Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Reportagem Cultural

- Publicada em 20 de Outubro de 2022 às 18:57

Agitação e permanência nos altos da Borges: os 55 anos do Teatro de Arena

Espaço símbolo de resistência cultural nos tempos de ditadura militar em Porto Alegre, Teatro de Arena completa 55 anos mantendo as portas abertas ao novo

Espaço símbolo de resistência cultural nos tempos de ditadura militar em Porto Alegre, Teatro de Arena completa 55 anos mantendo as portas abertas ao novo


/TÂNIA MEINERZ/JC
A nomeação das escadarias do Viaduto Otávio Rocha - os degraus dos Altos da Borges, como prefere dizer mais de um caminhante - por estações do ano fez com que o Teatro de Arena esteja situado na passagem de nome 'Inverno', com início na rua Fernando Machado e final na rua Duque de Caxias, na soleira do edifício de mesmo nome. No entanto, é na primavera que o Teatro - ao mesmo tempo um dos menores e de vida mais intensa na história de Porto Alegre - encontra as suas datas mais marcantes: a do seu descobrimento, a da sua inauguração (e, portanto, a do aniversário) e a que garantiu o retorno das atividades ao espaço, depois de anos de adormecimento e de suspensão dos espetáculos.
A nomeação das escadarias do Viaduto Otávio Rocha - os degraus dos Altos da Borges, como prefere dizer mais de um caminhante - por estações do ano fez com que o Teatro de Arena esteja situado na passagem de nome 'Inverno', com início na rua Fernando Machado e final na rua Duque de Caxias, na soleira do edifício de mesmo nome. No entanto, é na primavera que o Teatro - ao mesmo tempo um dos menores e de vida mais intensa na história de Porto Alegre - encontra as suas datas mais marcantes: a do seu descobrimento, a da sua inauguração (e, portanto, a do aniversário) e a que garantiu o retorno das atividades ao espaço, depois de anos de adormecimento e de suspensão dos espetáculos.
Conta o jornalista Rafael Guimaraens, no livro Teatro de Arena - Palco de Resistência, que foi no desfecho da primavera de 1966 que o ator Jairo de Andrade, quem sabe em caminhada a esmo pelo Centro de Porto Alegre, à procura inconsciente de novos espaços para a cena teatral da cidade, se deparou com um porão "escuro, alagado e malcheiroso" em plena subida do Otávio Rocha: "[Jairo] desceu alguns degraus da escadaria e se agachou diante de uma das janelinhas do subsolo de um enorme edifício. Enxergou um porão alagado pelo estouro de um esgoto cloacal. Apesar da escuridão, percebeu que a área teria, talvez, 300 metros quadrados". O estado de abandono seria temporário para o porão, pois meses depois começariam as improvisadas obras para a abertura do Teatro de Arena.
Jairo de Andrade (cujo nome se confunde com a história do Teatro, com suas idas e voltas) pertencia naqueles anos, os primeiros sob a ditadura militar, ao Grupo de Teatro Independente (GTI) de Porto Alegre e, com colegas e companheiros, buscava uma nova sede para as funções do grupo. O espaço no Viaduto Otávio Rocha - por seu mau estado e por sua singular localização, principalmente - parecia um local negociável. Sem dinheiro, Jairo prometeu ao proprietário do edifício Duque de Caxias, onde a área do Arena se configurava como um abandonado porão, a reforma do espaço e o começo dos pagamentos apenas para quando as atividades começassem; prometia, mais do que isso, um espaço de cultura para a área das escadarias da Borges, o que de início havia facilitado as negociações com os donos.
Para tanto, seria preciso limpar o lugar, reformar o porão alagado e, do zero, erguer as paredes do teatro. Jairo e os colegas do GTI (como Alba Rosa e Câncio Vargas, entre outros poucos naquele início), levaram as obras adiante.
"O GTI promoveu um curso de teatro em que os alunos pagavam as aulas com trabalho. Das 18h às 20h, a tarefa era cavoucar. A ordem era escavar até o limite do encanamento do esgoto, o que significava baixar o chão em cerca de cinquenta centímetros", relata Rafael Guimaraens no livro citado. Na primavera de 1967, quando se abria o mês de outubro, o Teatro de Arena estava pronto e colaria nas paredes os cartazes anunciando a estreia, marcada para o dia 17, com a peça O Santo Inquérito, texto de Dias Gomes. A censura limitou a presença a maiores de idade, mas, quem sabe ignorando a natureza do que ali era narrado e encenado, não proibiu a realização da peça.
 

A alternativa era a resistência

Teatro de Arena marcou resistência do teatro gaúcho à ditadura militar

Teatro de Arena marcou resistência do teatro gaúcho à ditadura militar


/TÂNIA MEINERZ/JC
Antonio Hohlfeldt, crítico de teatro e colunista do Jornal do Comércio, acompanhou os acontecimentos do Arena desde os primeiros tempos. "Havia necessidade, em Porto Alegre, de espaços alternativos. Parte do grupo (que fundou o Arena) fazia parte do Grupo de Teatro Independente, que se apresentava em um teatro pequeno chamado Teatro de Equipe, no Centro. Ali, inclusive, assisti à primeira versão de Esperando Godot. Na construção do Arena, teve início um trabalho realmente de cooperativa. Por outro lado, havia, obviamente, a referência do Teatro de Arena de São Paulo e do Teatro de Arena do Rio de Janeiro. Também houve importante apoio de sindicatos, principalmente, no caso gaúcho, do Sindicato dos Bancários, que na época tinha Olívio Dutra como presidente", relata à reportagem.
A escolha pela peça de Dias Gomes como o espetáculo de inauguração do Teatro de Arena não foi casual nem fortuita; antes, tratava-se de um criterioso cartão de visitas e do início de uma forma ao mesmo tempo inteligente e corajosa de atuar sob a censura vigente. O texto de Dias Gomes, altamente político, colocava em cena a inquisição e a injustiça, mas em um episódio do século XVIII. "Não era difícil associar os métodos da inquisição aos utilizados pela ditadura militar. Mais do que a denúncia, o texto examina os comportamentos perante as injustiças, na conduta de dois personagens. A peça estimulava a participação e a rebeldia, através de uma mensagem explícita: quem cala, de fato, colabora", escreveu Rafael Guimaraens. 

Encenação de peça escrita por Dias Gomes, logo na abertura do Teatro, ditou rumo contestador que espaço seguiria nos anos seguintes

Encenação de peça escrita por Dias Gomes, logo na abertura do Teatro, ditou rumo contestador que espaço seguiria nos anos seguintes


ACERVO PESSOAL CÂNCIO VARGAS/TEATRO DE ARENA/REPRODUÇÃO/JC
Os meses seguintes, de 1968 em diante, são de acirramento da censura e da repressão estatal. Com o AI-5, as medidas de sufocamento do pensamento crítico (e a perseguição pura e simples a atores e militantes) ampliam as dificuldades para se levar adiante as cenas do teatro político. O Teatro de Arena busca se esquivar dos mecanismos da censura e seguir com os trabalhos: coloca em cena a peça Álbum de família, de Nelson Rodrigues, e depois passa a encenar um texto de Sartre que, após a estreia, tem a sua realização momentaneamente proibida pelo governo. O mesmo aconteceria com outras peças nos últimos anos da década de 1960 e nos primeiros da década seguinte: os atores e produtores do Arena tentavam desafiar os limites impostos pela censura, dentro de uma mínima margem de segurança, enquanto o regime recorrentemente proibia cenas inteiras, fragmentos do texto ou mesmo o espetáculo como um todo, o que acarretava em perdas de muito tempo e dinheiro.

"Quanto à censura, o Jairo dizia que, na hora do ensaio, enchia de cacos, de palavrões, que seriam mesmo cortados pela censura. Havia dois momentos da censura, o do texto e do ensaio prévio à estreia, que era mais terrível, porque tu poderias ter investido dinheiro e perder tudo ali. Às vezes, de maneira proposital, se carregava na linguagem, nos palavrões, que poderiam ser cortados, para tentar manter a parte política do texto, que era o que importava. Então, sim, o Teatro de Arena conseguiu razoavelmente driblar a censura", relata Hohlfeldt, que recorda as leituras dos textos de Plínio Marcos, autor proibido pelo regime, realizadas pelos atores do Arena.

Conta o crítico de teatro que, "numa das várias atividades do Teatro de Arena, e como naquele momento estava proibido montar peças de Plínio Marcos, o Jairo de Andrade teve a ideia de fazer leituras dramáticas dos textos do Plínio, leituras que chegavam muito perto da encenação, mas que não precisavam passar pela censura. Eu saía do prédio do Correio do Povo às oito da noite, subia até o Arena, assistia à leitura, coordenava o debate e depois escrevia os textos para o jornal, falando a respeito do debate e da dramaturgia do Plínio".

Entre avanços e recuos

Acervo do Teatro de Arena ainda guarda documentos ligados à censura

Acervo do Teatro de Arena ainda guarda documentos ligados à censura


/TÂNIA MEINERZ/JC
Mesmo com as crescentes dificuldades financeiras (Jairo e a equipe mal conseguiam pagar a manutenção do espaço, sem falar no compromisso estipulado com os proprietários para a compra da área) e a curta margem de atuação junto às regras idiotizantes do regime, o Teatro de Arena buscava maneiras de manter-se e continuar. Nomes como Ana Maria Taborda e Marlise Saueressig juntaram-se à equipe e novos espetáculos foram postos em marcha.
"O Arena também trouxe, além dos nomes mais conhecidos da dramaturgia, dramaturgos novos, e isso foi muito importante. Gente que estava falando do tempo presente, e que escrevia peças para menos personagens, de modo que as produções eram aptas para um teatro pequeno como o de Arena. À medida que o teatro cresceu, vieram nomes do centro do país e mesmo estrangeiros, como no caso do diretor espanhol (José Luiz Gómez) de Mockinpott (de Peter Weiss), com apoio do Instituto Goethe. O Arena foi ocupando um espaço que, pela própria situação da ditadura, não era possível ser ocupado por outras casas de espetáculo", analisa Hohlfeldt.
No entanto, a trajetória do palco dos altos da Borges estava longe de ser apenas ascendente. Ao longo dos anos 1970, o Arena se viu balançado por avanços e recuos, por complicações de ordem prática, pela angústia das dívidas e pela incerteza inevitável do teatro político em tempos de repressão. Por momentos, a situação política se tornava insuportável e as portas do porão do viaduto se fechavam provisoriamente; não raro, Jairo e Marlise, então sua companheira, deixavam Porto Alegre por dias e semanas, em busca de palcos do interior do estado ou em outras regiões brasileiras, de cursos que visavam à formação de novos atores e de maneiras de alimentar o cada vez mais mirrado cofre do Teatro.
Ao final daquela década, as condições se mostravam insustentáveis para a permanência e, no começo de 1980, endividado e com seus atores e produtores extenuados, o Teatro de Arena declara o seu fechamento - que o tempo mostraria não ser definitivo. "Foram várias as razões para aquele fechamento. Por um lado, foi o resultado de anos de desgaste. A esquerda foi se dividindo, se fragmentando, algo que também se deu no fechamento do Coojornal. Por outro lado, também havia uma campanha muito violenta dos moradores do edifício, que se queixavam muito do barulho, do que chamavam de bagunça. E, ainda, uma dificuldade muito grande de produção. Quando termina o período mais duro da ditadura e se abrem os espaços, o Arena é engolfado, e fica fechado por um tempo grande", conta Hohlfeldt.
 

Anos de espera e silêncio - e então o recomeço

Espaço cultural vem recebendo investimentos estruturais e de acessibilidade, segundo secretária de Cultura do Estado

Espaço cultural vem recebendo investimentos estruturais e de acessibilidade, segundo secretária de Cultura do Estado


/TÂNIA MEINERZ/JC
Se hoje o Teatro de Arena pode festejar seus 55 anos de história com portas abertas, a presença do público e uma programação escolhida livremente por seus gestores, tal condição se deve ao movimento de retomada que teve lugar nos primeiros anos de reconstrução democrática no País. Em setembro de 1988, no mandato do governador Pedro Simon, com o editor Carlos Appel à frente da Secretaria da Cultura e Dilmar Messias na pasta que se ocupava da produção teatral rio-grandense, o Teatro de Arena finalmente foi desapropriado e passou a ser um dos palcos públicos do Rio Grande do Sul, sob a administração do Estado. Ali se assegurava, portanto, a continuidade do lugar.
Ao longo das últimas décadas, o Teatro de Arena não voltou a fechar as portas de maneira significativa. Atravessou, isso sim, como desde os seus começos, o vaivém dos tempos, nem sempre generoso ao teatro e às artes. Nos últimos anos, o palco do Viaduto Otávio Rocha teve de enfrentar outra prova exigente: os intermináveis meses de pandemia e a impossibilidade de reunir atores e produtores e receber o público em sua sede. Na fase mais dura da emergência sanitária, o Teatro funcionou apenas com as atividades de bastidores: a manutenção silenciosa do espaço e a atualização do acervo que está presente no local, por exemplo.
Segundo a secretária de Cultura do Rio Grande do Sul, Beatriz Araujo, o Teatro de Arena recebeu investimentos nos âmbitos estruturais e de acessibilidade no último período. "Há 55 anos, as exigências de estrutura física para os espaços culturais eram outras. Por suas características construtivas, o teatro apresentava um problema histórico de acessibilidade, que está sendo resolvido por meio do investimento em reformas. Com recursos do Programa Avançar na Cultura, foi possível fazer investimentos da ordem de R$ 100 mil, desde 2021, para manutenções e contratação dos serviços de adequações prediais, além da aquisição de equipamentos e realização de eventos. Outra providência importante foi a digitalização dos mais de dois mil textos do acervo, para garantir sua conservação e proporcionar acesso em meio virtual, o que facilita muito o trabalho dos pesquisadores".
Atual diretora do Teatro de Arena, a atriz e produtora Gabriela Munhoz afirma que o espaço não apenas sobreviveu às adversidades dos últimos dois anos como demonstrou fôlego quando chegou o momento do reencontro entre o palco, os atores e o público. "O fato de se manter vivo ao longo da pandemia e da força da retomada diz muito sobre o espírito de luta do Teatro, de não se entregar. O Teatro de Arena pulsa esse caráter do teatro político por si, não importando quem está à frente dele. Mas essa força do Teatro está bastante em evidência no momento. Isso também está no perfil dos artistas que pisam aqui, na força cênica dos que se apresentam no palco do Arena. E, como gestão, procuramos pesquisar e receber artistas que têm essa força, que têm identificação com o espaço", conta à reportagem.
O período recente da história do Teatro, entretanto, também foi marcado por perdas de personagens centrais para se compreender a trajetória do Arena. Apenas no ano de 2022, faleceram Marlise Saueressig, atriz revelada nos palcos do viaduto e que alcançou destaque no teatro, no cinema e na televisão; o ator gaúcho Sirmar Antunes, de recorrente presença no cenário do Otávio Rocha e com destaque em produções televisivas de âmbito nacional; e Mauro Soares, ator e diretor que viveu como poucos a intimidade do Teatro de Arena e que esteve presente em mais de um período da história do espaço - e dos demais redutos cênicos da cidade de Porto Alegre. Nesta semana, em que o teatro comemora o seu aniversário, os três são recordados em homenagem planejada pela administração do Teatro.
A programação do Arena se volta para o aniversário da casa e, na sequência, abre-se também para a música e a dança, com sessões de caráter diverso em fins de outubro e ao longo de novembro. O certo é que, hoje, o passante que busca as escadarias do viaduto no roteiro de uma caminhada livre ou para cortar caminho pelo Centro de Porto Alegre não encontrará, na inclinada passagem de nome 'Inverno', nem um porão alagado nem um palco em enfrentamento cotidiano com a vizinhança. Apaziguado, mas não domesticado, o Teatro de Arena continua vigente nos altos da Borges, inteiro aos cinquenta e cinco anos e disposto a mais, atento e vibrante como costuma ser às exigências de cada trecho da história.
 

O futuro do Teatro de Arena

Espaço do Teatro de Arena segue adequado a encenações de pequeno porte

Espaço do Teatro de Arena segue adequado a encenações de pequeno porte


TÂNIA MEINERZ/JC
Sobre o futuro e as singularidades do Teatro de Arena, opina Antônio Hohfeldt: “o Arena não voltou a ser tão protagonista por uma questão muito simples. Ao se tornar um espaço vinculado à administração pública, ele deixou de ter uma linha específica, que lhe dá identidade. Ele continua sendo importante para a cidade, recebe espetáculos que demandam a sua ocupação, mas não tem uma linha definida para o tipo de produção. Virou um espaço eclético, e se torna um espaço mais parecido com os demais. O sucesso passa a depender muito de cada produção. Penso que, para o futuro, cabe um debate mais sério sobre o que vai ser do Teatro de Arena. É preciso debater sobre as linhas de referencialidade, isso precisa voltar a ser discutido para os espaços do Rio Grande do Sul”.
 
 
* Iuri Müller é jornalista formado pela UFSM e pesquisador em Literatura, com doutorado pela PUCRS. Colabora regularmente com o Suplemento Pernambuco e com o Jornal do Comércio, entre outros.