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Jornal da Lei

- Publicada em 09 de Março de 2020 às 20:35

'Sozinha, a segurança pública não diminuirá os feminicídios', afirma chefe de Polícia

Mostrar que a mulher pode é a marca que Nadine quer deixar

Mostrar que a mulher pode é a marca que Nadine quer deixar


LUIZA PRADO/JC
Juliano Tatsch
Primeira mulher a comandar a Polícia Civil gaúcha, a delegada Nadine Anflor fez história em uma instituição de 178 anos de idade. Com experiência de comando em delegacias de atendimento à mulher e sabendo da dificuldade em ampliar a quantidade desses espaços, ela quer envolver todos os colegas no combate à violência doméstica e familiar.
Primeira mulher a comandar a Polícia Civil gaúcha, a delegada Nadine Anflor fez história em uma instituição de 178 anos de idade. Com experiência de comando em delegacias de atendimento à mulher e sabendo da dificuldade em ampliar a quantidade desses espaços, ela quer envolver todos os colegas no combate à violência doméstica e familiar.
Jornal da Lei - A delegada coordena o Fórum Permanente de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia. Como o Rio Grande do Sul está no quadro nacional de violência contra a mulher?
Nadine Anflor - Caminhamos no mesmo ritmo do restante do País. É um fenômeno nacional. Não há algo que se possa dizer específico do Rio Grande do Sul. Traçamos um perfil das 97 vítimas de feminicídios no Estado no ano passado, e mais de 71% deles acontecem dentro das residências. Está aí o nosso grande desafio. A segurança pública, sozinha, não irá reduzir os indicadores de feminicídio. Esses dados nos trazem o alerta da necessidade de a sociedade e a família se envolverem no combate à violência, pois, se acontece dentro de casa, temos mais dificuldade em acessar. Outro ponto importante é que apenas quatro vítimas no ano passado tinham medida protetiva em vigor. Havia ocorrência policial em 42% dos casos, mas somente quatro vítimas com medida protetiva. Isso mostra que a medida protege, traz um recado para o agressor. Ele foi intimado dessa medida, sabe que tem alguém fiscalizando. O problema é essa grande maioria que morre sem medida protetiva.
JL - Existe um trabalho permanente sobre a importância da denúncia. No entanto, temos apenas 23 delegacias especializadas no atendimento à mulher (Deams). Existe um trabalho para se ampliar esse número?
Nadine - Por sete anos, fiquei dentro de uma delegacia especializada e fui coordenadora de todas essas delegacias no Estado. O que percebíamos - e, agora, como gestora da instituição, tenho tentado fomentar - é que isso não pode ser responsabilidade somente das Deams. Isso é responsabilidade de todos os policiais, de toda a sociedade. É isso que temos de mudar. Mais delegacias especializadas são importantes? São fundamentais. Mas temos as nossas realidades. Precisamos capacitar e melhorar o atendimento nos plantões policiais. São 44 delegacias de pronto-atendimento (DPPAs). Nessas delegacias, abertas 24 horas, são feitos os flagrantes, inclusive de Maria da Penha. São nesses locais que temos de ter um espaço especializado de acolhimento. Criamos a Sala das Margaridas, que é simbólica, mas serve para dizer à vítima que ela tem de procurar esses plantões, e ao policial, que ele tem como acolher de modo diferente. Temos nove dessas salas implementadas, mas, até o final da gestão, queremos que as 44 DPPAs também tenham. Já temos espaços e vamos trabalhar, capacitar, melhorar.
JL - Das 97 vítimas de feminicídio em 2019, quatro tinham medida protetiva em vigor. Onde estão as falhas do sistema que não garantiu a vida dessas mulheres?
Nadine - Estamos trabalhando em um tipo de crime em que há uma afetividade muito grande, uma relação intensa entre homens e mulheres. A mulher escolheu aquele homem para ser o seu marido, o seu companheiro e o pai dos seus filhos. Romper isso é muito difícil para elas. Muitas denunciam e voltam atrás. Muitas dizem que estão piores com o homem preso do que antes, mesmo sofrendo alguma ameaça. Por isso, temos de alertar que as famílias precisam de ajuda. Tanto o homem quanto a mulher precisam de ajuda. Não conseguimos alcançar essas quatro mulheres, talvez porque o Estado falhou, a Polícia Civil falhou e isso, evidentemente, acontece. Mas, talvez, porque ela tenha retomado esse relacionamento. Ou porque não conseguimos colocar essa mulher a tempo em uma casa abrigo, ou tenha sido deferida a medida protetiva e sequer tenhamos tido tempo para tirá-la do núcleo familiar. Então tem a falha do Estado e das polícias, que temos de reconhecer, pois não somos infalíveis. Mas tem essa questão afetiva, de muitas mulheres não acreditarem que possa acontecer.
JL - Como está a agilidade da resposta do Judiciário quando a polícia pede a medida protetiva?
Nadine - Melhorou muito. Temos, hoje, uma afinidade maior com o Judiciário. A Lei Maria da Penha fala que se tem 48 horas para remeter o pedido para o Judiciário, e não é o que a Polícia Civil vem aguardando. É um direito da mulher solicitar essa medida protetiva, e nós a encaminhamos ao Judiciário. Isso está sendo ágil. Estamos trabalhando de forma mais integrada. Esse grande desafio depende de uma mudança cultural. E aí sempre digo que os exemplos arrastam. As mulheres têm de se colocar em lugares em que possam ter poder de decisão, em que possam ter uma igualdade efetiva. Não queremos ser mais nem menos. Queremos uma equidade.
JL - Qual o papel da polícia nessa mudança cultural?
Nadine - Um papel fundamental. Os órgãos de segurança são a primeira porta. A mulher, quando é vítima de violência, ou os familiares dela, procura a polícia ou chama a polícia. Somos o primeiro socorro. E elas nos procuram muito. Então como se recebe, como se acolhe, vai fazer toda a diferença para que essa mulher se sinta empoderada o suficiente para levar adiante um processo que é muito difícil, que é desgastante, que envolve filhos. Vemos os dados de feminicídio aumentando, mas começamos a coletá-los de 2015 para cá. De 2015 para cá, olhamos todas as mortes de mulheres com olhos de feminicídio. Isso não acontecia. Nossa postura mudou, principalmente no âmbito da Polícia Civil. Hoje, enxergamos primeiro o feminicídio. Depois, podemos descaracterizá-lo e, então, catalogar como homicídio.
JL - Houve uma mudança na lei permitindo que os delegados possam decidir pela medida protetiva onde não há comarca da Justiça. Isso recebeu elogios e críticas. Qual a sua opinião a respeito?
Nadine - Defendo isso. Importante dizer que não é uma competição com o Judiciário, não se tira atribuição do Judiciário. Sou favorável para que os delegados possam, inclusive, fazer isso onde há comarca. Isso teria de ser enfrentado, e sei que há uma resistência do Judiciário. Não quero entrar em polêmica, mas tenho de me posicionar. Se podemos mais, que é tirar a liberdade desse agressor, porque não podemos dizer que ele deve permanecer afastado 200 metros dessa mulher? Sendo que essa determinação vai ser ratificada pelo Judiciário.
JL - Em janeiro deste ano, tivemos um aumento fora da curva de feminicídios no Estado, com dez ocorrências - 233% a mais do que no mesmo mês de 2019. Houve algum motivo especial para isso?
Nadine - Estamos apurando. Não se tem, ainda, uma identificação correta do que pode ter acontecido, isso é muito sazonal.
JL - Ativistas LGBT falam que a violência contra eles aumentou a partir do momento em que assumiram protagonismos. O mesmo aconteceu com as mulheres?
Nadine - Para nós, sempre é mais difícil. Quando assumimos esses postos, somos mais cobradas, temos de dar uma resposta, fazer mais para provar que fizemos igual. Mas acho que não sofremos mais violência por esse grito de empoderamento. Discordo disso, porque sempre sofremos violência. As mulheres sempre foram violentadas. Acho que a grande diferença, e, quem sabe, a queda desses indicadores venha quando as mulheres se colocarem, cada vez mais, em postos de comando e de poder. Em relação à população LGBT, tem diferença, pois, antes, era proibido e há uma intolerância muito grande. Em relação à mulher, não é tanto uma questão de intolerância, é o sentimento de propriedade. O homem que mata mulher, mata quando ela diz que irá romper o relacionamento, não por ter chegado a um posto de comando.
JL - A delegada é a primeira mulher a comandar a Polícia Civil em 178 anos de história da instituição. Que marca quer deixar?
Nadine - Que a gente pode. Que somos iguais. O exemplo arrasta. Temos de mostrar que sim, que, apesar de ser mais difícil, de ter filho ligando neste momento - o celular está tocando aqui e já vi que é ele -, somos realmente iguais. Dentro da instituição, somos 38% de mulheres. Não somos meio a meio, nem queremos ser, não queremos essa competição. A grande marca que quero deixar é: estivemos lá, deu certo, e fizemos tão bem quanto todos os outros.
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