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Publicada em 04 de Janeiro de 2024 às 18:33

Uma conversa com Mário Corso, craque da psicanálise e sucesso na literatura

Nos consultórios, livros e colunas de jornal, Mário Corso estabelece rica e inesgotável conversa com uma multidão de gaúchos

Nos consultórios, livros e colunas de jornal, Mário Corso estabelece rica e inesgotável conversa com uma multidão de gaúchos

FERNANDA FELTES/JC
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Márcio Pinheiro
O Google diz: "Mario Corso foi um importante jogador do Internazionale de Milão, onde jogou quase que toda a carreira, de 1957 a 1973, ganhando quatro títulos da Série A e duas Copas Intercontinentais". Sabe nada, o Google. Craque - craque, mesmo - é outro Mário Corso. Bem mais jovem (nasceu em abril de 1959) e bem mais próximo de nós (é natural de Passo Fundo e reside em Porto Alegre há pelo menos quatro décadas).
O Google diz: "Mario Corso foi um importante jogador do Internazionale de Milão, onde jogou quase que toda a carreira, de 1957 a 1973, ganhando quatro títulos da Série A e duas Copas Intercontinentais". Sabe nada, o Google. Craque - craque, mesmo - é outro Mário Corso. Bem mais jovem (nasceu em abril de 1959) e bem mais próximo de nós (é natural de Passo Fundo e reside em Porto Alegre há pelo menos quatro décadas).
O nosso Mário Corso - o verdadeiro - é ainda psicanalista, participou da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), é autor de livros como Monstruário - Inventário de Entidades Imaginárias Brasileiras (2002) e A História mais Triste do Mundo (2014). Em coautoria com a mulher, a também psicanalista Diana Corso, ele publicou Fadas no Divã: Psicanálise nas Histórias Infantis (2005) e Psicanálise na Terra do Nunca - Ensaios sobre a Fantasia (2011), além de Adolescência em Cartaz (2017). E, num caminho paralelo à psicanálise, Mário conversa em público semanalmente com seus leitores através da coluna que publica todas as quartas no jornal Zero Hora.
Filho mais velho do professor e diretor de escola em Erechim Luis Corso (já falecido) e de Zinah Falkembach Corso, uma bioquímica aposentada, Mário nasceu em Passo Fundo - por acaso, segundo ele. Depois, foi criado de maneira itinerante por Carazinho, Erechim e Santa Maria até retornar a Porto Alegre para viver parte da adolescência no hoje badalado Distrito Criativo, mas à época conhecido apenas como 4º Distrito.
O fascínio pela ciência já se manifestava na peculiar infância que Mário teve, com um laboratório à disposição. "Era pequeno e já sabia pilotar um microscópio Zeiss com lente de imersão. O choque diante das distâncias astronômicas, do absurdo de quão distante algo está, eu tive ao avesso, de quão pequeno podem ser algumas formas de vida. Uma dimensão do infinito pela pequenez."
E será mais ou menos dessa forma - entre o mínimo e o máximo - o tom da entrevista a seguir, resultado de conversas ao vivo, por telefone e por escrito que dão sequência a uma amizade que nos une por mais de uma década. Mário, além de psicanalista, é um intelectual, mas não do tipo que se isola em um pretenso distanciamento. É, sim, uma figura interessante e interessada, que discorre sobre questões do seu metiê, mas que também é capaz de conversar sobre futebol (em especial o Internacional), política estudantil (em especial a militância na Libelu, na virada dos anos 1970 para os 80), Porto Alegre, paixões literárias e cinematográficas, fadas e bruxas, crianças e adolescentes - sendo que muitos desses temas já foram abordados em sua coluna semanal.
"Na adolescência, meus colegas as vezes perguntavam: 'Você consegue fazer pólvora no laboratório?' A resposta era sim. Mas porque faria algo tão primitivo?", rebatia o pequeno químico. "Quando você tem as coisas à mão, o estudo de química fica simples para dominar a nomenclatura e propriedades", conclui.
Então, a partir de agora, descubram mais sobre esse cientista que se bandeou para o lado das humanas. E vamos com ele explorar e explodir opiniões, conceitos (pré-conceitos) e ideias. Sempre lembrando que Mário Corso é também uma das pessoas mais bem-humoradas que conheço: "Sou discípulo do Abrão Slavutzky, que me ensinou a força do humor no processo terapêutico", explica. "Poder rir de si mesmo ajuda nas experiências ruins. Até porque algumas são cômicas: a burrice pode ser cômica. E, ora, quem já não fez merda?"

O engenheiro que lia Freud

Mário Corso se movimenta com desenvoltura na fronteira entre a psicanálise e a literatura

Mário Corso se movimenta com desenvoltura na fronteira entre a psicanálise e a literatura

FERNANDA FELTES/JC
A psicanálise entrou na vida de Mário Corso pela literatura. A opção não foi nem sequer sua primeira escolha - antes ele passou pela engenharia civil, estimulado por um tio materno - mas cedo ele percebeu que aquele não era o seu mundo. Aí então já era um engenheiro que lia Freud, o que acabou sendo decisivo pela opção pela Psicologia. "Cruzei com dois livros de Freud: Futuro de uma Ilusão e Mal-Estar na Civilização. Foi uma grata surpresa por dar contorno claro ao meu ateísmo vago", lembra, ainda que reconheça que uma leitura inicial, sem professor, não é profunda. "Mas dá para entender o básico". E despertar a curiosidade.
Quem primeiro Mário analisou foi a si próprio. "Muitos começam na psicanálise por uma tentativa intelectual de entender seus dramas. Foi meu caso", destaca ele, acrescentando que o período atravessado era propício a essas descobertas: era o momento da antipsiquiatria. "E eu lia esses doidos também. Como Thomas Szasz, R.D. Laing e Franco Basaglia, que tiveram uma importância incrível e ajudaram na reforma antimanicomial. Mas o entendimento da loucura era tão raso como a da psiquiatria da época".
O curso, reconhece Mário, foi uma benção, em especial pelos colegas e pelo clima de camaradagem existente na universidade naquela época, mesmo com "professores dedicados, mas na maioria não qualificados", explica. "Mário integra uma geração de jovens inquietos com a cultura e a subjetividade. Daí que no começo dos anos 1980, encontrasse eco a suas questões íntimas e sociais numa psicanálise que se importava com o que acontecia no mundo e não somente nas quatro paredes de um consultório", acrescenta o amigo e colega Robson Pereira, também psicanalista.
A primeira experiência profissional foi quase traumática. Como psicólogo na Penitenciária Estadual do Jacuí, ele era responsável por fazer exames para progressão de pena. Tudo mudou quando em janeiro de 1988 houve um violento motim. "Colegas psicólogos ficaram reféns e morreram três agentes penitenciários", lembra, recordando também o ultimato que recebeu de Diana. "Ela me disse que era o emprego ou ela. A opção foi fácil, mas igual não teria clima. No dia do motim não fui trabalhar por estar doente. Aí criou-se um boato que eu teria informações privilegiadas."
 

Um milionário e suas mulheres

Mário e Diana Corso escrevem artigos e livros a quatro mãos

Mário e Diana Corso escrevem artigos e livros a quatro mãos

ROGÉRIO BORTOLUZZI/INSTITUTO CPFL/DIVULGAÇÃO/JC
Diana foi outro presente que o curso lhe deu, antes mesmo que houvesse a opção pela psicologia. Os dois se conheceram nas reuniões de DCE, naqueles efervescentes anos políticos do final da década de 1970. Já entediado com a engenharia e com os colegas, Mário foi em busca de novas turmas na política estudantil. "Temos tantas versões do primeiro encontro, que nós mesmos nos perdemos. Eu a conheci na faculdade e fiquei vidrado, mas não chegava, ia fazendo voltas. Ela teve paciência", recorda, para em seguida acrescentar o perfil que lhe fascinou: "Se pensarmos em termos edípicos, a Diana é o oposto da minha mãe. Uma senhora conservadora, sobrenome alemão, mais para loira. Daí entra a Diana, liberal, judia e morena, e de inhapa uruguaia".
Além da companheira de vida, Mário ganhou alguém para dividir seus interesses intelectuais. Os dois dividem o consultório e também gostos literários e jornalísticos. Assim, nada mais natural que passassem a escrever em conjunto, assinando alguns textos para a imprensa e revistas da área. "Não é comum que casais de psicanalistas consigam produzir em conjunto. Simultaneamente, a escrita de várias obras a quatro mãos não impediu que ele seguisse uma trajetória autônoma, na ficção, na contribuição jornalística e na psicanálise local e nacional", analisa Robson.
A parceria com Diana tem sido longa e resultou em três livros de psicanálise e em duas filhas. "Virei um milionário no quesito mulheres, inclusive vivendo muito a infância das minhas filhas", explica, para, logo em seguida, comparar: "As duas não podiam ser mais diferentes, na aparência e no temperamento, o que dá mais colorido à aventura de criá-las"
Hoje, com Laura e Júlia crescidas e casadas - "Por sorte com dois genros colorados" - Mário mantém seu almoço semanal com elas. Com Laura, as conversas giram em torno da psicanálise; com Júlia, a caçula, os temas se voltam para a literatura e o talento para escrita.
"Eu e a Diana temos uma profissão muito solitária, de fora ninguém entende o estado de espírito depois de um dia de escuta. Saio afásico. Não tenho vontade de conversar, nem de ouvir, preciso de silêncio", conta Mário sobre seu cotidiano. "Imagina minha sexta-feira com alguém de outra área? Não vejo nem filmes com dramas, pois parece uma continuação do trabalho."
 

É preciso ganhar o leitor nas primeiras páginas

Mário Corso (em foto de 2014) publicou vários volumes em parceria com sua esposa, Diana

Mário Corso (em foto de 2014) publicou vários volumes em parceria com sua esposa, Diana

JOÃO MATTOS /ARQUIVO/JC
Se Diana deu o primeiro empurrão, Mário logo percebeu que precisava seguir escrevendo sozinho. "Até então dava certo por sermos complementares. A Diana domina a realidade, eu a ficção".
Mário também reforçou sua aproximação da literatura ao trabalhar em uma editora, ajudando em revisões técnicas e no ajuste de vocabulário do campo psi. Na ArtMed, Mário fez amizade com o editor Henrique Kiperman, ajudando-o na escolha de títulos de autores estrangeiros que as editoras de fora mandavam. "Conheci o Mário nos anos 1990, quando ele atuou na editora como consultor para questões psicanalíticas, especialmente as lacanianas. Era um prazer acompanhar os debates entre o Mário e o meu pai", lembra Celso, executive chairman da A Educação e filho de Henrique Kiperman, fundador da empresa. "É motivo de orgulho ver que o nosso consultor se tornou um profissional reconhecido e que, ao lado de Diana, é um dos nossos autores best-seller".
Mário também lembra com alegria daquele período: "Não sei como, mas farejava bem o que daria certo editorialmente", comenta. "Às vezes, eu dizia a eles: temos um livro fraquíssimo, confuso, mas vai vender muito, o autor tem uma legião de fãs na universidade."
Fora da psicanálise, Mário gosta de ler textos antigos. E para compensar as velharias, ainda lê também muitas graphic novels. "Nem precisa ser Will Eisner ou Spiegelman, a nova geração de Alison Bechdel e Marjane Satrapi já me satisfazem. Existe um preconceito contra elas, como se fosse um gênero menor, facilitador, mas leia Maus de Spiegelman. Eu li a trilogia do Primo Levi sobre sua experiência nos campos, o alcance emocional e de compreensão histórica de Maus se equivalem".
Já na crônica, no texto que exercita semanalmente, Mário contou com o apoio do amigo Fabrício Carpinejar, que fez com que ele se desse conta que daria certo essa nova experiência. "O Mário Corso é um híbrido entre a ciência, a psicanálise o lirismo, embora ele esteja cada vez mais lírico. Ele também é um coringa, capaz de fazer uma crônica mais ensaística e outra ainda a partir de um detalhe que havia passado despercebido. Ele é extremamente atento e faz a gente pensar sempre além das aparências", elogia Carpinejar.
Para produzir, Mário diz ter uma pasta de pautas. "Hoje, ou você ganha o leitor nas primeiras linhas, ou não é lido", avalia. "Qualquer texto se beneficia das gavetas, ser envelhecido nem que seja por um dia".
Sobre os leitores, Mário diz que o e-mail publicado junto à crônica o ajuda a conhecer o seu público, saber como ele reage e quais são os pontos sensíveis. "Respondo quase todas as mensagens. Às vezes, encontro alguém na rua que diz que me lê. Fico constrangido, não é culpa da pessoa, é minha, não lido bem com isso". Mário só não encontra pacientes-leitores. "Para alguns é até tabu falar do tema. É salutar, eles têm problemas mais sérios em vista. Raramente algum comenta, por ter ficado tocado por algo".
Ainda assim, Mário reconhece, o psicanalista se expõe nos textos da coluna. "Um dia a Diana reclamou para a Lya Luft sobre a questão, e ela respondeu dizendo: 'escrever coluna é colocar a bunda na janela'. É exagero, mas ela não deixava de ter certa razão."
 

Psicanálise é bola na rede

Entre as paixões desimportantes, o futebol é a mais importante. "Serve para tomar um pileque de ilusão, como diria Drummond", filosofa Mário, um apaixonado colorado que reconhece que o futebol é o ponto fixo por onde roda a vida. É o único aspecto definitivo no ser humano, já que as pessoas mudam de cidade, de profissão, de casamento, de opinião política, até de gênero, mas não mudam de time. "Psicanaliticamente, torcer por um time é um fato totêmico. O centro da questão é a infantil convicção de que o meu pai é melhor do que o seu", acrescenta o torcedor.
"Mário é fiel a suas amizades. Podemos passar longo tempo sem conversar. Mas o reinício do diálogo é imediato e não precisa de solenidade. É como se houvesse um pacto de associação livre entre amigos. Saímos falando, depois ajustamos o tema. Seja da mais profunda seriedade, seja trivial, incluindo nisto a situação do nosso time do coração vermelho", arremata Robson Pereira.
Mário sabe que entender o futebol não muda nada, até porque o futebol só se explica pelo resultado. E basta. Por isso, a relação que Mário estabeleceu com o esporte se estrutura em outra dimensão. "O Internacional é minha única religião. Os deuses abandonam nosso planeta. Apenas os deuses do futebol, por estarem bêbados na hora da partida, restaram". E lamenta a saudade que a paixão lhe desperta: "Na tardinha de domingo, ligava para meu pai para comentar a rodada. Infelizmente, onde ele está, não tem telefone".
 

"A humanidade precisa aprender a olhar para trás"

Mário Corso:

Mário Corso: "A psicanálise veio para dizer que a humanidade sempre está de mal com realidade"

FERNANDA FELTES/JC
Como é viver em Porto Alegre?
Porto Alegre é duas e eu só conheço bem uma. Vou para a Zona Sul e me sinto turista. Mas na que eu moro é muito bom viver. Sempre há algo para fazer. É uma cidade com alma criativa. Sempre imaginei Porto Alegre como uma mulher bonita que não sabe se vestir. Agora que a cidade fez as pazes com o Guaíba, isso está mudando. Além disso, eu tenho zero impulso de sair daqui. Nunca pensei.
O Brasil e/ou o brasileiro precisa de psicanálise?
Urgentemente são os argentinos que precisam de análise. A questão é sobre a memória, reter as experiências passadas para não as repetir. Veja, acho que a humanidade precisa aprender a olhar para trás e examinar os erros. O que é o surto de antissemitismo que assistimos? As pessoas são culpadas por serem judias, como se todas fossem amigas do Netanyahu. A psicanálise veio para dizer que a humanidade sempre está de mal com realidade, prefere refugiar-se em fantasias.
E as críticas recentes que compararam a psicanálise à astrologia?
São frutos do descrédito que a psicanálise ganhou entre cientistas. Embora, nestes casos, estes não conheçam a psicanálise, tomam a caricatura como verdade. Foi bom ver colegas reagindo, tentando mostrar como é um corpo teórico, embora envelhecido, consistente. É dificílimo fabricar um instrumento que nos mostre os progressos terapêuticos - e existem processos não terapêuticos numa análise - da análise, mas os psicanalistas nunca tentaram seriamente. Eles podem não achar razão para isso, mas o pessoal de fora está interessado.
 

Quem fez a cabeça de Mário Corso

- "Na universidade, Martha Brizio, uma argentina, kleiniana em transição para outras leituras, que foi a primeira mestra".
- "Porto Alegre tem um movimento psicanalítico importante. Havia psicanalistas que abriam grupos de estudo. Quem mais me marcou foi o de Alfredo Jerusalinsky".
- "Em 1986 foram organizados encontros com psicanalistas lacanianos franceses, como Charles Melman, Marcel Czermak, Christiane Rabant-Lacôte e o italiano Contardo Calligaris".
- "Contardo Calligaris passou anos em Porto Alegre. Seus seminários eram extraordinários, consolidou o ensino de Lacan na cidade".
 

* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.

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