A formação médica sempre foi um exercício de equilíbrio: avançar no conhecimento sem perder o vínculo humano, dominar técnicas sem transformar a clínica em manual... Agora, com a inteligência artificial (IA) entrando de vez no cotidiano dos hospitais - de prontuários que se escrevem sozinhos a triagens automatizadas -, esse equilíbrio migrou para o coração das escolas de medicina.
O Rio Grande do Sul vive essa transição em tempo real. Currículos são revisitados, métodos de ensino se reinventam, docentes se requalificam e estudantes testam, a cada semestre, até onde a tecnologia ajuda a aprender e onde ela ameaça encurtar o caminho crítico do raciocínio clínico. O desafio, no fundo, é formar um médico “bilíngue”: fluente em dados e, ao mesmo tempo, insubstituível no encontro com o paciente.
Na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), o processo começou há cinco anos, com a criação da disciplina Inovação na Prática Médica. A proposta nasceu para discutir telemedicina, mas rapidamente incorporou temas como IA, ciência de dados e uso ético de algoritmos. “Hoje, trabalhamos desde os modelos gerais, como ChatGPT e Copilot, até ferramentas médicas específicas, como MedSearch e Open Evidence”, explica o decano da Escola de Medicina, Leonardo Araújo Pinto.
O curso criou ainda um agente de inovação, que conecta os alunos ao ecossistema tecnológico da universidade, como o Tecnopuc e o curso de Ciência de Dados e Inteligência Artificial. A ideia é integrar mundos: enquanto o aluno aprende fisiologia ou farmacologia, também é incentivado a testar recursos de IA que ajudam a revisar evidências e analisar informações clínicas. “O médico do futuro precisa dominar as ferramentas, mas continuar humano. Essa integração é o verdadeiro desafio da formação”, resume o decano.
Essas transformações não ficam restritas às disciplinas isoladas. Na prática, a tecnologia está espalhada por todo o curso. Professores usam chatbots para discutir casos clínicos, e alunos do internato simulam atendimentos em que a IA propõe hipóteses diagnósticas. O papel do docente também muda: ele passa de transmissor a curador de informação, responsável por ensinar o aluno a questionar o que recebe.
A mudança é gradual, mas irreversível: “Toda vez que se inclui uma nova disciplina, é preciso retirar outra. Então fazemos ajustes por etapas”, explica Pinto. A próxima revisão curricular, prevista para 2026, vai ampliar o foco em humanização e prática clínica. O raciocínio, diz ele, é simples: o conhecimento está mais acessível do que nunca - o diferencial, agora, é saber escutar e se comunicar
Aprender com a máquina
A Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) atravessa o mesmo processo, impulsionada pelas novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) aprovadas neste ano, que pela primeira vez incluem saúde digital, IA e análise de dados como competências obrigatórias. “É uma mudança significativa. Estamos em fase de adaptação, mas já há disciplinas experimentando o tema”, explica o vice-reitor Rafael Vargas.
Ele leciona a matéria de Análise Crítica das Evidências, onde a IA é usada para formular perguntas de pesquisa e buscar artigos científicos. “O aluno aprende a fazer as perguntas certas e a usar a tecnologia para encontrar boas respostas - sem deixar de verificar fontes e limitações.” O objetivo, segundo Vargas, é criar um médico alfabetizado digitalmente, capaz de usar ferramentas com critério e ética.
Os desafios, no entanto, são reais, segundo ele. O primeiro é o Deskilling - a perda de habilidades cognitivas quando se delega demais à máquina. “Se o estudante deixa de exercitar o raciocínio clínico, vira operador de prompt. E a medicina não pode ser isso”. O segundo é o descompasso geracional: professores muito experientes, mas menos familiarizados com as novas tecnologias, dividem sala com alunos que as dominam intuitivamente. “A saída é investir em capacitação docente, para que todos falem a mesma língua”, analisa.
Na Universisdade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o movimento ganha corpo dentro da reforma curricular que está em andamento. A diretora da Faculdade de Medicina (Famed), Cristiane Bauermann Leitão, explica que a universidade já era referência em telemedicina, por meio do TelessaúdeRS, e agora avança para incluir IA, ciência de dados e ética digital no ensino. “Fizemos um levantamento com professores e alunos: cerca de 80% já usam IA, diariamente ou semanalmente, em alguma atividade acadêmica. A tecnologia já está na sala de aula - o que falta é ensiná-la de forma crítica”, destaca.
Essa inserção deve acontecer de modo transversal, não como disciplina isolada. “A IA vai estar em todas as áreas - na radiologia, na emergência, na cardiologia -, sempre com foco na prática e na ética”, diz Cristiane. Ela reforça que o ponto de partida é a formação ética sólida. “Os alunos precisam entender que não se pode colocar dados de pacientes em plataformas abertas. Isso viola o sigilo e a LGPD. A IA é uma ferramenta de apoio, não de substituição”.
Professor de Medicina de Emergência na Ufrgs, Lucas Oliveira Junqueira e Silva liderou a pesquisa citada por Cristiane. Segundo ele, apesar de quase 80% da comunidade acadêmica da Faculdade de Medicina já utilizar IA com frequência, principalmente para resumir textos, revisar artigos e criar apresentações, ainda há percalços. “Há preocupações legítimas: o risco de plágio, de erros e de vazamento de dados sensíveis. Estamos trabalhando para garantir que o uso seja seguro e consciente”.
Ele vê, porém, um lado positivo. “Muitos temem que a IA reduza o contato humano, mas ela pode liberar tempo do médico para o paciente. A tecnologia deve servir para reforçar o vínculo, não para substituí-lo”, conclio.
Adequação agora é lei
A aprovação das novas DCNs da Medicina, em agosto de 2025, consolidou o que as universidades já vinham fazendo por conta própria: preparar o médico para atuar em um sistema cada vez mais digital, mas sem abandonar a empatia e a responsabilidade ética. O texto do Conselho Nacional de Educação determina que o egresso tenha domínio de saúde digital, análise de dados, inteligência artificial e ética tecnológica, sinalizando que o domínio técnico e o olhar humanista precisam caminhar juntos.
O impacto será profundo. As diretrizes obrigam os cursos a incluir competências digitais e de comunicação clínica em todos os ciclos - do básico ao internato. Na prática, isso significa que o estudante precisará dominar fundamentos de IA, compreender riscos de vieses, aplicar princípios da LGPD, analisar criticamente resultados e, sobretudo, saber traduzir o que as máquinas dizem em linguagem compreensível ao paciente.
É uma mudança de cultura: menos ênfase no acúmulo de conteúdo, mais na capacidade de aprender continuamente. O médico que se forma hoje já entra em um mundo em que os diagnósticos são compartilhados com algoritmos, mas as decisões ainda dependem do julgamento humano: “O papel do médico nunca foi o de competir com a tecnologia, é o de interpretar o que ela entrega e dar sentido clínico a isso”, resume Vargas.
E as universidades gaúchas parecem alinhadas nesse ponto: o futuro da formação médica passa por ensinar os estudantes a pensar com a máquina, mas não como ela. Ou, como diz Cristiane, “quanto mais digital for a medicina, mais indispensável será o toque humano”.