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reportagem cultural

- Publicada em 21 de Julho de 2022 às 18:38

Orquestra Villa-Lobos transforma vidas de crianças e adolescentes há 30 anos em Porto Alegre

Há 30 anos, Orquestra Villa-Lobos transforma vidas e promove arte na periferia de Porto Alegre

Há 30 anos, Orquestra Villa-Lobos transforma vidas e promove arte na periferia de Porto Alegre


/TÂNIA MEINERZ/ORQUESTRA VILLA-LOBOS/JC
Thaís Seganfredo, especial para o JC
Thaís Seganfredo, especial para o JC
 
As mãos pequenas carregam o violino com cuidado. Devagar, Bryan lustra o arco do instrumento e puxa da sua pasta a partitura da próxima música, que a professora Thalita da Cruz acabou de pedir. Ela também já teve 10 anos e, como ele, já se deslumbrou com os contornos elegantes do instrumento quando começou a fazer parte das oficinas da Orquestra Villa-Lobos, projeto sediado desde 1992 na Lomba do Pinheiro.
Há 30 anos, o projeto transforma a vida de milhares de crianças e adolescentes ao unir educação musical e qualidade artística nas salas da escola municipal homônima, nomeada em homenagem ao prestigiado compositor modernista brasileiro. Bryan é um dos 300 alunos contemplados atualmente pelas oficinas de música e teatro do projeto. Além do ensino, a Orquestra já realizou cerca de 1300 apresentações e colecionou 17 prêmios, incluindo o Prêmio Açorianos de Melhor Espetáculo em 2019 e 2020 e o Prêmio Funarte de Arte e Educação, em 2018.
A idealizadora é a musicista e educadora Cecilia Rheingantz Silveira, que também rege a Orquestra, composta por 50 músicos formados pelas oficinas. Embora o programa tenha crescido de tal forma que já atendeu 10 mil alunos até hoje, a educadora conta que a essência permanece a mesma de sempre: ensinar música às crianças e adolescentes de forma profissional. "Hoje, nós estamos na segunda geração. Os meus alunos da orquestra são os adolescentes filhos dos meus alunos lá do início. É uma cultura enraizada, constituída naturalmente dentro desse processo aqui na região e na vida das famílias", conta Cecilia.
A regente fala com um brilho no olhar sobre seus músicos, um orgulho exemplificado na figura do flautista Vladimir Soares. Aluno de Cecilia desde os 11 anos, hoje ele é um músico reconhecido na Europa. Como flautista, teve oportunidades na área desde a formação na Orquestra, traçando uma trajetória de graduação na Ufrgs e mestrado com direito a láurea na Universidade de Stuttgart, na Alemanha, onde trabalha até hoje.
Vladimir é um dos muitos alunos formados pela Orquestra Villa-Lobos que viram na música seu devir profissional, assim como Thalita, que hoje vive de e para a música. "Eu sou cria do projeto, eu sou educadora porque me formei aqui dentro. O que eu desejo é passar para outras gerações o que passaram para mim um dia aqui dentro", diz. Além de educadora nas oficinas, Thalita é uma das musicistas que compõem o grupo principal da Orquestra, realizando apresentações em escolas e espaços públicos do centro e da periferia de Porto Alegre, sempre que possível de forma gratuita, além de viajar para outras regiões. Em abril deste ano, as três décadas desta trajetória foram celebradas com a noite de gala que a orquestra merece, em um espetáculo no Theatro São Pedro.
A seriedade do trabalho de Cecilia, dos 23 educadores, dos alunos e de todos os parceiros ganhou o carinho do público, que comparece em peso nos espetáculos. A trajetória também é reconhecida por colegas da música e profissionais como o diretor artístico da Ospa, Evandro Matté. "A Orquestra Villa-Lobos é um dos mais importantes projetos de inclusão social através da música no Rio Grande do Sul. Muitos profissionais da música passaram pelo projeto, que tem sido uma oportunidade imensa para crianças que não tem acesso ao aprendizado da música terem contato com a música, melhorarem seu desempenho escolar e, em alguns casos, se transformarem em profissionais. É um trabalho muito competente, com resultado brilhante", comenta o maestro.
A mola propulsora que mantém tanta energia e realização, mesmo com todas as dificuldades, é a capacidade de acreditar que, independente de fatores externos, a arte move o mundo. "O que move a gente, a equipe e os alunos é realmente acreditar no poder transformador que a arte tem dentro de uma comunidade em situação de vulnerabilidade social. É continuar produzindo cultura e arte", projeta Cecilia.
 

Trajetória coletiva

Três décadas depois de seu início, Orquestra Villa-Lobos continua sem negar novas vagas para estudantes interessados, mesmo com limitações de espaço

Três décadas depois de seu início, Orquestra Villa-Lobos continua sem negar novas vagas para estudantes interessados, mesmo com limitações de espaço


/TÂNIA MEINERZ/JC
Quando Cecilia chegou na escola municipal Villa-Lobos para dar aula de educação artística, não sabia que uma simples ideia iria movimentar tantas vidas. "Os alunos achavam que uma hora de aula por semana era muito pouco, eles queriam mais, e aqueles olhinhos brilhando fizeram com que eu buscasse alternativas. A opção que encontrei foi convidá-los a virem à tarde", relembra.
Ela então começou um clube de flauta doce para as crianças da escola. Eram 10 vagas, que logo foram ampliadas porque mais alunos se interessaram. Ainda hoje, 30 anos depois, a Orquestra continua abrindo novas vagas sempre que mais estudantes se interessam, mesmo com o número limitado de salas de aula disponíveis.
O início dos anos 2000 foi um divisor de águas para a Orquestra Villa-Lobos. Depois da consolidação de uma ideia simples, mas que demandava bastante trabalho, a equipe inscreveu o projeto em um edital nacional de música e foi um dos 20 selecionados no país todo. "Ali nós tivemos condições de contratar os educadores e de ter uma estrutura mínima de instrumental. Outras conquistas foram acontecendo e também conseguimos reformar a sala", conta a professora.
Aos poucos, novas pessoas foram se somando à iniciativa até que alguns dos primeiros estudantes formados se tornaram monitores. Assim, o que era um projeto de iniciação acabou se expandindo, já que os alunos queriam continuar aprendendo cada vez mais. Hoje, o programa é formado por diversos níveis de aprendizado, com turmas de teoria e percepção musical e preparação para a Orquestra. Os participantes podem escolher livremente se querem aprender canto coral, teatro, flauta, violino, percussão, piano ou outros instrumentos.
Neste processo, cada aluno tem uma trajetória personalizada, levando o tempo necessário para passar de uma turma a outra em cada instrumento escolhido. A metodologia cuidadosa foi sendo construída conforme Cecilia foi percebendo a necessidade do corpo docente. "A gente não é uma escola de música em termos convencionais, no sentido de fazer seleção. Como o projeto iniciou com a característica de dar oportunidade a todos que queriam fazer parte, isso a gente nunca perdeu. Todas as crianças, adolescentes e adultos que vêm, a gente recebe".
Desde 2006, o Centro de Promoção da Criança e do Adolescente São Francisco de Assis é parceiro da orquestra, possibilitando diversas oficinas dentro do projeto. De lá para cá, novos horizontes foram se abrindo, com arranjos cada vez mais complexos e, com isso, mais estudo para cada apresentação. "Acredito que desde 2010, nós passamos a aprimorar cada vez mais as nossas produções artísticas. O espetáculo Afrika, por exemplo, envolveu 130 artistas, cenário e figurino. Essa vida artística da Orquestra teve marcos importantes na última década, e isso é muito motivador para nós", comemora.
Junto a todo o reconhecimento, a equipe da orquestra faz questão de nunca esquecer que é imprescindível continuar realizando espetáculos nas escolas dos bairros periféricos. "Lutamos muito por isso, acreditamos muito na democratização da cultura como um todo e o quanto que nós temos que cumprir com a nossa parte, dar um retorno para a sociedade desse trabalho, que é público", destaca Cecilia.
 

Vidas que a arte movimenta

Primeira turma da Orquestra Villa-Lobos foi aberta em 1992

Primeira turma da Orquestra Villa-Lobos foi aberta em 1992


/ORQUESTRA VILLA-LOBOS/DIVULGAÇÃO/JC
Foi com emoção que a musicista e educadora Karen Neves reagiu quando viu os figurinos que a orquestra iria usar na primeira apresentação depois de dois anos de hiato. Era a volta depois da pandemia de Covid-19, um retorno de muito afeto para quem ficou dois anos em casa.
Desde que entrou no projeto em 2007, na oficina introdutória de flauta, ela sempre se mostrou organizada. Foi avançando nas aulas, mas também fazia questão de ajudar nos bastidores. "Eu ajudava muito no figurino, entregava, recolhia, fazia e acontecia. Em 2014, surgiu a oportunidade da professora contratar novos monitores, e eu fui uma dessas", relembra. Hoje, Karen é uma das ex-alunas que trabalham formalmente como educadoras no projeto, seguindo as pegadas de uma família de músicos, como seu avô.
Somado a todo conhecimento técnico que adquiriu, Karen cita o conhecimento de vida como um de seus principais aprendizados, pautado em valores como coletividade, solidariedade e paciência. "A orquestra me ensinou muito a viver em grupo. Eu tento passar algumas coisas para minha filha sobre isso, sobre se preocupar com o próximo", conta.
É o que acontece também com Thalita Mença da Cruz, professora de violino. Ela chegou ao projeto aos 7 anos, influenciada pelo irmão mais velho, que já havia aprendido vários acordes. Hoje com 24 anos, ela já sabia que sua vida iria mudar através do ofício de ensinar quando era pequenininha. "Eu tinha um irmão mais novo, de 5 anos, e estava aprendendo a ler na escola. Quando cheguei em casa, queria ensinar ele a ler também. Eu já sabia o que eu queria, né?", diz. Agora, ela atua para que a música nunca mais saia de sua família. "Eu tento passar essa influência também para minha filha, que começou a participar do coral infantil", comemora.
O adolescente Kallyl Felizardo aprendeu a cultivar seus próprios caminhos, além de tomar gosto pelo piano. Ele conta que o momento mais marcante de sua trajetória na orquestra foi sua primeira apresentação, quando sentiu a responsabilidade de não errar o instrumento em cima do palco. "Eu estava bem nervoso, mas se eu estiver calmo, vai", recorda. A vivência na escola o levou a descobrir novos horizontes. Ele não pensa em seguir com a música como profissão. Decidiu que deseja se formar em Medicina.
 

Repertório de responsa

Cecilia em apresentação na Escola Municipal Afonso Guerreiro Lima

Cecilia em apresentação na Escola Municipal Afonso Guerreiro Lima


/TÂNIA MEINERZ/JC
Quis o destino que a Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos abrigasse uma iniciativa que viria a se tornar referência na área da educação musical. A escola, um conjunto de prédios e corredores que ladeiam uma quadra esportiva na Vila Mapa, foi batizada com o nome do maior compositor da música erudita no Brasil. "A escola já tinha esse nome quando o projeto foi criado, e inclusive os católicos brincam comigo que Cecilia é a padroeira da música", se diverte a professora.
Inicialmente uma orquestra de flauta, hoje o conjunto é composto pelo naipe composto por de violinos, viola, violoncelo - que formam o naipe das cordas de arco -, pelo naipe das flautas doces, percussão em variados instrumentos e o naipe de harmonia, com instrumentos como piano, violão, cavaquinho, bandolim e baixo elétrico.
Cada naipe vai cumprindo sua função, dependendo do repertório variado da Orquestra, que perpassa por vários gêneros especialmente da música popular brasileira e internacional. "O repertório da orquestra é essencialmente de música popular, mas a gente sempre tem alguma coisa de Heitor Villa-Lobos, que é sim uma referência nossa, um músico eclético que bebeu em várias fontes da música popular, da música folclórica regional em todo o Brasil e construiu sua arte muito a partir de suas influências", explica Cecilia.
A curadoria musical de cada espetáculo é arranjada especialmente para a orquestra, que, por não ter formação sinfônica, não encontra arranjos já prontos para o repertório diverso característico do projeto. Assistir a um espetáculo da Villa-Lobos é, portanto, uma oportunidade de ver arranjos exclusivos para autores como Fela Kuti, Baden Powell, Martinho da Vila e Sivuca.
Essa pluralidade da Orquestra Villa-Lobos, aliada à qualidade técnica, acabou conquistando público e crítica. Recentemente, o projeto foi premiado com o troféu Açorianos de melhor espetáculo por dois anos consecutivos, com Paz & Amor (2019) e Afrika (2020). "Esse reconhecimento, a gente vai internalizando paulatinamente, e isso vai inclusive trazendo uma confirmação de que o que a gente faz tem sentido para nós e para o nosso público. A arte, para se completar na sua função social, tem que ter essa via de duas mãos, tem que chegar no público com muito significado", diz Cecilia.
 

O apoio da plateia

Orquestra Villa-Lobos busca diferentes formas de financiamento para manter atividades

Orquestra Villa-Lobos busca diferentes formas de financiamento para manter atividades


/ORQUESTRA VILLA-LOBOS/DIVULGAÇÃO/JC
Atualmente, a orquestra depende de variadas fontes de financiamento. É com o apoio do poder público, de organizações sem fins lucrativos, de empresas e principalmente da sociedade que novos sonhos vão sendo cultivados a cada ano. Não que as coisas sejam fáceis. "A periferia é sempre a que mais perde quando não há investimento para a cultura", opina a professora Karen.
Os recursos que a orquestra arrecada mensalmente são quase totalmente direcionados à remuneração dos 23 educadores formalmente contratados. O espaço físico é outra dificuldade, principalmente para os ensaios do grupo principal, já que os 50 músicos ficam apertados nos poucos metros quadrados da sala principal.
Hoje, as oficinas são mantidas por convênio com a prefeitura de Porto Alegre e uma parceria com o Centro de Promoção da Criança e do Adolescente São Francisco de Assis, organização sem fins lucrativos que apoia o projeto desde 2006. Os cachês que o grupo principal recebe em apresentações ainda são eventuais, conta a professora, mas o projeto montou, em parceria com a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs, a Allegro, loja virtual da orquestra. Nela, os apoiadores encontram produtos artísticos como dois DVDs e o livro que conta a história da orquestra, além de canecas, sacolas e outros objetos com a marca da iniciativa.
Outra fonte importante vem do apoio de pessoas físicas e jurídicas que acreditam no poder transformador da cultura. Durante a pandemia, a campanha Adote um Flautista surpreendeu a todos. A ideia era angariar fundos com financiamento coletivo para adquirir 70 novas flautas para os alunos. A meta foi batida em apenas 3 dias, e o sucesso possibilitou que a orquestra adquirisse 114 instrumentos novos.
 

Ensino de músicanas escolas

Histórias de sucesso como a Orquestra Villa-Lobos ainda são exceção no País

Histórias de sucesso como a Orquestra Villa-Lobos ainda são exceção no País


/CLAUDIO ETGES/DIVULGAÇÃO/JC
Casos perenes como o da Orquestra só são possíveis no Brasil com a dedicação dos profissionais e o apoio da sociedade. Mas não é o que determina a legislação brasileira. Desde 2008, quando foi aprovada a Lei federal nº 11.769, o ensino de música nas escolas é uma obrigação do poder público. A realidade, no entanto, está longe do que está escrito no papel. "Alguns anos atrás, gente ainda tinha esperança e via movimentos muito fortes no Brasil para colocar a lei em prática, mas hoje em dia a situação é crítica", aponta Cecilia, que acompanhou os debates de perto e lutou junto com outros professores de música pela aprovação da lei, construída com muito diálogo do setor.
Embora o dispositivo pareça simples, pouco foi feito para que de fato a lei fosse implementada em sua totalidade no Brasil. Pouco mais de 10 anos depois, o que se viu no setor da educação musical foi o cancelamento de diversos cursos de graduação na área e a falta de uma política permanente, dificultando a aplicação da lei. Com menos professores de música, os programas tendem a ser paralisados."É uma rede que vai se nutrindo, não temos como trabalhar isolados, e a educação tem resultado a médio e longo prazo, então estamos preocupados com a juventude", diz.
A Base Nacional Comum Curricular de 2017, documento que determina as diretrizes para o ensino no país, incluindo disciplinas de artes, determina que "a ampliação e a produção dos conhecimentos musicais passam pela percepção, experimentação, reprodução, manipulação e criação de materiais sonoros diversos, dos mais próximos aos mais distantes da cultura musical dos alunos." A definição aponta para a diretriz de que o ensino prático é elemento fundamental do método pedagógico. Segundo a organização sem fins lucrativos Sociedade Artística Brasileira (Sabra), contudo, a educação musical aparece nas séries iniciais, mas tende a enfraquecer no currículo nos anos seguintes.
Desta forma, são as exceções que acabam fazendo a diferença. Em Porto Alegre, além da Villa-Lobos, as oficinas do Centro Municipal de Educação dos Trabalhadores (Cmet) Paulo Freire são um exemplo na área. Em janeiro de 2022, a prefeitura lançou um edital para selecionar projetos de educação musical para 250 alunos da rede municipal de ensino. Outras iniciativas, especialmente mantidas por organizações sem fins lucrativos, também atuam na educação musical gratuita e de qualidade, como a Sol Maior e a escola de música da Ospa.
 

Obras lançadas

Concerto Comemorativo de 30 anos da Orquestra Villa-Lobos no Theatro São Pedro

Concerto Comemorativo de 30 anos da Orquestra Villa-Lobos no Theatro São Pedro


/TÂNIA MEINERZ/DIVULGAÇÃO ORQUESTRA VILLA-LOBOS
- Livro Orquestra Villa-Lobos: música que transforma (2012)
- DVD Orquestra Villa-Lobos ao Vivo (2013)
- DVD Paz & Amor (2021)
 
Principais prêmios
 
Prêmio Itaú Unicef (2011)
Medalha Cidade de Porto Alegre (2015)
Prêmio Funarte Arte e educação (2018)
 
Prêmio Açorianos de Música - melhor Espetáculo (2019 e 2020)
 
 
 
* Thaís Seganfredo é jornalista formada pela Ufrgs, editora do site Nonada - Jornalismo Travessia e sócia-diretora da agência Riobaldo Conteúdo Cultural.