Porto Alegre,

Anuncie no JC
Jornal do Comércio. O jornal da economia e negócios do RS. 90 anos.

Publicada em 14 de Dezembro de 2023 às 19:09

A mente inquieta de Luiz Carlos Maciel, um dos nomes decisivos na contracultura brasileira

Com escrita vibrante e pensamento libertador, Luiz Carlos Maciel foi nome decisivo no estabelecimento de uma contracultura à brasileira

Com escrita vibrante e pensamento libertador, Luiz Carlos Maciel foi nome decisivo no estabelecimento de uma contracultura à brasileira

ARQUIVO PESSOAL FAMÍLIA MACIEL/REPRODUÇÃO/JC
Compartilhe:
Márcio Pinheiro
Luiz Carlos Maciel e a cidade submersa
Luiz Carlos Maciel e a cidade submersa
 
"Eu sonhava muito com Porto Alegre.
Não com a cidade toda, mas especialmente com algumas ruas, algumas esquinas, algumas praças; algumas que conheci várias décadas atrás, embora não tivesse sido as mais percorridas, as mais vividas.
A praça da Igreja do Rosário. O Alto da Bronze. Certas esquinas da Rua da Praia. Aquelas ruas das faculdades. Certos trechos da Redenção. A catedral.
Nunca lembrei direito o que acontecia nesses sonhos, nada de interessante provavelmente, mas tais locais apareciam nítidos, mais ou menos como eram quatro décadas atrás ou mais, e, contudo, revestidos de uma luz nova, obscura.
Acontece que Porto Alegre é minha cidade natal e eu a abandonei há quatro décadas".
O trecho acima faz parte do livro As Quatro Estações, publicado em 2001 como sendo a segunda parte das memórias do jornalista, escritor, filósofo, ator e teatrólogo Luiz Carlos Maciel. O texto retrata em parte a estranha e distante convivência que ele tinha com a cidade onde nasceu, em março de 1938, e foi registrado com o nome dado em homenagem ao líder comunista Luís Carlos Prestes, também porto-alegrense. "Minha relação com a cidade é indescritível. A partir de um sonho recorrente que eu tinha, me lembrava de alguns pontos. Foi a cidade da minha adolescência, local em que descobri o teatro, a literatura e a filosofia", me falou Maciel em uma entrevista no começo de 2005.
Maciel estudou num tradicional colégio jesuíta da Capital antes de entrar para a faculdade e se formar em Filosofia aos 20 anos. Ligado a saraus poéticos e grupos teatrais da cidade, Maciel, no final dos anos 1950, fez uma excursão pelo Nordeste com uma escala em Salvador. Nunca mais voltou de forma definitiva para Porto Alegre. "Em Porto Alegre, fiz parte dos grupos teatrais - Clube de Teatro, Teatro Universitário e Teatro de Equipe - e participei do grupo Quixote, no qual publiquei meus poemas. Descobri e li Sartre e Samuel Beckett. Além disso, era sócio do Clube de Cinema e me interessava por tudo que acontecia culturalmente".
Todo esse vínculo com a capital gaúcha seria atropelado e superado por novas emoções. Em Salvador, Maciel pegaria o auge da Renascença baiana patrocinada pelo reitor Edgard Santos. Ficaria próximo de jovens que começavam a agitar a vida cultural da cidade, como Caetano Veloso, João Ubaldo Ribeiro, Paulo Gil Soares e - especialmente - Glauber Rocha. Com Glauber, Maciel teria a noção de que suas ambições teatrais poderiam ser acrescidas por experiências cinematográficas, ampliando suas áreas de atuação. Desse convívio surgiria o convite para que ele estreasse à frente das câmeras como ator em Cruz na Praça, curta-metragem dirigido por Glauber. Mais como experiência do que proposta profissional, a atuação de Maciel não teve grande repercussão e na virada da década seguinte - a década que lhe marcaria para sempre com um de seus principais analistas e memorialistas - Maciel estaria no Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, como bolsista da Fundação Rockefeller, para estudar direção teatral e produção de roteiros.
Anos depois, após quase três décadas de residência fixa no Rio, Maciel ouviria de sua mulher, a atriz Maria Cláudia: "Você está precisando ir a Porto Alegre. Pegue um avião e vá". Espantado, ele disse. "Ué, por quê?". "De vez em quando, temos de ir ao lugar onde nascemos", concluiu ela. Maciel viajou e viu a sua cidade devorada pelo tempo. O passado não estava em lugar nenhum. Tudo lhe parecia vazio. Nada que foi em busca, Maciel encontrou. Quando chegou de volta a seu apartamento, no Leblon, sentiu-se em casa.
E nunca mais sonhou com Porto Alegre.
 

Nos subterrâneos da contracultura

Arte completa da capa do livro Underground, organizado por Cláudio Leal; por meio de sua coluna no Pasquim, Luiz Carlos Maciel difundiu o conceito da contracultura em todo o País

Arte completa da capa do livro Underground, organizado por Cláudio Leal; por meio de sua coluna no Pasquim, Luiz Carlos Maciel difundiu o conceito da contracultura em todo o País

EDIÇÕES SESC/DIVULGAÇÃO/JC
Luiz Carlos Maciel tinha uma escrita pessoal e confessional. Ainda assim, ele conseguiu ser mais explícito e conciso sobre si próprio quando se resumiu numa autoentrevista em que se (re)apresentou aos leitores do Pasquim na edição de número 500. Maciel, um dos fundadores do jornal e já então envolvido com tantos outros projetos (peças de teatro, programas de televisão, shows, discos, oficinas de textos, outros jornais), na época - na transição da década de 1970 para a de 1980 - declarava sua profissão de fé e definia o que para ele definia a sua formação: "A vontade de mudar, criar, inventar, viver". E concluía: "Ou seja, a minha mesma loucura de agora e de sempre".
Essa (saudável) loucura sempre esteve presente na trajetória de Maciel. Da experiência teatral nos anos 1950, ele passaria para o jornalismo. Convidado por Tarso de Castro, que o conhecia dos tempos de Porto Alegre, Maciel primeiro foi chamado a colaborar no semanário Panfleto. Como veio o golpe de 64 e o Panfleto - que era ligado aos brizolistas - foi empastelado, Maciel ficaria circulando pelas redações do Rio de Janeiro (Jornal do Brasil, Manchete) até Tarso, então um dos criadores do Pasquim, chamá-lo novamente para ser um dos primeiros colaboradores do novo jornal.
A coluna Underground, dividida em duas páginas que Maciel editava, fez dele um nome conhecido, batendo recordes de cartas dos leitores. Quer ter uma ideia do alcance da influência de Maciel? Faça o teste: Allen Ginsberg, Carlos Santana, Abbie Hoffman, Carlos Castañeda, Timothy Leary, Jack Kerouac, Ravi Shankar, Alan Watts, Jimi Hendrix. Essas e muitas outras pessoas - ícones da cultura pop do final dos anos 1960 e do começo dos anos 1970 - entraram na cabeça de muita gente aqui no Brasil através dele.
Underground antenava o público brasileiro com o que estava acontecendo no planeta. Pelos serviços prestados, Maciel ganhou um apelido, o Guru da Contracultura, que, com o tempo, se transformou em rótulo. Mais tarde ele iria rejeitar. "Não aceito o guru. Não tenho guru nem sou guru de ninguém. Na minha filosofia, cada um tem de ser seu próprio guru", me disse o próprio Maciel numa conversa que tivemos num café do Moinhos de Vento, no começo do milênio.
A experiência no Pasquim seria intensa, porém curta. Com a briga e a saída de Tarso do comando do jornal, Maciel acompanharia o amigo. "Maciel foi a pessoa mais doce que conheci", atesta a jornalista gaúcha Cotinha Duhá, radicada há décadas em Nova York e muito próxima de Maciel durante os anos 1970. "Era um iluminado. Um pisciano típico, espiritualizado. Uma pessoa de uma nobreza de caráter enorme". Também a iluminação de Maciel foi o que ficou para outra jornalista, a carioca Ana Maria Bahiana: "Foi a pessoa mais iluminada, mais preparada, a que era a mais capaz de ver o Brasil de vários ângulos", diz. "Ele foi responsável por dar uma nova visão sobre o jornalismo. E tudo o que ele fez ajudou a abrir as portas do Brasil para o mundo".
"A importância de Maciel para a contracultura se deu em dois planos. Primeiro, no teatro, ao colaborar com Zé Celso nos laboratórios dos atores do Oficina, desenvolvendo o estilo de representação de O Rei da Vela. Depois, no debate teórico, Maciel foi o principal difusor do conceito de contracultura. Ele articulou autores e ideias, apresentou tendências, antecipou visões mais avançadas sobre as drogas e a diversidade sexual. Situou-se ainda como um intérprete relevante do tropicalismo e do cinema de Glauber Rocha", resume o jornalista baiano Cláudio Leal, organizador do livro Underground, a mais completa coletânea realizada sobre a obra do autor gaúcho.
Leal e Maciel estiveram muito próximos. "O livro nasceu de uma missão dada por Maciel assim que eu o provoquei sobre a ausência de reedições de seus textos sobre a contracultura", lembra. "Ficamos bem amigos. E ele achava que era algo significativo eu ser mais um baiano a cruzar a vida dele. Maciel participou da fase inicial do projeto do livro, que saiu mais abrangente do que ele esperava. O próprio Maciel pediu o prefácio ao Caetano Veloso".
Depois de parar de publicar a coluna Underground no Pasquim, Maciel viveria os anos 1970 dividindo-se em múltiplas atividades. De imediato estaria à frente de Flor do Mal, jornal contracultural fundado por ele em 1971, ao lado dos poetas Tite de Lemos, Torquato Mendonça e Rogério Duarte. Logo depois, se vincularia a uma nova pequena revolução na imprensa nacional, editando uma versão brasileira da Rolling Stone. Era o início do desbunde.
 

As pedras que rolam

Luiz Carlos Maciel ficou marcado pela experiência na coluna Underground, e também destacou-se na edição brasileira da Rolling Stone

Luiz Carlos Maciel ficou marcado pela experiência na coluna Underground, e também destacou-se na edição brasileira da Rolling Stone

ACERVO PESSOAL MÁRCIO PINHEIRO/REPRODUÇÃO/JC
O salto seguinte de Luiz Carlos Maciel foi no comando da edição brasileira da revista Rolling Stone. Ana Maria Bahiana, repórter em seu primeiro emprego, lembra: "Ficava no segundo andar de um sobrado cor-de-rosa na esquina de Visconde de Caravelas com Conde de Irajá. Das janelas da redação, via-se o Corcovado e tudo parava no final da tarde para um sorvete e outras guloseimas menos legais. O chão era de tábuas corridas e rangia. O banheiro tinha um pequeno nicho a São Jorge, Iemanjá, Buda e Shiva. Num extremo do sobrado, ficava o santo dos santos: o escritório dos donos, um inglês e um americano muito festeiros. Só os chefes - Luiz Carlos Maciel, editor, Lapi, diretor gráfico - tinham acesso a ele. Fui lá uma vez: assinaram minha carteira de trabalho estalando de nova, a primeira anotação da minha vida".
Guru ou não, Maciel resumiu boa parte das experiências que teve naquela época. Quarenta anos depois, ele escreveria que a grande revolução ocorrida naquele período foi a liberdade. A verdade de que somos totalmente livres para inventar a nós próprios foi posta em prática. "Eu sempre o respeitei como teórico dos anos 1960/70 e ele sempre me respeitou como um prático da mesma cultura", lembra o jornalista Joel Macedo, outro repórter da Rolling Stone. "Maciel discorreu sobre aquela época; eu a percorri. Ele falou sobre; eu vivi", compara Joel.
Para Maciel, houve uma contestação de toda a maneira de viver vigente, uma subversão de valores que abrangeu o comportamento, a estética, a política e a religião.
Ele acreditava que essa era uma maneira de, em tempos de crise, se voltar para o passado para tentar compreender o presente e vislumbrar o que poderia acontecer no futuro.
 

"Será que não há um jeito honesto de ganhar a vida?"

Embora tenha influenciado os rumos da contracultura brasileira, Maciel não gostava de ser chamado de "guru"

Embora tenha influenciado os rumos da contracultura brasileira, Maciel não gostava de ser chamado de "guru"

ARQUIVO PESSOAL FAMÍLIA MACIEL/REPRODUÇÃO/JC
Nos últimos anos de vida, Luiz Carlos Maciel passou a ter uma ativa participação com postagens no Facebook, comentando assuntos da política brasileira contemporânea, revisitando temas que sempre lhe interessaram (beats, jazz, cinema, teatro, gatos) e rememorando antigas histórias do Pasquim. No último dia de 2015, fez uma postagem no Facebook ressaltando a predileção de seus leitores pelos seus livros mais antigos, mas afirmava que na sua opinião o melhor era o mais recente, O Sol da Liberdade, publicado por uma pequena editora em 2014. Maciel encerrava a postagem explicando que o livro era difícil de ser encontrado nas livrarias e que os interessados não deveriam desanimar, podendo adquiri-los através de uma pessoa que ele indicava.
Seis meses antes, Maciel havia sido ainda mais explícito ao expor as dificuldades financeiras que atravessava. Em uma postagem de junho, com o título Maciel quer trabalho, em letras maiúsculas, ele se confessava "um tanto constrangido, é verdade, mas sem outro jeito" e usava "esse meio de comunicação, típico da era contemporânea e de suas maravilhas, para levar ao conhecimento público o fato desagradável de que estou sem trabalho e, por conseguinte, sem dinheiro".
Apelando a amigos e desconhecidos, Maciel contava que estava desempregado há quase um ano e dizia precisar urgentemente de um trabalho que lhe desse "uma grana capaz de aliviar este verdadeiro sufoco". Por fim, Maciel fazia um pequeno currículo ("Sei ler e escrever, sei dar aulas, já fiz direções de teatro e de cinema, já escrevi para o teatro, o cinema e a televisão. Publiquei vários livros, inclusive sobre técnicas de roteiro, faço supervisão nessas áreas de minha experiência, dou consultoria, tenho - permitam-me que o confesse - muitas competências". E acrescentava mostrando (e brincando com) sua versatilidade e demonstrando um certo espanto diante dos novos tempos. "Na mídia impressa, já escrevi artigos, crônicas, reportagens... O que vier, eu traço. Até represento, só não danço nem canto. Será que não há um jeito honesto de ganhar a vida com o suor de meu rosto?"
Apesar da relativa repercussão, não se sabe se desse apelo surgiu alguma oferta. Luiz Carlos Maciel morreria pouco mais de dois anos depois, em dezembro de 2017, vítima de falência múltipla de órgãos. Tinha 79 anos.
 

Livros que traduzem um pensamento libertário

MÁRCIO PINHEIRO/ESPECIAL/JC
Luiz Carlos Maciel escreveu livros importantes como Nova Consciência, Negócio Seguinte: e A Morte Organizada - quase sempre abordando temas e experiências recolhidas do tempo em que editava Underground. Nestes livros, alguns textos e opiniões ficariam datados, porém sem afetar a essência do pensamento libertário e inovador do autor. Maciel não renegaria seus escritos, classificando-os como sensíveis, inteligentes e frutos de uma observação sensata da época. Eu destacaria como ponto alto Geração em Transe - Memórias do Tempo do Tropicalismo, definido por ele como um exercício de memória totalmente subjetivo e ainda o balanço de uma experiência pessoal neste tempo que lhe foi dado viver.
Samuel Beckett e a Solidão Humana
Sartre – Vida e Obra
Nova Consciência
Negócio Seguinte:
A Morte Organizada
Anos 60
Eles e Eu – Memórias de Ronaldo Bôscoli (com Ângela Chaves)
Geração em Transe – Memórias do Tempo do Tropicalismo
Dorinha Duval – Em Busca da Luz (com Maria Luiza Ocampo)
As Quatro Estações
O Sol da Liberdade (com Patrícia Marcondes de Barros)

* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.

Notícias relacionadas