Nos hospitais gaúchos, uma nova forma de inteligência já trabalha lado a lado com os médicos - mas sem estetoscópio no pescoço nem crachá no jaleco. Ela está escondida nas telas, nos algoritmos que cruzam exames, revisam prescrições e regulam consultas pelo SUS. A inteligência artificial (IA) deixou o campo das promessas e os filmes de ficção científica para se tornar parte da rotina: analisa dados em tempo real, evita erros e devolve aos profissionais o que mais faltava: tempo para cuidar.
No Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre, o uso da IA começou há quatro anos, em um setor discreto, mas crucial: a farmácia. Um sistema da startup Noharm passou a revisar todas as prescrições médicas emitidas para pacientes internados. A ferramenta analisa interações entre drogas, dosagens e vias de administração com uma precisão que o olhar humano não alcançaria no mesmo ritmo. “São cerca de 350 prescrições diárias. Antes, o processo dependia da revisão manual de cinco farmacêuticos. Agora, o sistema atua 24 horas por dia, sem margem para erro”, explica o diretor médico, Tiago Ramos.
O resultado foi imediato: segurança para os pacientes e tempo para os profissionais. “A IA não desumaniza, ao contrário. Ela devolve ao médico o tempo de olhar nos olhos do paciente”, diz Ramos. É essa lógica - de libertar o profissional da burocracia - que tem guiado os avanços. O Mãe de Deus hoje testa ferramentas que transcrevem conversas entre médico e paciente, gerando rascunhos automáticos das evoluções clínicas, e planeja usar chatbots para agendamento de consultas. Um robô, o Munai, desenvolvido a partir da plataforma Laura, analisa continuamente sinais vitais e exames laboratoriais para prever riscos de deterioração clínica. Se detecta anomalias, aciona as equipes assistenciais em tempo real.
“Estamos passando da análise de dados para o apoio à decisão”, afirma Ramos. “A IA começa a sugerir hipóteses diagnósticas, como tendências de infecção ou insuficiência renal. Não substitui o julgamento do médico, mas amplia a sua capacidade de interpretação”, destaca.
Essa transição já chegou também ao Sistema Único de Saúde. No TelessaúdeRS-UFRGS, que presta apoio técnico a profissionais da atenção primária, a inteligência artificial foi incorporada à regulação de consultas. Um robô avalia encaminhamentos feitos por médicos da rede básica e indica se o pedido de consulta com especialista é adequado, além de priorizar casos urgentes. “Em estudo recente, vimos que o robô acerta 16 casos a mais a cada 100 em comparação com a regulação exclusivamente humana”, explica o coordenador geral, Natan Katz.
Desde 2021, o sistema já avaliou mais de 9,5 mil pacientes, agilizando o acesso e reduzindo filas. “Nosso objetivo é melhorar a resolutividade do atendimento e ampliar o alcance do cuidado onde faltam especialistas”, afirma Katz. Além disso, a IA passou a transcrever e resumir automaticamente as consultorias telefônicas prestadas por médicos do Telessaúde, o que padroniza informações e libera tempo das equipes.
Ele, que também é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), vê no avanço uma mudança cultural em curso. “Há dois anos, poucos estudantes usavam IA; hoje, quase todos recorrem a ela para revisar conteúdos e até simular pacientes em treinamentos clínicos”, comenta. “Saímos da fase das ideias para as soluções operacionais”.
Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, a inteligência artificial está a serviço da pesquisa. A oncologista Manuela Zereu, do serviço de Oncologia Clínica, participa de um projeto em parceria com a Empresa Pública de Tecnologia da Informação e Comunicação da prefeitura de Porto Alegre (Procempa) e o MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) que testa algoritmos voltados ao diagnóstico precoce de câncer de mama e de pulmão. As ferramentas - chamadas Mirai e Sybil, respectivamente - analisam exames de imagem e identificam alterações suspeitas anos antes de um diagnóstico clínico.
“Em estudos retrospectivos, a IA apontou nódulos que mais tarde se confirmaram como câncer”, relata Zereu. A etapa atual busca validar os sistemas para a população brasileira, que tem características diferentes das amostras usadas nos Estados Unidos. “No câncer de pulmão, por exemplo, precisamos ensinar o algoritmo a distinguir lesões de tuberculose, ainda comum no Brasil”.
Apesar do potencial, a oncologista defende cautela. “A IA ainda não tem senso crítico. Ela sugere hipóteses, mas o julgamento clínico é humano. A tecnologia deve ser uma aliada, parte da equipe multidisciplinar, e não uma substituta.” Para ela, o maior desafio está na privacidade dos dados e na regulação ética de uso. “O entusiasmo é natural, mas não podemos perder de vista a responsabilidade.”
A preocupação é compartilhada pelo Simers, sindicato que representa a categoria médica no Estado. O presidente, Marcelo Matias, diz que a IA “simplifica o cotidiano, mas exige vigilância ética permanente”. Ele vê a automação como inevitável e positiva, mas defende regras claras. “A natureza da ciência é evoluir, e a medicina acompanha isso. Veremos mais resolutividade, mais segurança e melhores desfechos. Mas precisamos de regulação sólida para evitar o uso indevido de dados e os riscos de erro algorítmico”, diz.
Nesse sentido, para Matias, o médico do futuro será híbrido: humano e tecnológico na mesma medida. “Será o profissional que alia o humanismo do passado à fluência digital do presente. As universidades precisam formar esse médico desde já”, afirma.
Ele reconhece, porém, que a automação já trouxe ganhos concretos: agendamentos inteligentes, resumos automáticos de consultas, alertas de interação medicamentosa e prontuários com algoritmos de apoio à decisão. “Tudo isso aumenta a produtividade e melhora a qualidade assistencial. A IA não substitui o médico, mas o torna mais eficiente e assertivo.”
Tecnologias ganham espaço simbólico, antes ocupado pelo estetoscópio
Da farmácia hospitalar à triagem do SUS, dos algoritmos de rastreamento de câncer aos robôs que monitoram pacientes em tempo real, a Inteligência Artificial está tecendo uma nova malha invisível na medicina gaúcha. Ela opera no silêncio, sem o brilho das grandes invenções, mas com impacto direto na segurança e na eficiência do cuidado.
O futuro, segundo Tiago Ramos, diretor técnico do Hospital Mãe de Deus, será de integração entre hospitais e dispositivos pessoais, como relógios e pulseiras inteligentes, que enviam dados contínuos de saúde. "Isso vai permitir uma medicina mais preventiva, capaz de identificar riscos antes que virem emergências." A IA, completa, tende a ocupar o lugar simbólico que um dia foi do estetoscópio.
"Durante muito tempo, o estetoscópio foi o emblema do médico. Depois, veio a ecografia portátil, chamada de 'novo estetoscópio'. Agora, acredito que estamos entrando em uma era em que a Inteligência Artificial pode assumir esse papel", reflete. "Ela não substitui o médico, mas amplia a capacidade de enxergar o que, muitas vezes, seria invisível".
O movimento é silencioso, mas profundo. Em vez de máquinas frias substituindo pessoas, são sistemas digitais que permitem mais tempo, mais precisão e mais humanidade. Na prática, a IA já começa a mudar o trabalho médico - e, com ele, a própria ideia do que é cuidar.