A inteligência artificial deixou de ser promessa para se tornar parte do dia a dia da medicina brasileira - e o mercado de saúde digital começa a se consolidar como um dos mais dinâmicos da economia. Startups, cooperativas médicas e o próprio poder público correm para ocupar esse novo território, em que algoritmos ajudam a prever doenças, reduzir custos e aumentar a segurança de pacientes. Mas o avanço traz dilemas: falta integração entre sistemas, a regulação ainda é incipiente e a proteção dos dados sensíveis impõe novos limites à inovação.
Um dos nomes mais antigos da transformação digital na área médica é a Anestech Innovation Rising, fundada em Florianópolis em 2012. O anestesista Diógenes Silva, CEO da empresa, fez parte da primeira geração de healthtechs do país. “A inovação em saúde exige suor. O anestesista é o médico que mais coleta dados dentro de um hospital, mas ainda usa papel e caneta. É preciso transformar essa informação em inteligência para melhorar desfechos e sustentabilidade econômica”, diz.
Com plataformas que registram e analisam dados de cirurgias em tempo real, a Anestech tornou-se referência em adoção digital na anestesiologia. O sistema consegue prever eventos críticos, como quedas de pressão arterial, com até 20 minutos de antecedência. “Uma pilha de dados conta uma história; uma pilha de histórias mostra o futuro”, resume Silva.
A empresa agora avança em modelos capazes de cruzar dados clínicos e genéticos para personalizar condutas - e reforça um ponto essencial: “A IA permite equilibrar qualidade assistencial e sustentabilidade. O desafio não é a regulação, é o financiamento. Ainda são os próprios médicos que pagam pelo software em muitos hospitais”.
No setor privado, a digitalização virou estratégia de negócio. A Unimed Porto Alegre, uma das maiores operadoras de saúde do país, investe em machine learning (aprendizado de máquina, na tradução literal) para cuidar de seus mais de 665 mil clientes. O superintendente-geral Marcelo Hartmann afirma que a tecnologia já está integrada a diferentes etapas do cuidado.
“O programa Viver Bem Juntos usa algoritmos que analisam o perfil e os hábitos de vida do cliente para criar trilhas de cuidado personalizadas. Também desenvolvemos 28 modelos preditivos que avaliam custo e risco assistencial, com assertividade entre 75% e 95%”, diz.
Essas ferramentas, segundo ele, ajudam a antecipar doenças crônicas e direcionar ações preventivas, reduzindo hospitalizações. A cooperativa ainda aplica IA em canais de atendimento, como chatbots e triagens digitais, além de processos administrativos.
O maior entrave, segundo Hartmann, é a integração de dados. “As informações ainda estão muito fragmentadas entre operadoras e hospitais. Para a IA gerar valor real, é preciso interoperabilidade e governança. E isso precisa acontecer com ética, privacidade e visão de longo prazo”, analisa.
O poder público também avança no tema. A Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão do Rio Grande do Sul (SPGG-RS) tem conduzido uma política de transformação digital que usa IA para aproximar o Estado dos cidadãos. A plataforma Meu rs.gov.br personaliza serviços com base no perfil do usuário, e a assistente virtual GurIA orienta sobre vacinação, prevenção e acesso a políticas de saúde. “Vivemos a era pós-digital, em que decisões e automações ocorrem em tempo real. A base é a governança de dados e o uso ético das informações”, afirma a SPGG, em nota.
O Estado prepara também a Plataforma Estadual de Dados, que integra fontes antes dispersas, criando um ambiente único para o desenvolvimento de soluções baseadas em IA. “Nosso objetivo é garantir que nenhuma recomendação apoiada por tecnologia afaste a responsabilidade humana”, destaca a secretaria.
O pano de fundo é um mercado em expansão. Segundo a Distrito Healthtech Report, o Brasil tem mais de 1.200 startups de tecnologia em saúde (as healthtechs), e cerca de um terço delas já utiliza IA em algum nível. A digitalização hospitalar cresce, impulsionada por grandes grupos privados, cooperativas e programas públicos de regulação inteligente. Mas o ritmo ainda é desigual: a burocracia, a escassez de investimentos e a falta de interoperabilidade entre plataformas travam o avanço em larga escala.
O consenso entre gestores e empreendedores é que o próximo salto depende menos da tecnologia e mais de infraestrutura e cultura. “A saúde é o setor mais atrasado em maturidade digital no Brasil. Exige validações, certificações e alto custo de entrada, mas o movimento é irreversível”, conclui Silva, da Anestech.