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Publicada em 21 de Dezembro de 2023 às 18:39

As aventuras de Samir Machado de Machado

Samir Machado de Machado une pesquisa e contemporâneo em uma literatura voltada ao entretenimento

Samir Machado de Machado une pesquisa e contemporâneo em uma literatura voltada ao entretenimento

TÂNIA MEINERZ/JC
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Rafael Gloria
Rafael Gloria, especial para o JC*
Rafael Gloria, especial para o JC*
Se você estiver pelo Bom Fim, é possível que veja Samir Machado de Machado em uma das diversas cafeterias do bairro. "O trabalho do escritor é solitário, então, gosto de convidar colegas para tomar café, falar do meio literário, conversar sobre o que andam lendo, fofocar", diz. Autor de livros como Homens Elegantes (Rocco, 2016), Tupinilândia (Todavia, 2018) e O Crime do Bom Nazista (Todavia, 2023), e vencedor do prêmio Jabuti, Minuano e Açorianos, Machado é um dos mais prolíficos escritores da sua geração, se especializando em romances históricos e de aventura.
O escritor e amigo de Samir, Rafael Bassi, brinca que ele é a Gertrude Stein de Porto Alegre. "Além de um grande autor, é um agitador de reuniões de escritores em cafés. Ele está sempre disposto a discutir todo e qualquer tipo de literatura, de verdade. É muito comum encontrar o Samir lendo um clássico, seja da Antiguidade, do século XVIII ou XIX com 800 páginas, ou os livros de autores contemporâneos. Além do seu fascínio por tudo o que é cultura pop - nesse quesito eu posso dizer que ele é enciclopédico", comenta.
De fato, o vasto conhecimento de Samir é uma constante quando se fala sobre sua trajetória, assim como a diversidade de fontes em que ele se aventura para escrever. Para o crítico literário Carlos André Moreira, os livros de Samir, pela forma como abraçam elementos contrastantes, podem ser vinculados ao que se chama de literatura pós-moderna. "São, em sua maioria, obras situadas no passado, romances históricos fundamentados em ampla pesquisa, mas que lançam mão de anacronismos propositais, elementos da narrativa fantástica, piscadelas contemporâneas para seus leitores por meio de alusões cifradas à cultura pop, dos quadrinhos até as novelas de televisão. Alegorias sobre questões do presente também são frequentes", diz.
Samir recorda que, no início da faculdade, começou a se aventurar pela leitura de livros de fantasia. Era o começo dos anos 2000 e acontecia um boom da temática. "Li Harry Potter, descobri um tal Senhor dos Anéis, li Duna e muito da obra do Bernard Cornwell, era uma época que estavam relançando Star Wars no cinema. E acho que tive uma postura que muitos autores jovens têm: escrever um grande épico de ficção científica, ser o Tolkien brasileiro, e ficou ruim, muito derivativo, mas eu me apeguei aos personagens que tinha criado", explica. Ele conta que amigos lhe sugeriram colocar esses personagens em um contexto diferente. "E então me veio a ideia do romance histórico, pegar um período brasileiro em que os personagens funcionassem. E assim nasceu o Quatro Soldados, em 2013", conta.
Na época, ele percebeu que o Brasil colônia seria um espaço perfeito para adaptar uma história de fantasia medieval, de capa e espada. "Cheguei à conclusão que, naquele período, éramos tão atrasados em relação ao resto do mundo, não só porque Portugal era uma nação mais conservadora em relação a outros países da Europa em termos de mentalidade, mas também porque eles também fechavam o Brasil para o mundo", diz.
O escritor Ian Fraser conta que a leitura de Quatro Soldados o influenciou bastante. "O foco na aventura, os personagens carismáticos, a ambientação brasileira, a estrutura de arcos narrativos, o uso de nossa cultura e a atenção aos detalhes. Foi lendo esse romance que vi, pela primeira vez, a possibilidade de ter o meu nome na capa de um livro, e isso é gigantesco", aponta.
Foi só durante o seu mestrado em Escrita Criativa, anos depois, que Samir percebeu por que tanto interesse seu nesse período - especificamente, a segunda metade do século XVIII até a chegada da família real portuguesa no século XIX. Nessa época se passam outros de seus romances, que ele nomeou como "ciclo barroco", por enquanto, composto por Homens Elegantes (2016), Piratas à Vista (2019) e Homens Cordiais (2021). "É o momento em que nasce a identidade do Brasil enquanto nação. E é no século XVIII que começam a chegar ideias novas. É ali que Basílio da Gama vai escrever O Uraguai. É ali que vai se formar as ideias da consciência mineira. E isso é uma coisa que me fascina, eu percebo que é um tema recorrente na minha literatura essa busca por identidade." 

Dinossauros de formação

Samir Machado de Machado relembra influências de literatura fantástica e quadrinhos em sua formação

Samir Machado de Machado relembra influências de literatura fantástica e quadrinhos em sua formação

TÂNIA MEINERZ/JC
Nascido em Porto Alegre em 1981, Samir mora no bairro Bom Fim desde 1986. "Eu costumo dizer que eu nunca estive em Recife, mas que tenho uma certa relação com a cidade, porque eu sempre vivi entre os três heróis da libertação dela, que são Filipe Camarão, Henrique Dias e Fernandes Vieira", brinca.
No colégio, recorda que já preferia as aulas de português e de literatura, leu muito Pedro Bandeira e Maria Dinorah. Ele lembra também que, nessa época, costumava desenhar histórias em quadrinhos em casa, influenciado pelas revistas do Pato Donald, e comenta que, desde então, contar histórias é a única constante em sua vida.
Quando tinha 11 anos, outro fato marcante aconteceu: ganhou de presente do pai o livro Parque dos Dinossauros, de Michael Crichton. "Foi o primeiro livro adulto que eu li e eu ganhei duas semanas antes de estrear o filme nos cinemas. Eu fiquei obcecado por dinossauros, por literatura de ficção científica e aventura. Acho que meu gosto pela literatura nasceu principalmente ali", diz. O cinema também foi muito importante em sua formação, aliás, assistindo a diversos filmes no videocassete que a família comprou quando tinha cinco anos.
Samir cresceu durante uma década de 1980 recheada de efeitos especiais analógicos - logo, quando apareceu o primeiro dinossauro em efeito digital, o deslumbramento foi grande. "Eu escrevi um livro, o Tupinilândia, para tentar digerir a minha fascinação, não com o dinossauro em si, mas com toda a ideia de entretenimento através desse filme", explica. Ele diz que tanto o livro quanto o filme Parque dos Dinossauros procuram o realismo em uma obra fantástica. "E isso foi algo que eu trouxe para a minha literatura. Pensar histórias que são de imaginação, de entretenimento, de extrapolação da realidade, da forma mais realista possível", aponta.
Mais tarde, Samir ingressou na faculdade de Publicidade da Pucrs, principalmente por causa do desenho. "Eu me formei no curso porque queria desenhar, e acabei fazendo a função de diretor de arte. Eu nunca fui redator. Em casa, eu trabalhava como escritor", confessa. Em seguida, trabalhou um tempo na editora da universidade, onde, pelas suas contas, fez mais de cem capas.
Samir conta que, de certa forma, passou para a sua literatura a preocupação de pensar a narrativa enquanto imagem. "No Quatro Soldados, por exemplo, tem um capítulo em que uma cena de ação é descrita como se fosse uma ilustração", conta. Durante o tempo de Não Editora, ele se tornou também um renomado capista, ganhando três vezes o prêmio Açorianos de melhor capa, categoria que foi extinta em 2017. "Eu parei de fazer esse trabalho porque ou eu me focava em ser um capista mediano, ou em ser um bom escritor, então, me decidi em tentar ser um bom escritor", diz.

Um pouco de Pulp e de Não Editora

Rodrigo Rosp, editor e fundador da Dublinense, participou com Samir na organização de Ficção de Polpa, coletânea de ficção científica e terror, inspirada nos pulps americanos. "Foi em 2006 e era absolutamente original. Escrevi um conto, que ele aprovou, e ajudei o Samir na organização apresentando alguns escritores novatos, como o Antônio Xerxenesky. Também me envolvi em várias etapas da produção e achei algo delicioso de se fazer", conta. O livro saiu em 2007 e teve boa repercussão, chegando até o centro do País.
"Uma das coisas mais legais foi ver o quanto foi bem recebido", comenta Samir. "Até hoje, é lembrado. Muita gente coleciona. Foi uma experiência interessante ver o processo inteiro da cadeia do livro." Ficção de Polpa teve cinco volumes, compostos, em ordem de lançamento, por horror, ficção científica, fantasia, policial e aventura.
O tradutor e escritor Bruno Mattos, autor do Pequeno Dicionário de Etimologia Alternativa, participou com um conto no terceiro volume do projeto. "Eu não sei se eu teria um livro hoje se o Samir não tivesse publicado um conto meu lá em 2008, talvez eu pensasse que não fosse para mim", diz ele.
Machado e Rodrigo Rosp também são dois dos fundadores da Não Editora. Samir diz que, para ele, a ideia sempre foi servir como trampolim para publicar em editoras maiores depois. Se é assim, o projeto cumpriu seu papel, lançando uma geração de novos autores, como o próprio Samir, Carol Bensimon, Reginaldo Pujol Filho, Antônio Xerxenesky, entre outros.

Elegantes e cordiais

Escritor atribui escolha por protagonistas LGBTQIA+ em sua obra a um "momento de Scarlett O'Hara"

Escritor atribui escolha por protagonistas LGBTQIA+ em sua obra a um "momento de Scarlett O'Hara"

RENATO PARADA/DIVULGAÇÃO/JC
Se dá para dizer que é em Quatro Soldados que Samir encontra sua vocação no romance histórico, é em Homens Elegantes que ele radicaliza e consolida seu método e visão. Pelo menos, é o que acha o escritor Antônio Xerxenesky. "Gosto de pensar que fui importante na sua formação quando apresentei a ele Mason & Dixon, romance de Thomas Pynchon que fez a cabeça do jovem Samir e serviu de base intelectual para seus experimentos mais consagrados, que mesclam alta e baixa cultura de forma radical, dos quais destaco Homens Elegantes, meu favorito e o mais ousado nessa proposta pós-modernista", diz.
Na trama, um soldado brasileiro é enviado a Londres com a missão de investigar uma rede de contrabando de livros eróticos para o Brasil, em 1760, e se deslumbra com os luxos e excessos da alta sociedade europeia. Uma aventura de capa e espada, com direito a duelos e perseguições a cavalo, e pelo universo LGBT do século XVIII. É o começo da série de livros com o protagonista Érico Borges, que tem mais aventuras em Homens Cordiais, de 2021.
Samir diz que é um livro importante em sua trajetória. "Lida com a descoberta, através da literatura, de uma identidade enquanto homossexual. Ali eu tive o meu momento de Scarlett O'Hara, jurando que jamais vou escrever novamente um livro que não tenha um protagonista LGBTQIA+. Porque não faz sentido, sabe? Quando eu vou ler uma história, eu quero me identificar com o protagonista. E, obviamente, ninguém vai questionar, por exemplo, os protagonistas dos livros do Michael Crichton ou dos livros de aventura do Bernard Cornwell, são homens héteros", diz. 
A base comum de uma história de aventura é um personagem ordinário jogado em situações extraordinárias. "E no momento em que se tira esse protagonista branco hétero, que é o padrão da história de aventura, uma herança que a gente tem da literatura europeia imperial, e se coloca, por exemplo, um protagonista gay ou um protagonista negro, a própria dinâmica natural de uma história de aventura começa a se alterar, porque essa identidade redefine como ele tem que se movimentar na sociedade e numa realidade histórica diferente", explica Samir.
Para o escritor Tobias Carvalho, autor de Quarto Aberto, a literatura de Samir opera num mundo à parte. "Como ele frequentemente escreve personagens LGBT dentro de romances históricos, ele reconhece que essas pessoas sempre existiram. Preferindo reescrever a História a partir de pontos cruciais do passado, e não apenas do presente, gera uma contrafactualidade política bastante engenhosa e com um valor de entretenimento sempre alto. Porque o principal é isso: a habilidade do Samir para escrever histórias é um negócio espantoso", aponta.
No mesmo ano que lançou Quatro Soldados, em 2013, Samir lembra que foi para a Europa pela primeira vez e visitou, na Inglaterra, a tradicional livraria Waterstones. "São cinco andares de livros. E metade de um dos andares é dedicado à literatura LGBTQIA+. Encontrei autores como James Baldwin, William Burroughs, autores literários", conta. No fim daquele mesmo ano, ele começou a escrever Homens Elegantes. "É uma história e uma literatura bastante sufocadas e objetivamente apagadas ao longo dos séculos. E é um pouco como o Homens Elegantes lida nesse sentido, de descobrir que faz parte de uma tradição cultural de séculos, a cultura homossexual", explica.
Carlos André Moreira gosta dessa série histórica dos trabalhos de Samir Machado de Machado. "Principalmente os dois livros do 'James Bond gay no século XVIII' Erico Borges. Especialmente Homens Cordiais me parece ter encontrado um ótimo equilíbrio entre as muitas vertentes do trabalho do Samir. É uma obra que, por meio de um liquidificador pop, aborda, de modo cifrado, questões que são pertinentes ainda hoje, como a aversão das elites por mudanças, principalmente as que podem resultar no fim de algum privilégio, e os perigos do fanatismo religioso quando se torna ativismo político", acredita.

Literatura e entretenimento

Samir gosta da palavra entretenimento para falar sobre literatura. "Na sua forma mais emblemática, a literatura é feita de histórias que nós contávamos ao redor da fogueira para nos entretermos. O prazer da leitura, para mim, é essencial numa obra de ficção. E esse prazer pode vir do enredo, da habilidade com que o autor trabalha a linguagem ou de outros lugares, mas ele precisa estar presente na leitura", defende.
Em 2021, ele, Natalia Borges Polesso, Luisa Geisler e Marcelo Ferroni ganharam o prêmio Jabuti na categoria romance de entretenimento com o livro Corpos Secos. Na trama, uma doença fatal assola o Brasil, transformando-o em uma terra pós-apocalíptica. Atualmente, eles estão escrevendo uma continuação. "Escrever romances de entretenimento é ambicioso no Brasil, mais ainda enquanto escolha política de Samir. Sua escrita repensa o nosso presente a partir de uma re-interpretação de eventos no passado", diz Luisa Geisler. Ela comenta, ainda, admirar a habilidade e cuidado com personagens de Samir, mas também seu poder crítico e afetuoso como pessoa. "Como co-autor de Corpos Secos, Samir é uma enciclopédia ambulante de mortos-vivos (mas não só). As referências do Samir não têm igual, desde quadrinhos desconhecidos de ação dos anos 1980, passando por documentários sobre a cidade fantasma de Henry Ford, até o que está acontecendo na literatura contemporânea neste exato momento. Isso e os dinossauros. Samir sabe tanto de dinossauros!", comenta.
Por falar em dinossauros, Samir comenta que seu livro Tupinilândia é, na prática, um Jurassic Park com militares brasileiros ao invés de dinossauros. Porque falar de entretenimento na literatura também é refletir sobre política e história - ou, pelo menos, a obra de Samir é uma busca disso. "O livro se passa em dois momentos. Em 1984, durante o Diretas Já, o fim da ditadura e o início da democracia. E em 2016, em que acontece um golpe, seja de Estado ou jurídico. Então, é entre o fim de um golpe e o início de outro", conta. A história gira em torno da construção de um parque de diversões no interior do Pará, criado por um investidor nacionalista.
A escritora Natalia Borges Polesso aponta também essa questão histórica na obra de Samir. "Tem uma coisa que eu acho muito legal na literatura dele, que é uma homenagem aos livros, especialmente em Homens Elegantes. Tem toda uma história do Brasil que está contida nas histórias aventurescas dele, acho muito marcante esse cuidado de contar a história do livro e da leitura no Brasil", aponta.
 

Eliminando nazistas

Nos agradecimentos do seu livro mais recente, O crime do bom nazista, Samir cita o professor Ricardo Timm de Souza e como sua aula sobre pensamento idolátrico acendeu a fagulha que resulto no livro. Ele foi orientador do mestrado de Samir na área da Escrita Criativa da Pucrs. "Foi interessante, dada a ansiedade que Samir sempre demonstrou em produção de textos. Ele é intelectualmente muito prolífico, então a dificuldade foi aceitar que, para o mestrado, bastaria a redação de um só livro", conta da experiência. Atualmente, Samir está no doutorado na mesma área e na mesma instituição.
Samir explica que o livro começou a ser escrito em abril de 2020, portanto, o auge da pandemia no Brasil. "Bolsonaro ria da cara de quem morria por Covid, o secretário da cultura recitava Goebbels em rede nacional, além de todas aquelas associações infinitas que o bolsonarismo fazia com o nazismo. Eu estava isolado e me sentia cercado de nazistas, então, escrevi uma história sobre pessoas isoladas no Zeppelin cercadas por nazistas", conta. Ele conta que já tinha a ideia há tempos de escrever uma história ambientada em um zeppelin - ou uma obra infantil, ou um mistério policial. Acabou escolhendo a segunda opção.
A trama traz baronesas misteriosas e espiões comunistas em meio à ascensão do Terceiro Reich e à perseguição nazista aos gays da Berlim dos anos 1930. E combina isso com temas do Brasil contemporâneo. "O livro tem uma estrutura dupla. Os primeiros nove capítulos imitam um romance da Agatha Christie em que se apresentam os personagens, acontece um crime, um detetive começa a investigação, reúne todo mundo e explica o que aconteceu. Já a segunda parte, é totalmente Conan Doyle, um tipo de estrutura que ele usa em alguns contos, em que a primeira parte conta a história e a segunda usa um flashback, que conta a história por trás daquele crime e que eu uso aqui. Então, até o nono capítulo é Agatha Christie e o décimo é Conan Doyle, e eu intencionalmente mudo o tom", explica.

Livros de Samir Machado de Machado

O professor de botânica, Não Editora, 2008
Quatro Soldados, Rocco, 2013
Homens Elegantes, Rocco, 2016
Tupinilândia, Todavia, 2018
Piratas à Vista, FTD Educação, 2019
Corpos Secos (com Luisa Geisler, Marcelo Ferroni e Natalia Borges Polesso), Alfaguara, 2020
Homens Cordiais, Rocco, 2021
O Crime do Bom Nazista, Todavia, 2023
 

Assinatura

* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação (Ufrgs) e editor do site Nonada Jornalismo.

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