Pioneiro da telemedicina no Brasil, o professor Chao Lung Wen, chefe da Disciplina de Telessaúde da Universidade de São Paulo (USP), enxerga a inteligência artificial (IA) como o motor da maior revolução da história médica - uma transformação que vai do diagnóstico à sala de aula. Em entrevista ao Jornal do Comércio, ele fala sobre a medicina de precisão, os hospitais inteligentes e o profissional híbrido que surge dessa nova era: um médico que combina raciocínio clínico, empatia e domínio digital.
Jornal do Comércio – Quais as principais transformações que a inteligência artificial deve trazer à medicina?
Chao Lung Wen – A grande revolução será a medicina de precisão e personalizada. A IA permite cruzar dados genômicos, clínicos e laboratoriais para criar retratos completos dos pacientes, oferecendo tratamentos sob medida. Também inaugura a era da medicina preditiva, capaz de antecipar riscos e prever doenças antes que surjam. Outro avanço é a IA com corpo físico: robôs assistenciais e cirúrgicos, como já ocorre na China, onde há hospitais totalmente automatizados. Em breve, teremos centros cirúrgicos inteligentes e casas equipadas com sensores de monitoramento contínuo, consolidando a chamada “saúde distribuída”. O cuidado deixará de ser exclusivo de hospitais e passará a acontecer em casa. Estamos, portanto, diante de um novo ecossistema de cuidado que redefine a relação entre médico, paciente e ambiente.
JC – A tecnologia pode, paradoxalmente, tornar a medicina mais humana?
Chao – Sim, desde que seja usada com propósito. Defendo o conceito de inteligência ampliada - o uso da IA para potencializar o raciocínio e o conhecimento humano. O termo “inteligência artificial” já é ultrapassado: ela não pensa nem sente; apenas replica comportamentos com base em dados. Se for bem aplicada, a IA nos tornará mais humanos. Um exemplo simples é a transcrição automatizada de prontuários: o médico fala, o sistema registra e resume. Isso devolve o olhar e o diálogo com o paciente. Assim como a calculadora não nos tornou menos inteligentes, a IA muda o tipo de raciocínio que precisamos desenvolver.
JC – A formação médica está acompanhando essa mudança?
Chao – As novas Diretrizes Curriculares Nacionais, homologadas em agosto, já incluem temas como telemedicina, IA, big data e machine learning. É uma virada de paradigma. O médico do futuro precisa aprender a raciocinar em diálogo com a máquina. Nas minhas aulas, uso debates entre alunos e IA generativa para estimular o pensamento clínico. Mesmo que o estudante não utilize a tecnologia diretamente, aprende a formular hipóteses com mais agilidade. Nos hospitais, o impacto já é visível. No InCor, por exemplo, temos UTIs conectadas, onde a IA monitora sinais vitais e aciona alertas automáticos. Há algoritmos que identificam sepse até um dia antes dos sintomas. A IA deve ser ensinada como ferramenta de raciocínio, gestão e empatia, não apenas como tecnologia.
JC – Qual o papel da telemedicina e dos prontuários eletrônicos inteligentes nesse processo todo?
Chao – Essencial. O sistema de saúde brasileiro não suportará o aumento de idosos e portadores de doenças crônicas sem o apoio de IA e telemedicina. Até 2030, teremos uma população mais dependente de acompanhamento contínuo e o modelo presencial se tornará insustentável. Com biossensores e dispositivos vestíveis, é possível monitorar pacientes em tempo real e agir antes das complicações. Isso reduz internações e custos. Se o Brasil não migrar para esse modelo, pode gastar até 20% do PIB com doenças até 2035 - o dobro de países ricos. A saída é apostar na prevenção e na gestão de saúde.
JC – Quais são os principais obstáculos?
Chao – O primeiro é cultural: ainda há medo da IA, como se ela fosse uma ameaça ao trabalho médico. O segundo é estrutural: usamos sistemas estrangeiros, o que compromete a soberania e a proteção de dados. Precisamos desenvolver IA nacional, com infraestrutura própria e protocolos de segurança. Informática médica e IA devem ser tratadas como investimento estratégico de Estado, assim como energia ou transporte.
JC – E o que vem pela frente?
Chao – O Brasil já começa a entrar na era dos hospitais inteligentes. O Banco dos BRICS financiou um hospital desse tipo na USP, e há planos para outro em Porto Alegre. Veremos também a expansão dos dispositivos vestíveis e da internet das coisas médicas, impulsionada pelas redes 5G e 6G. O desafio é produzir esses equipamentos aqui e criar data centers robustos para armazenar os dados. O médico do amanhã será um profissional híbrido - metade humano, metade digital. Mais do que decorar informações, precisará investigar, interpretar e manter o essencial: a capacidade de cuidar com empatia. Acredito que a atual geração verá robôs realistas e realidade aumentada integrados à rotina médica. Mas, no fim, o propósito continua o mesmo: cuidar de pessoas.