaço Tampinha (Pampa) e as aventuras da Sessão da Tarde (Gaúcha). "O esquema era bem solto e espontâneo, com blocos intercalados por desenhos animados. Além da presença constante de alunos de escolas e menores carentes, eventualmente saíamos do estúdio para apresentações beneficentes em Porto Alegre e Interior", relembraria em depoimento biográfico à Rádio Guaíba em 2010. "Produções locais desse tipo fazem falta, porque hoje tudo já vem pronto de Rio e São Paulo, ou enlatado de fora."

Vaidoso como todo profissional de renome no ramo, Tony não descuidava do visual, como uma espécie de moldura ao carisma e talento responsáveis por vaga garantida entre as mais bem-quistas figuras da cidade. Figurinos caprichados em cores e brilhos. Cabelo curto, preto e sem qualquer traço de fios brancos - ao longo de toda uma vida - ou da calvície precoce que, na década anterior, o fizera se submeter a um bem-sucedido implante em caráter experimental. Nos sapatos cuidadosamente lustrados, uma artimanha imperceptível: a combinação de salto e palmilha especiais para somar alguns centímetros de disfarce à estatura franzina de 1m60cm.

A figura permaneceu no Canal 10 até 1986, retornando em março de 1988 para breve temporada de exibições reduzidas a uma hora matinal, devido a remanejo na grade nacional da emissora paulista. Em esquema independente e autoproduzido (sem salário fixo, mediante comercialização de anúncios em horário alugado) acabou teletransportado meses depois para a TV2 Guaíba, cujo maior número de repetidoras no Estado proporcionava um ganho estratégico à agenda de shows no Interior. Exatos dois anos depois, a brincadeira deu lugar a uma palhaçada que não estava no script: o confisco financeiro promovido pelo presidente Fernando Collor.

Da mesma forma que milhões de brasileiros, o cidadão Paulo Roberto Brito Martins caiu na pegadinha do governo empossado em 1990. "Meteram a mão na caderneta de poupança de todo mundo. Meu programa era independente, como eu iria fazer? De uma hora para outra, tive que vender carro e outros bens", comentaria em matéria de 2009 na revista cultural Red 32.
Encerrado o contrato com a companhia Caldas Júnior, restavam as apresentações em eventos e um negócio que já deixara de ser apenas seu para pertencer ao patrimônio afetivo dos porto-alegrenses: seu bazar temático na avenida Borges de Medeiros, Centro da cidade.

Truques e sacanagens

Durante os anos 1980, Tio Tony foi uma bem-sucedida atração televisiva, com programas no Canal 10 e TV2 Guaíba

Durante os anos 1980, Tio Tony foi uma bem-sucedida atração televisiva, com programas no Canal 10 e TV2 Guaíba

/ACERVO RITA DE CÁSSIA SANTOS/REPRODUÇÃO/JC
Instalada em 1977 no ponto de número 14 do Viaduto Otávio Rocha, a Tony Mágicas fez jus ao slogan "A lojinha encantada de Porto Alegre". Especialidade da casa: kits para leigos interessados em entreter plateias particulares com truques de salão (e seus respectivos segredos) envolvendo baralhos, lenços, argolas, bolinhas e afins, a preços camaradas. E um vasto catálogo de "surpresas" para se tirar sarro de familiares, amigos ou colegas. Em seu balcão de vidro passaram de crianças e idosos, atendidos aos milhares durante quase três décadas pelo próprio dono em expedientes alternados com uma ou duas funcionárias da equipe.
Dentre elas estava Rita de Cássia Santos, ali sem a fantasia de Bimba, uma das palhacinhas que ajudavam a segurar o pique nos eventos e programas de TV do chefe. Promovida de caloura a assistente de palco infanto-juvenil em 1982, na juventude ela iniciara com o já divorciado Tony um romance capaz de resistir ao tempo e à diferença etária de 29 anos e meio. A parceira e guardiã de parte do acervo - em um apartamento no bairro Cidade Baixa - relembra episódios inusitados no pequeno estabelecimento comercial, onde também demonstrava habilidades de animadora e ilusionista hoje mantidas profissionalmente, aos 51 anos.
"O espaço era reduzido mas o pé-direito alto permitiu improvisar um mezanino de madeira com escritório e acesso por uma escadinha quase vertical. Em um fim de tarde, eu voltava da rua quando topei com Tony e vários colegas de profissão descendo os degraus depois de uma reunião da categoria. Parecia um daqueles truques arriscados, porque o cubículo não comportava tanta gente e ainda podia desabar! Também teve uma vez que o Edson Celulari (ator paulista) apareceu com o filho para algumas compras. Tony finalizou o atendimento com o tradicional 'volte sempre', antes que eu explicasse a ele sobre o cliente famoso que saía pela porta". 

Tio Tony animando crianças e adultos no Parque da Redenção, nos anos 1980

Tio Tony animando crianças e adultos no Parque da Redenção, nos anos 1980

ACERVO RITA DE CÁSSIA SANTOS/REPRODUÇÃO/JC
Alvo dos instintos sádicos de uma clientela fiel, o já citado portfólio de sacanagens igualmente agradava em cheio. Copo Babão, de furos disfarçados em ornamentos no vidro para que a bebida escorresse pelo queixo do namorado. Almofada Peidofônica, com dispositivo responsável por ruídos flatulentos quando pressionada pela bunda da sogra. Livro do Choque, de capa erótica cuja abertura desmoralizava o primo curioso com uma carga de baixa amperagem nas mãos. Barbante Fedegoso, garantindo minutos de mau cheiro ao ser queimado no refeitório da firma. Sabonete do Diabo, com sua tinta vermelha a motivar gargalhadas nos vestiários da Dupla Grenal.

"Perdi as contas das tantas vezes em que desci do ônibus uma parada antes da minha na Borges de Medeiros, no meu tempo de morador da Zona Sul e estudante do Colégio Estadual Paula Soares, só para comprar aquelas maravilhas", diverte-se o publicitário Paulo Roberto Cirne Álvares, 52 anos. "Depois eu continuava o trajeto a pé para a aula, cheio de ideias. Um dos meus trotes preferidos era a Ampola do Fedor, recheada com líquido especial (geralmente sulfato de amônio) em um vidrinho que se quebrava bem fácil quando pisado, empesteando o ar com um cheiro tenebroso de ovo podre."

Palco próprio

Teatro Mágico Tio Tony recebia festas infantis e festivais de ilusionistas

Teatro Mágico Tio Tony recebia festas infantis e festivais de ilusionistas

/ACERVO RITA DE CÁSSIA SANTOS/REPRODUÇÃO/JC
O bom faturamento e a "vitrine" permanente às atividades de seu proprietário não impediu a transferência do negócio, em 2003, para uma casa desocupada por revendedora de carros na rua Dona Alzira, bairro Sarandi (Zona Norte). Novo endereço, antigo sonho: o Salão Mágico (depois Teatro Mágico) Tio Tony, com instalações para festas particulares de crianças e adultos, apresentações artísticas, cursos e festivais de ilusionistas (inclusive internacionais) e os afamados artigos da lojinha. O empreendimento funcionaria durante 16 anos (até sucumbir à pandemia), período marcado pela chegada da terceira idade e por boas notícias aos fãs.
Em 2002, a Câmara de Vereadores concedeu a Paulo Roberto o título de Cidadão Emérito de Porto Alegre. Outra homenagem foi no Carnaval do ano seguinte, pela União da Vila do IAPI, com performances do próprio Tony em carro alegórico e citação no samba-enredo A Vila Como Num Passe de Magia (Sérgio Guerra/Renan Delavega). Experiência similar seria repetida em 2012 na Embaixadores do Ritmo, convocado para números de levitação a bordo de caminhão temático com seu nome - uma quebra de eixo, entretanto, o obrigou a substituir o atrativo por truques com duas partners em plena pista.
O artista veterano e que praticamente não tirava férias também voltou à mídia como apresentador infantil, a bordo dos programas Mundo Mágico do Tio Tony e Parabéns (2011-2013), gravados em sua casa de eventos e com veiculação pelo canal TV Urbana da NET - dezenas de edições permanecem disponíveis no YouTube. Nas declarações à imprensa, críticas à superficialidade dos novos tempos: "A mágica nunca vem sozinha. Quero trazer um pouco mais de cultura, porque hoje está tudo nos shoppings". E a inesgotável repercussão da briga comprada com a Rede Globo no final da década de 1990, em torno do misterioso Mister M.
Também é verdade que Tony vinha convivendo com um Paulo Roberto de saúde em desgaste. Até que uma combinação de diabetes, insuficiência cardíaca e úlcera gástrica o levasse à mais espetacular de suas proezas. Hocus-pocus! Após um fim de semana de internação no Hospital Independência, ao meio-dia de 18 de setembro de 2017, o menino que sonhava ser como Houdini se desvencilhou do leito de UTI e fugiu por uma passagem secreta para reaparecer flutuando no mundo da memória. Com direito a placa de rua no bairro Verdes Campos, Zona Norte da cidade que acolhera homem e personagem.
 

Sumindo com Mister M

Mágico gaúcho manteve carreira ativa até os anos 2010, sempre com muito carinho do público

Mágico gaúcho manteve carreira ativa até os anos 2010, sempre com muito carinho do público

JONATHAN HECKLER/ARQUIVO/JC
Uma novidade pegou de surpresa o filho Gilmar durante telefonema na tarde de sábado, 20 de março de 1999. Do outro lado da linha, Tony comemorava a liminar concedida pela Justiça gaúcha para que a Rede Globo suspendesse o quadro de seu programa dominical Fantástico em que o mascarado Mister M (pseudônimo do ilusionista norte-americano Leonard Montano) vinha revelando, desde janeiro, os segredos de truques clássicos. Motivo do processo: concorrência desleal e abuso de direito, por violação de sigilo profissional em atividade regulamentada por lei no Brasil.
O sinsalabin jurídico contava até com entidade especialmente criada junto a José Benedito "Magrini Júnior" Galdieri, Sérgio "Mister Albin" Schneider e Vitor Hugo "Kardini" Cardia, além do engajamento de outros 20 colegas: a Associação dos Mágicos Gaúchos Vítimas do Programa Fantástico. Sob assessoramento de um escritório de advocacia, a empreitada manteve fora do ar por dois fins de semana o nefasto personagem (que não era réu) e venceu batalhas até perder a guerra na última instância, com decisão favorável à emissora no Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2011.
"Nós dois tivemos mais de R$ 50 mil em perdas com despesas processuais, esse tipo de coisa, sem contar outras incomodações durante e depois do processo tramitar. O lado bom foi um baita saldo positivo em termos de imagem, com o nome dele falado dentro e fora do Brasil como alguém na luta por respeito à atividade", enaltece a viúva e parceira de trabalho Rita de Cássia. No auge de tal fama naquela virada de século, não faltou nem mesmo um jornal do Alasca (EUA) a repercutir a peripécia de certo "Uncle Tony, the magician from Brazil".
 

* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected]

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