A medicina sempre se baseou em confiança: na palavra do médico, na escuta atenta, no olhar que transmite segurança antes mesmo do diagnóstico. Mas o avanço da inteligência artificial está mudando silenciosamente esse pacto. Ferramentas que cruzam exames, interpretam laudos e priorizam atendimentos passaram a ocupar o cotidiano de hospitais e consultórios. Elas prometem reduzir erros, dar velocidade às decisões e ampliar o alcance do cuidado. No entanto, cada linha de código também levanta uma questão antiga: até onde a técnica pode ir sem esvaziar o humano?
Para o vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), Eduardo Neubarth Trindade, a inteligência artificial é uma aliada inevitável. “Em pouco tempo, será até antiético não utilizar ferramentas de IA”, afirma. A tecnologia, contudo, exige senso crítico. “Esses sistemas se baseiam em grandes bancos de dados, e esses bancos podem conter vieses, erros ou informações incompletas. O médico precisa saber de onde vêm os dados e quem faz a curadoria”, ressalta.
O alerta é ético e também técnico. Trindade lembra que algoritmos podem “alucinar”, criando respostas sem fundamento. Por isso, insiste que a supervisão humana é indispensável. “A IA deve estar sob responsabilidade do médico. O paciente confia na pessoa, não na máquina. A medicina é, antes de tudo, uma relação humana. Quando uma alma humana precisar tocar outra, deve haver um humano por trás”.
A automação, segundo ele, deve ser usada para libertar o profissional das tarefas repetitivas e burocráticas, devolvendo-lhe o tempo de estar com o paciente. “A tecnologia deve aproximar, nunca afastar. Se ela tirar o médico do centro da decisão, terá falhado em seu propósito.”
A ética do cuidado
O debate sobre limites não se restringe à prática clínica - chega também ao campo do Direito e da perícia médica, onde a precisão dos dados convive com dilemas morais. A médica legista Caroline Daitx, especialista em medicina legal e perícia médica, vê de perto as possibilidades e os riscos. Na área, ferramentas de IA já ajudam a decifrar caligrafias ilegíveis e a organizar laudos extensos, agilizando análises. “Essas soluções evitam erros de transcrição e tornam o trabalho mais preciso”, conta.
Mas a perícia, lembra, é um ato essencialmente humano. “O laudo médico não é uma simples soma de informações. Ele exige sensibilidade, interpretação de contexto e empatia. A IA pode apoiar, mas jamais substituir o olhar técnico e ético do perito.” O Código de Ética Médica, reforça, é claro: a responsabilidade pelo laudo é pessoal e indelegável. “A autonomia do médico é o que garante a credibilidade da perícia. Nenhum algoritmo pode responder por um julgamento clínico”.
Para Caroline, o uso da IA na medicina legal precisa respeitar os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que classifica informações de saúde como sensíveis. “Qualquer sistema que manipule dados de pacientes deve garantir segurança, rastreabilidade e confidencialidade. O dever de sigilo médico continua existindo no ambiente digital, e talvez seja até mais desafiador nele.” Ela acredita que a tecnologia pode padronizar e acelerar procedimentos, mas só será benéfica se mantiver o humano no comando: “A IA deve servir ao médico, e não o contrário”, conclui.
O jurista Gustavo Clemente, especialista em Direito Médico e presidente do Sindicato dos Hospitais do Estado de Goiás, vê a mesma linha tênue entre eficiência e responsabilidade. “A LGPD permite o uso de dados sensíveis sem consentimento apenas quando indispensável à proteção da saúde, mas isso não significa liberdade irrestrita”, explica. “É preciso definir finalidade, limitar acessos e garantir revisão humana antes de qualquer decisão automatizada”.
Clemente alerta que, se um algoritmo errar, a responsabilidade é compartilhada. “O desenvolvedor responde se o defeito for do software; a instituição, se falhou na validação ou supervisão; e o médico, se agiu com negligência ao adotar uma conduta sem questionar o sistema.” A prevenção, diz, é o melhor caminho: “Validação clínica local, rastreabilidade de versões, documentação das decisões. O bom senso jurídico e clínico andam juntos”, destaca.
O também jurista Luiz Fernando Plastino, doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em proteção de dados, reforça a importância da transparência. “O paciente tem direito de saber se seus dados estão sendo analisados por IA e deve poder consentir com isso. A decisão final precisa ser humana.” Para ele, o País ainda vive um vácuo normativo. “Faltam regras específicas para IA médica, o que torna essencial a governança ética dentro das instituições - quem usa, como usa e com quais limites.”
Essas precauções são indispensáveis, mas o verdadeiro teste da confiança ocorre no contato direto com o paciente. A designer Júlia Menezes, 24 anos, moradora de São Paulo, lembra que seu primeiro atendimento mediado por IA foi quase imperceptível. “Fui ao pronto-socorro com dor abdominal e preenchi um questionário digital. As perguntas iam mudando conforme eu respondia. Depois soube que aquilo fazia parte de um sistema de triagem com inteligência artificial”, lembra. O algoritmo indicou suspeita de apendicite, e o diagnóstico foi confirmado pelo médico. “No começo, dá medo. A gente pensa: será que posso confiar? Mas quando percebi que era só um apoio ao médico, fiquei tranquila”.
Após a cirurgia, Júlia foi acompanhada por um aplicativo que usava IA para analisar suas respostas sobre dor, sono e alimentação e alertar a equipe em caso de anomalia. “Me senti mais cuidada, não menos. Acho que a tecnologia aproxima quando há supervisão humana”, comenta.
Essa confiança mediada pela tecnologia é, para Trindade, vice-presidente do Cremers, a nova fronteira da ética médica. “A IA precisa ser usada com responsabilidade e transparência. Nós publicamos uma resolução justamente para definir quem responde pelo uso e quais princípios devem ser respeitados.” Segundo ele, a instituição defende que toda aplicação de inteligência artificial seja validada clinicamente e usada apenas como ferramenta de apoio à decisão.
No fim das contas, a convergência entre direito, ética e prática médica parece apontar para um consenso: a tecnologia pode revolucionar o cuidado, mas não deve se sobrepor à escuta. “A esperança é que a IA devolva tempo ao médico para ouvir o paciente”, diz Trindade. “É isso que dá sentido à profissão”.
Entre o algoritmo e o olhar, a confiança continua sendo o elo invisível que sustenta o ato médico. E enquanto as máquinas aprendem a interpretar dados, cabe aos médicos continuar interpretando pessoas, algo que nenhuma inteligência artificial, por mais precisa que seja, conseguirá reproduzir.